I
A noite, límpida e calma, tinha sucedido a uma
tarde de pavorosa tormenta, nas profundas e vastas florestas que bordam as margens
do Parnaíba, nos limites entre as províncias de Minas e de Goiás.
Eu viajava por esses lugares, e acabava de chegar
ao porto, ou recebedoria, que há entre as duas províncias. Antes de entrar na
mata, a tempestade tinha-me surpreendido nas vastas e risonhas campinas, que se
estendem até a pequena cidade de Catalão, donde eu havia partido.
Seriam nove a dez horas da noite; junto a um fogo
aceso defronte da porta da pequena casa da recebedoria, estava eu, com mais
algumas pessoas, aquecendo os membros resfriados pelo terrível banho que a meu
pesar tomara. A alguns passos de nós se desdobrava o largo veio do rio,
refletindo em uma chispa retorcida, como uma serpente de fogo, o clarão
avermelhado da fogueira. Por trás de nós estavam os cercados e as casinhas dos
poucos habitantes desse lugar, e, por trás dessas casinhas, estendiam-se as
florestas sem fim.
No meio do silêncio geral e profundo sobressaía o
rugido monótono de uma cachoeira próxima, que ora estrugia como se estivesse a
alguns passos de distância, ora quase se esvaecia em abafados murmúrios,
conforme o correr da viração.
No sertão, ao cair da noite, todos tratam de
dormir, como os passarinhos. As trevas e o silêncio são sagrados ao sono, que é
o silêncio da alma.
Só o homem nas grandes cidades, o tigre nas
florestas e o mocho nas ruínas, as estrelas no céu e o gênio na solidão do
gabinete, costumam velar nessas horas que a natureza consagra ao repouso.
Entretanto, eu e meus companheiros, sem
pertencermos a nenhuma dessas classes, por uma exceção de regra estávamos
acordados a essas horas.
Meus companheiros eram bons e robustos caboclos,
dessa raça semi-selvática e nômade, de origem dúbia entre o indígena e o
africano, que vagueia pelas infindas florestas que correm ao longo do Parnaíba, e
cujos nomes, decerto, não se acham inscritos nos assentos das freguesias e nem
figuram nas estatísticas que dão ao império ... não sei quantos milhões de
habitantes.
O mais velho deles, de nome Cirino, era o mestre da
barca que dava passagem aos viandantes.
De bom grado eu o compararia a Caronte, barqueiro
do Averno, se as ondas turbulentas e ruidosas do Parnaíba, que vão quebrando o
silêncio dessas risonhas solidões cobertas da mais vigorosa e luxuriante
vegetação, pudessem ser comparadas às águas silenciosas e letárgicas do
Aqueronte.
— Meu amo decerto saiu hoje muito tarde da
cidade, perguntou-me ele.
— Não, era apenas meio-dia. O que me atrasou foi
o aguaceiro, que me pilhou em caminho. A chuva era tanta e tão forte o vento que
meu cavalo quase não podia andar. Se não fosse isso, ao por do sol eu estava
aqui.
— Então, quando entrou na mata, já era
noite?...
— Oh!... se era!... já tinha anoitecido havia
mais de uma hora.
— E Vm. não viu aí, no caminho, nada que o
incomodasse?...
— Nada, Cirino, a não ser às vezes o mau
caminho, e o frio, pois eu vinha ensopado da cabeça aos pés.
— Deveras, não viu nada, nada? é o primeiro!...
pois hoje que dia é?...
— Hoje é sábado.
— Sábado!... que me diz? E eu, na mente que hoje
era sexta-feira!... oh! Senhorinha!... eu tinha precisão de ir hoje ao campo
buscar umas linhas que encomendei para meus anzóis, e não fui, porque esta minha
gentinha de casa me disse que hoje era sexta-feira... e esta! E hoje, com esta
chuva, era dia de pegar muito peixe... Oh! Senhorinha!... gritou o velho com mais
força.
A este grito apareceu, saindo de um casebre
vizinho, uma menina de oito a dez anos, fusca e bronzeada, quase nua, bocejando e
esfregando os olhos; mas que me mostrava ser uma criaturinha esperta e viva como
uma capivara.
— Então, senhorinha, como é que tu vais-me
dizer que hoje era sexta-feira?... ah! cachorrinha! deixa-te estar, que amanhã tu
me pagas... então hoje que dia é?...
— Eu também não sei, papai, foi a mamãe que me
mandou que falasse que hoje era sexta...
