VERÃO DE 39

Livro aberto, ele lê, para, recomeça...duas, três páginas...pausa...inquietação, uma frase, algumas palavras, fecha o livro, no CD o jazz de Bill Evans...nostalgia, setenta anos, tempo de sobra, far niente nada dolce...livros na estante, fotos emolduradas, discos enfileirados, seu mundo de agora, seu templo, sua sinagoga...não esquecia suas origens...janela aberta, olha, nevoeiro? fog londrino! a mente revigora, o coração dispara, suor escorre, imagens, transportou - se? sorri, o antes guerra, colégio cosmopolita, a nova lost genaration? futuros hemingways, fitzgeralds? mas London não era Paris, nem o colégio era o Hotel Ritz...Shakespeare, Byron, Tennyson , Browning amontoados na sua cabeça adolescente, mas havia o progressive jazz de Stan Kenton, o A tisket, a tasket da Ella, o trombone de Jack Teagarden, a guitarra de Django, o Beguin the buguin com Artie Shaw, The vanishing lady, 39 steps do Hitchcock, o teatro de Noel Coward, Pygmalion com Leslie Howard, e at last but not the least, os clubes privé de Soho, do Picadilly, jogo, mulheres e...e ele apenas com dezesseis anos , se virava bem, quem podia com o dinheiro, com o savoir faire de um balcânico?...

...a cabeça embaralha, maldição! lembranças embebedam, mas o interior está fixo...instantes em branco, está privado dos sentidos?...se reencontra...

...verão de 39, Cumberland Hotel, Londres,um quarto, manhã ensolarada, se veste...sapatos de camurça, calças de flanela cinza, camisa branca, gravata de seda italiana, paletó padrão príncipe de gales...Bond Street fornecia tudo... desce, hall do hotel, burburinho multi - lingue...no dia seguinte estará à caminho do continente, ansiava pela Côte...entrega a chave na recepção, encaminha - se à porta giratória , sai, céu limpo, à sua frente Marble Arch entrada nobre de Hyde Park , vira na Oxford Street ...os horríveis táxis londrinos, a estação do underground, hesita, resolve seguir a pé em direção a Picadilly Circus, na esquina de Bond Street tropeça com Mircea...

–por aqui? –sim, na embaixada, meu pai foi ameaçado, mandou ficar, a Cruz de Ferro...mataram alguns dos seus, sua família? – tá em Paris! – melhor não voltar a Bucarest, o rei está sem poder, rezo pelo meu pai, embarco amanhã! –mas..– não poso abandonar o pai – boa sorte! ... beijam - se nas faces, costume da terra...

... tenta se lembrar, refazer o rosto, a memória falha, ele...ele, por que não diz Mircea, por que ele, dá - se conta que ele é uma palavra ruim, maldosa, a não pessoa, anula, não se deve aplicar à pessoa que se ama...Mircea, Mircea, sumido para sempre... ...se levanta trôpego , precisa de silêncio, desliga o som, passeia os olhos, velhas fotos, a família, umedece os lábios, reconstitui - se...reconstitui? revive o tempo? o tempo brinca, é atemporal, passado, presente...embaralhados, confundem o imaginário...

...Dover, the Channel, Calais, o trem, Gare du Nord, Hotel Scribe...passagem rápida por Evian...a Côte, Juan les Pains, plage privé, elegância por toda parte, Mercedes Rolls Royce, Bugatti...Isabel, linda morena, namoro...cassino, mulheres a disposição pra dançar, tango, oh, o tango...os maridos na roleta, chemin de fer, as vezes dava sorte e uma...

...verão de 39, agosto, Munich, mobilisation generale,, debandada, pânico, invasão da Polonia, guerra, Dunkerque, batalha de Londres, travessia do Atlântico, nova Pezah?...a família reunida...

...sem fôlego, anos repassados, filme apressado como numa cavalgada de faroeste . o suor empapa a camisa, escorre entre as pernas, arranca a roupa, nu, um bebezinho, está em paz, sem memória?...suas referências? agindo assim produz o que? tédio, ritmo, espasmo, morte, ressurreição?...começa a se mover, ouve flautas, citaras, horas, movimenta os pés, ensaia passos, estala os dedos, pára, apanha o licor de ameixa, bebe no gargalo, recomeça a dança, rodopia, rápido...rápido, mais... mais...