— É o que tua mãe sabe ensinar-te; é a
mentir!... deixa, que vocês outra vez não me enganam mais. Sai daqui: vai-te
embora dormir, velhaquinha!
Depois que a menina, assim enxotada, se retirou,
lançando um olhar cobiçoso sobre umas espigas de milho verde que os caboclos
estavam a assar, o velho continuou:
— Veja o que são artes de mulher! A minha velha
é muito ciumenta, e inventa todos os modos de não me deixar um passo fora daqui.
Agora não me resta um só anzol com linha, o último lá se foi esta noite, na
boca de um dourado; e, por culpa dessa gente, não tenho maneiras de ir matar um
peixe para meu amo almoçar a amanhã!...
— Não te dê isso cuidado, Cirino; mas conta-me
que te importava que hoje fosse sexta ou sábado, para ires ao campo buscar as
tuas linhas?...
— O quê!... meu amo? Eu atravessar o caminho
dessa mata em dia de sexta-feira?!... é mais fácil eu descer por esse rio abaixo
em uma canoa sem remo!... não era à toa que eu estava perguntando se não lhe
aconteceu nada no caminho.
— Mas o que há nesse caminho?... conta-me, eu
não vi nada.
— Vm. não viu, daqui a obra de três quartos de
légua, à mão direita de quem vem, um meio claro na beirada do caminho, e uma
cova meio aberta com uma cruz de pau?
— Não reparei; mas sei que há por aí uma
sepultura de que se contam muitas histórias.
— Pois muito bem! Aí nessa cova é que foi
enterrado o defunto Joaquim Paulista. Mas é a alma dele só que mora aí: o corpo
mesmo, esse anda espatifado aí por essas matas, que ninguém mais sabe dele.
— Ora valha-te Deus, Cirino! Não te posso
entender. Até aqui eu acreditava que, quando se morre, o corpo vai para a
sepultura, e a alma para o céu, ou para o inferno, conforme as suas boas ou más
obras. Mas, com o teu defunto, vejo agora, pela primeira vez, que se trocaram os
papéis: a alma fica enterrada e o corpo vai passear.
— Vm. não quer acreditar!... pois é coisa
sabida aqui, em toda esta redondeza, que os ossos de Joaquim paulista não estão
dentro dessa cova e que só vão lá nas sextas-feiras para assombrar os viventes;
e desgraçado daquele que passar aí em noite de sexta-feira!...
— Que acontece?...
— Aconteceu o que já me aconteceu, como vou lhe
contar.
II
Um dia, há de haver coisa
de dez anos, eu tinha ido ao campo, à casa de um meu compadre que nora da aqui a
três léguas.
Era uma sexta-feira, ainda me
lembro, como se fosse hoje.
Quando montei no meu burro
para vir-me embora, já o sol estava baixinho; quando cheguei na mata, já estava
escuro; fazia um luar manhoso, que ainda atrapalhava mais a vista da gente.
Já eu ia entrando na mata, quando
me lembrei que era sexta-feira. Meu coração deu uma pancada e a modo que estava
me pedindo que não fosse para diante. Mas fiquei com vergonha de voltar. Pois um
homem, já de idade como eu, que desde criança estou acostumado a varar por esses
matos a toda hora do dia ou da noite, hei de agora ter medo? De quê?
Encomendei-me de todo o coração
à Nossa Senhora da Abadia, tomei um bom trago na guampa que trazia sortida na
garupa, joguei uma masca de fumo na boca, e toquei o burro para diante. Fui
andando, mas sempre cismado; todas as histórias que eu tinha ouvido contar da
cova de Joaquim Paulista estavam-se-me representando na idéia: e ainda, por meus
pecados, o diabo do burro não sei o que tinha nas tripas que estava a refugar e a
passarinhar numa toada.
Mas, a poder de esporas, sempre vim
varando. À proporção que ia chegando perto do lugar onde está a sepultura, meu
coração ia ficando pequenino. Tomei mais um trago, rezei o Creio em Deus Padre,
e toquei para diante. No momento mesmo em que eu ia passar pela sepultura, que eu
queria passar de galope e voando se fosse possível, aí é que o diabo do burro
dos meus pecados empaca de uma vez, que não houve força de esporas que o fizesse
mover.
Eu já estava decidido a me apear,
largar no meio do caminho burro com sela e tudo, e correr para a casa; mas não
tive tempo. O que eu vi, talvez Vm. não acredite; mas eu vi como estou vendo este
fogo: vi com estes olhos, que a terra há de comer, como comeu os do pobre
Joaquim Paulista... mas os dele nem foi a terra que comeu, coitado! Foram os
urubus, e os bichos do mato. Dessa feita acabei de acreditar que ninguém morre de
medo; se morresse, eu lá estaria até hoje fazendo companhia ao Joaquim Paulista.
Cruz!... Ave Maria!...
Aqui o velho fincou os cotovelos
nos nós joelhos, escondeu a cabeça entre as mãos e pareceu-me que resmungou uma
Ave-Maria. Depois, acendeu o cachimbo, e continuou:
— Vm. se reparasse, havia de ver
que o mato faz uma pequena aberta da banda, em que está a sepultura do Joaquim
Paulista.
A lua batia de chapa na areia
branca do meio da estrada. Enquanto eu estou esporeando com toda a força a
barriga do burro, salta lá, no meio do caminho, uma cambada de ossinhos brancos,
pulando, esbarrando uns nos outros, e estalando numa toada certa, como gente que
está dançando ao toque de viola. Depois, de todos os lados, vieram vindo outros
ossos maiores, saltando e dançando da mesma maneira.
Por fim de contas, veio vindo lá,
de dentro da sepultura, uma caveira branca como papel, e com os olhos de fogo; e
dando pulos como sapo, foi-se chegando para o meio da roda. Dai começaram aqueles
ossos todos a dançar em roda da caveira, que estava quieta no meio, dando de vez
em quando pulos no ar, e caindo no mesmo lugar, enquanto os ossos giravam num
corrupio, estalando uns nos outros, como fogo da queimada, quando pega forte num
sapezal.
Eu bem queria fugir, mas não
podia; meu corpo estava como estátua, meus olhos estavam pregados naquela dança
dos ossos, como sapo quando enxerga cobra; meu cabelo, enroscado como Vm. está
vendo, ficou em pé como espetos.
Daí a pouco os ossinhos mais
miúdos, dançando, dançando sempre e batendo uns nos outros, foram-se ajuntando
e formando dois pés de defunto.
Estes pés não ficam quietos,
não; e começam a sapatear com os outros ossos numa roda viva. Agora são os
ossos das canelas, que lá vêm saltando atrás dos pés, e de um pulo, trás!...
se encaixaram em cima dos pés. Daí a um nada vêm os ossos das coxas, dançando
em roda das canelas, até que, também de um pulo, foram-se encaixar direitinho
nas juntas dos joelhos. Toca agora as duas pernas que já estão prontas a dançar
com os outros ossos.
Os ossos dos quadris, as costelas,
os braços, todos esses ossos que ainda agora saltavam espalhados no caminho, a
dançar, a dançar, foram pouco a pouco se ajuntando e embutindo uns nos outros,
até que o esqueleto se apresentou inteiro, faltando só a cabeça. Pensei que
nada mais teria que ver; mas ainda me faltava o mais feio. O esqueleto pega na
caveira e começa a fazê-la rolar pela estrada, e a fazer mil artes e piruetas;
depois entra a jogar peteca com ela, e a atirá-la pelos ares mais alto, mais
alto, até o ponto de fazê-la sumir-se lá pelas nuvens; a caveira gemia zunindo
pelos ares, e vinha estalar nos ossos da mão do esqueleto, como uma espoleta que
rebenta. Afinal o esqueleto escanchou as pernas e os braços, tomando toda a
largura do caminho, e esperou a cabeça, que veio cair direito no meio dos ombros,
como uma cabaça oca que se rebenta em uma pedra, e olhando para mim com os olhos
de fogo!...
Ah! meu amo!... Eu não sei o que
era feito de mim!... Eu estava sem fôlego, com a boca aberta querendo gritar e
sem poder, com os cabelos espetados; meu coração não batia, meus olhos não
pestanejavam. O meu burro mesmo estava tremer e encolhia-se todo, como quem queria
sumir-se debaixo da terra. Oh! se eu pudesse..fugir naquela hora, eu fugia ainda
que tivesse de entrar pela goela de uma sucuri adentro.
Mas ainda não contei tudo. O
maldito esqueleto do inferno — Deus me perdoe! — não tendo mais nem um
ossinho com quem dançar, assentou de divertir-se comigo, que ali estava sem pingo
de sangue, e mais morto do que vivo, e começa a' dançar defronte de mim, como
essas figurinhas de papelão que as crianças, com uma cordinha, fazem dar de mão
e de pernas; vai-se chegando cada vez mais para perto, dá três voltas em roda de
mim, dançando e estalando as ossadas; e por fim de contas, de um pulo, encaixa-se
na minha garupa...
Eu não vi mais nada depois; fiquei
atordoado. Pareceu-me que o burro saiu comigo e como maldito fantasma, zunindo
pelos ares, e nos arrebatava por cima das mais altas árvores.
Valha-me Nossa Senhora da Abadia e
todos os santos da corte celeste! gritava eu dentro do coração, porque a boca
essa nem podia piar. Era à toa; desacorçoei, e pensando que ia por esses ares
nas unhas de Satanás, esperava a cada instante ir estourar nos infernos. Meus
olhos se cobriam de uma nuvem de fogo, minha cabeça andar a roda, e não
sei mais o que foi feito de mim.
Quando dei acordo de mim, foi no
outro dia, na minha cama, a sol alto. Quando a minha velha, de manhã cedo, foi
abrir a porta, me encontrou no terreiro, estendido no chão, desacordado, e o
burro selado perto de mim.
A porteira da manga estava fechada;
como é que esse burro pôde entrar comigo para dentro, e que não sei. Portanto
ninguém me tira da cabeça que o burro veio comigo pelos ares.
Acordei como o corpo todo moído, e
com os miolos pesando como se fossem de chumbo, e sempre com aquele maldito
estalar de ossos nos ouvidos, que me perseguiu por mais de um mês.
Mandei dizer duas missas pela alma
de Joaquim Paulista, e jurei que nunca mais havia de pôr meus pés fora de casa
em dia de sexta-feira.
III
O velho barqueiro contava
esta tremenda história de modo mais tosco, porém muito mais vivo do que eu acabo
de escrevê-lo, e acompanhava a narração de uma gesticulação selvática e
expressiva e de sons imitativos que não podem ser representados por sinais
escritos. A hora avançada, o silêncio e solidão daqueles sítios, teatro desses
assombrosos acontecimentos, contribuíram também grandemente para torná-los
quase visíveis e palpáveis. Os caboclos, de boca aberta, o escutavam como olhos
e ouvidos transidos de pavor, e de vez em quando, estremecendo, olhavam em
derredor pela mata, como que receando ver surgir o temível esqueleto a empolgar e
levar pelos ares alguns deles.
— Com efeito, Cirino! disse-lhe
eu, foste vítima da mais pavorosa assombração de que ha exemplo, desde que
andam por este mundo as almas do outro. Mas quem sabe se não foi a força do medo
que te fez ver tudo isso? Além disso, tinhas ido muitas vezes à guampa, e talvez
ficasse com a vista turva e a cabeça um tanto desarranjada.
— Mas, meu amo, não era a
primeira vez que eu tomava o meu gole, nem que andava de noite por esses matos, e
como é que eu nunca vi ossos de gente dançando no meio do caminho?
— Os teus miolos é que estavam
dançando, Cirino; disso estou eu certo. Tua imaginação, exaltada a um tempo
pelo medo e pelos repetidos beijos que davas na tua guampa, é que te fez ir
voando pelos ares nas garras de Satanás. Escuta; vou te explicar como tudo isso
te aconteceu muito naturalmente. Como tu mesmo disseste, entraste na mata com
bastante medo, e, portanto, disposto a transformar em coisas do outro mundo tudo
quanto confusamente vias no meio de uma floresta frouxamente alumiada por um luar
escasso. Acontece ainda para teu mal que, no momento mais crítico, quando ias
passando pela sepultura, empaca-te o maldito burro. Faço idéia de como ficaria
essa pobre alma, e até me admiro de que não visses coisas piores!
— Mas então que diabo eram
aqueles ossos a dançarem, dançarem tão certo, como se fosse a toque de
música,- e aquele esqueleto branco, que trepou na garupa, e me levou por esses
ares?
—Eu te digo. Os ossinhos que
dançavam, não eram mais do que os raios da lua, que vinham peneirados por entre
os ramos dos arvoredos balançados pela viração, brincar e dançar na areia
branca do caminho. Os estalos, que ouvias, eram sem dúvida de alguns porcos do
mato, ou qualquer outro qualquer bicho, que andavam ali por perto a quebrar nos
dentes cocos de baguassu, o que, como bem sabes, faz uma estralada dos diabos.
—E a caveira, meu amo?... de
certo era alguma cabaça velha que um rato do campo vinha rolando pela estrada...
—Não era preciso tanto; uma
grande folha seca, uma pedra, um toco, tudo te podia parecer uma caveira naquela
ocasião.
Tudo isto te fez andar à roda a
cabeça azoinada, e o mais tudo que viste foi obra de tua imaginação e de teus
sentidos perturbados. Depois, qualquer coisa, talvez um maribondo que o picou.
— Maribondo de noite!... ora, meu
amo!... exclamou o velho com uma gargalhada.
—Pois bem!... fosse o que fosse;
qualquer outra coisa ou capricho de burro, o certo é que o teu macho saiu contigo
aos corcovos; ainda que atordoado, o instinto da conservação fez que te
agarrasses bem à sela, e tiveste a felicidade de vir dar contigo em terra mesmo
à porta de tua casa, e eis aí tudo.
O velho barqueiro ria com a melhor
vontade, zombando de minhas explicações.
— Qual, meu amo, disse ele,
réstea de luar não tem parecença nenhuma com osso de defunto, e bicho do mato,
de noite, está dormindo na toca, e não anda roendo coco.
E pode Vm. ficar certo de que,
quando eu tomo um gole, ali é que minha vista fica mais limpa e o ouvido mais
afiado.
— É verdade, e, a tal ponto, que até chegas a
ver e ouvir o que não existe.
— Meu amo tem razão; eu também,
quando era moço, não acreditava em nada disso por mais que me jurassem. Foi-me
preciso ver para crer; e Deus o livre a Vm. de ver o que eu já vi.
—Eu já vi, Girino; já vi, mas
nem assim acreditei.
—Como assim, meu amo?...
—É que nesses casos eu não
acredito nem nos meus próprios olhos, senão depois de estar bem convencido, por
todos os modos, de que eles não enganam.
Eu te conto um caso que me
aconteceu.
Eu ia viajando sozinho — por onde
não importa — de noite, por um caminho estreito, em cerradão fechado, e vejo
ir, andando a alguma distância diante de mim, qualquer coisa, que na escuridão
não pude distinguir. Aperto um pouco o passo para reconhecer o que era, e vi
clara e perfeitamente dois pretos carregando um defunto dentro de uma rede.
Bem poderia ser também qualquer
criatura viva, que estivesse doente ou mesmo em perfeita saúde; mas, nessas
ocasiões, a imaginação, não sei por quê, não nos representa senão defuntos.
Uma aparição daquelas, em lugar tão ermo e longe de povoação, não deixou de
me causar terror.
Contudo o caso não era
extraordinário; carregar um cadáver em rede, para ir sepultá-lo em algum
cemitério vizinho, é coisa que se vê muito nesses sertões, ainda que àquelas
horas o negócio não deixasse de tornar bastante suspeito.
Piquei o cavalo para passar adiante
daquela sinistra visão que me estava incomodando o espirito, mas os condutores da
rede também apressaram o passo, e se conservavam sempre na mesma distância.
Pus o cavalo a trote; os pretos
começaram também a correr com a rede. O negócio ia-se tornando mais feio.
Retardei o passo para deixá-los adiantarem-se: também foram indo mais devagar.
Parei; também pararam. De novo marchei para eles; também se puseram a caminho.
Assim andei por mais de meia hora,
cada vez mais aterrado, tendo sempre diante dos olhos aquela sinistra aparição
que parecia apostada em não me querer deixar, até que, exasperado, gritei-lhes
que me deixassem passar ou ficar atrás, que eu não estava disposto a fazer-lhes
companhia. Nada de resposta!... o meu terror subiu de ponto, e confesso que estive
por um nada a dar de rédea para trás a bom fugir.
Mas negócios urgentes me chamavam
para diante: revesti-me de um pouco de coragem que ainda me restava, cravei as
esporas no cavalo e investi para o sinistro vulto a todo galope. Em
poucos instantes o alcancei de perto e vi... adivinhem o que era?... nem que dêem
volta ao miolo um ano inteiro, não são capazes de atinar com o que era. Pois era
uma vaca!...
— Uma vaca!... como!...
— Sim, senhores, uma vaca
malhada, que tinha a barriga toda branca — era a rede, — e os quartos
traseiros e dianteiros inteiramente pretos; era os dois negros que a carregavam.
Pilhada por mim naquela caminho estreito, sem poder desviar nem para uma banda nem
para outra, porque o mato era um cerradão tapado o pobre animal ia fugindo diante
de mim, se eu parava, também parava, porque não tinha necessidade de viajar; se
eu apertava o passo lá ia ela também para diante, fugindo de mim. Entretanto se
eu não fosse reconhecer de perto o que era aquilo, ainda hoje havia de jurar que
tinha visto naquela noite dois pretos carregando um defunto em uma rede, tão
completa era a ilusão. E depois se quisesse indagar mais do negócio, como era
natural, sabendo que nenhum cadáver se tinha enterrado em toda aquela redondeza,
havia de ficar acreditando de duas uma: ou que aquilo era coisa do outro mundo,
ou, o que era mais natural, que algum assassinato horrível e misterioso tinha
sido cometido por aquelas criaturas.
A minha história nem de leve
abalou as crenças do velho barqueiro que abanou a cabeça, e disse-me,
chasqueando:
— A sua história está muito
bonita; mas, perdoe que lhe diga, eu por mais escuro que estivesse a noite e por
mais que eu tivesse entrado no gole, não podia ver uma rede onde havia uma vaca;
só pelo faro eu conhecia. Meu amo decerto tinha poeira nos olhos.
Mas vamos que Vm., quando investiu para os vultos,
em vez de esbarrar com uma vaca, topasse mesmo uma rede carregando um defunto, que
este defunto saltando fora da rede lhe lhe pulasse na garupa e o levasse pelos
ares com cavalo e tudo, de modo que Vm., não desse acordo de si, senão no outro
dia em sua casa e sem saber como?... havia de pensar, ainda, que que eram
abusões? — Esse não era o meu medo: o que eu temia, era que aqueles negros
acabassem ali comigo, e, em vez de um, carregassem na mesma rede dois defuntos
para a mesma cova!
O que dizes era impossível.
—Esse não era o meu medo: o que
eu temia, era que aqueles negros acabassem ali comigo, e, em vez de um,
carregassem na mesma rêde dois defuntos para a mesma cova!
O que dizes era impossível.
—Impossível!... e como é que me
aconteceu?... Se não fosse tão tarde, para Vm. acabar de crer, eu lhe contava
por que motivo a sepultura de Joaquim Paulista ficou sendo assim mal-assombrada.
Mas meu amo viajou; há de estar cansado da jornada e com sono.
—Qual sono!... conta-me; vamos a
isso. Pois vá escutando.
IV
O tal Joaquim Paulista era um
cabo do destacamento que naquele tempo havia aqui no Porto. Era bom rapaz e
ninguém tinha queixa dele.
Havia aqui, também, por este
tempo, uma rapariga, por nome Carolina, que era o desassossego de toda a
rapaziada.
Era uma caboclinha escura, mas bonita e sacudida,
como ela aqui ainda não pisou outra; com uma viola na mão, a rapariga tocava e
cantava que dava gosto; quando saia para o meio de uma sala, tudo ficava de queixo
caído; a rapariga sabia fazer requebrados e sapateados, que era um feitiço. Em
casa dela, que era um ranchinho ali da outra banda, era súcias todos os dias;
também todos os dias havia solados de castigo por amor de barulhos e desordens.
Joaquim Paulista tinha uma paixão
louca pela Carolina; mas ela anda de amizade com um outro camarada, de nome
Timóteo, que a tinha traz do de Goiás, ao qual queria muito bem. Vai um dia,
não sei que diabo de dúvida tiveram os dois, que a Carolina se desapartou do
Timóteo e fugiu para a casa, de uma amiga, aqui no campo Joaquim Paulista, que
há muito tempo bebia os ares por ela, achou que a ocasião era boa, e tais artes
armou, tais agrados fez à rapariga, que tomou conta dela. Ali! pobre rapaz!... se
ele adivinhasse nem nunca teria olhado para aquela rapariga. O Timóteo, quando
soube do caso, urrou de raiva e de ciúme; ele estava esperando que, passados os
primeiros arrufos da briga, ela o viria procurar se ele não fosse buscá-la, como
já de outras vezes tinha acontecido. Mas desta vez tinha-se enganado.
A rapariga estava por tal sorte embeiçada com o
Joaquim Paulista, que de modo nenhum quis saber do outro, por mais que esse
rogasse, teimasse, chorasse e ameaçasse mesmo de matar uma ou outro. O Timóteo
desenganou-se, mas ficou calado e guardou seu ódio no coração.
Estava esperando uma ocasião.
Assim passaram-se meses, sem que houvesse novidade.
O Timóteo vivia em muito boa paz com o Joaquim Paulista, que, tendo muito bom
coração, nem de leve cismava que seu camarada lhe guardasse ódio.
Um dia, porém, Joaquim Paulista teve ordem do
comandante do destacamento para marchar para a cidade de Goiás. Carolina, que era
capaz do dar a vida por ele, jurou que havia de acompanhá-lo. O Timóteo danou.
Viu que não era possível guardar para mais tarde o cumprimento de sua tenção
danada, jurou que ele havia de acabar desgraçado, mas que Joaquim Paulista e
Carolina não haviam de ir viver sossegados longe dele, e assim combinou, com
outro camarada, tão bom ou pior do que ele, para dar cabo do pobre rapaz.
Nas vésperas da partida, os dois convidaram ao
Joaquim para irem ao mato caçar. Joaquim Paulista, que não maliciava nada,
aceitou o convite, e no outro dia, de manhã, saíram os três a caçar pelo mato.
Só voltaram no outro dia de manhã, mais dois somente; Joaquim Paulista, esse
tinha ficado, Deus sabe aonde.
Vieram contando, com lágrimas nos olhos, que uma
cascavel tinha mordido Joaquim Paulista em duas partes, e que o pobre rapaz, sem
que eles pudessem valer-lhe, em poucas horas tinha expirado, no meio do mato; que
não podendo carregar o corpo, porque era muito longe, e temendo que o não
pudessem encontrar mais, e que os bichos o comessem, o tinham enterrado lá mesmo;
e, para prova disso, mostravam a camisa do desgraçado, toda manchada de sangue
preto envenenado.
Mentira tudo!... O caso foi este, como depois se
soube.
Quando os dois malvados já estavam bem longe por
essa mata abaixo, deitaram a mão no Joaquim Paulista, o agarraram, e amarraram em
uma árvore. Enquanto estavam nesta lida, o coitado do rapaz, que não podia
resistir àqueles dois ursos, pedia por quantos santos há que não judiassem com
ele, que não sabia que mal tinha feito a seus camaradas, que se era por causa da
Carolina ele jurava nunca mais pôr os olhos nela, e iria embora para Goiás, sem
ao menos dizer-lhe adeus. Era à toa. Os dois malvados nem ao menos lhe davam
resposta.
O camarada de Timóteo era mandigueiro e curado de
cobra, pegava ai no mais grosso jaracussu ou cascavel, as enrolava no braço, no
pescoço, metia a cabeça, delas dentro da boca, brincava e judiava com elas de
toda a maneira, sem que lhe fizessem mal algum. Na hora em que ele enxergava uma
cobra, bastava pregar os olhos nela, a cobra não se mexia do lugar. Em cima de
tudo, o diabo do soldado sabia um assovio com que chamava cobra, quando queria.
A hora que ele dava esse assovio, se havia por ali
perto alguma cobra, havia de aparecer por força. Dizem que ele tinha parte com o
diabo, e todo mundo tinha medo dele como do próprio capeta.
Depois que amarraram bem amarrado o pobre Joaquim
Paulista, o camarada do Timóteo desceu pelas furnas de uns grotões abaixo, e
andou - por lá muito tempo, assoviando o tal assovio que ele conhecia. O Timóteo
ficou de sentinela ao Joaquim Paulista, que estava caladinho, coitado encomendando
sua alma a Deus. Quando o soldado voltou, trazia em cada uma das ma os, apertado
pela garganta, uma cascavel mais grossa do que esta minha perna. Os bichos
desesperados batiam e se enrolavam pelo corpo do soldado, que nessa hora devia
estar medonho que nem o diabo.
Então Joaquim Paulista compreendeu que qualidade
de morte lhe iam dar aqueles dois desalmados. Pediu, rogou, mas debalde, que, se
queriam matá-lo, pregassem-lhe uma bala na cabeça, ou enterrassem-lhe uma faca
no coração por piedade, mas não o fizeram morrer de um modo tão cruel.
— Isso querias tu, disse o soldado, para nós
irmos para à forca! nada! estas duas meninas é que hão de carregar com a culpa
de tua morte; para isso é que fui buscá-las; nós não somos carrascos.
— Joaquim, disse o Timóteo, faze teu ato de
contrição e deixa-te de histórias.
— Não tenhas medo, rapaz!... continua o outro.
Estas meninas são muito boazinhas; olha como elas estão me abraçando!.. Faze de
conta que são os dois braços da Carolina, que vão te apertar num gostoso
abraço...
Aqui o Joaquim põe-se a gritar com quanto força
tinha, a ver se alguém, acaso, podia ouvi-lo e acudir-lhe. Mas, sem perder tempo,
o Timóteo pega num lenço e atocha-lhe na boca; mais que depressa o outro
atira-lhe por cima os dois bichos, que no mesmo instante o picaram por todo o
corpo. Imediatamente mataram as duas cobras, antes que fugissem. Não levou muito
tempo, o pobre rapaz estrebuchava, dando gemidos de cortar o coração, e deitava
sangue pelo nariz, pelos ouvidos e por todo o corpo.
Quando viram que o Joaquim já quase não podia
falar, nem mover-se, e que não tardava a dar o último suspiro, desamarraram-no,
tiraram-lhe a camisa, e o deixaram ai perto das duas cobras mortas.
Saíram e andaram todo o dia, dando voltas pelo
campo.
Quando foi anoitecendo, embocaram pela estrada da
mata, e vieram descendo para o porto. Teriam andado obra de uma légua, quando
enxergaram um vulto, que ia andando adiante deles, devagarinho, encostado num pau
e gemendo.
— É' ele, disse um deles espantado; não pode
ser outro.
— Ele!... é impossível... só por um milagre.
— Pois eu juro em como não é outro, e nesse
caso toca a dar cabo dele já.
— Que dúvida!
Nisto adiantaram-se e alcançaram o vulto
Era o próprio Joaquim Paulista!
Sem mais demora- socaram-lhe a faca no coração, e
deram-lhe cabo dele. — Agora como há de ser?, diz um deles não há remédio
senão fugir, senão estamos perdidos...
— Qual fugir! o comandante talvez não cisme
nada; e no caso que haja alguma cousa, estas cadeiazinhas desta terra são nada
para mim?... Portanto vai tu escondido, lá embaixo no porto, e traz uma enxada;
enterremos o corpo ai no mato; e depois diremos que morreu picado de cobra.
Isto dizia o Timóteo, que, com o sentido na
Carolina, não queria perder o fruto do sangue que derramou.
Com efeito assim fizeram; levaram toda a noite a
abrir a sepultura para o corpo, no meio do mato, de uma banda do caminho que,
nesse tempo, não era por ai, passava mais arredado. Por isso não chegaram,
senão no outro dia de manhã.
— Mas, Cirino, como é que Joaquim pôde escapar
das mordeduras das cobras, e como se veio a saber de tudo isso?...
— Eu já lhe conto, disse o velho.
E depois de fazer uma pausa para acender o
cachimbo, continuou:
— Deus não queria que o crime daqueles
amaldiçoados ficasse escondido. Quando os dois soldados deixaram por morto o
Joaquim Paulista, andava por aquelas alturas um caboclo velho, cortando palmitos.
Aconteceu que, passando por ai não muito longe, ouvi voz de gente, e veio vindo
com cautela a ver o que era: quando chegou a descobrir o que se estava passando,
frio e tremendo de susto, o pobre velho ficou espiando de longe, bem escondido
numa mota, e viu tudo, desde a hora em que o soldado veio da furna com as cobras
na mão. Se aqueles malditos o tivessem visto ali, tinham dado cabo dele também.
— Quando os dois se foram embora, então o
caboclo, com muito cuidado, saiu da moita, e veio ver o pobre rapaz, que estava
morre não morre!... O velho era mesinheiro muito mestre, e benzedor, que tinha
fama em toda a redondeza.
Depois que olhou bem o rapaz, que já com a língua
perra não podia falar, e já estava cego, andou catando pelo mato umas folhas que
ele lá conhecia, mascou-as bem, cuspiu a saliva nas feridas do rapaz, e depois
benzeu bem benzidas elas todas, uma por uma.
Quando foi daí a uma hora, já o rapaz estava mais
aliviado, e foi ficando cada vez a melhor, até que, enfim, pôde ficar em pé,
já enxergando alguma cousa.
Quando se podendo andar um pouco, o caboclo cortou
um pau, botou na mão dele, e veio com ele, muito devagar, ajudando-o a caminhar
até que, a muito custo, chegaram na estrada.
Ai o velho disse:
— Agora você esta na estrada, pode ir indo
sozinho com seu vagar, que daqui a nada você está em casa.
Amanhã, querendo Deus, eu lá vou vê-lo outra
vez. Adeus, camarada; Nossa Senhora te acompanhe.
O bom velho mal pensava, que, fazendo aquela obra
de caridade, ia entregar outra vez à morte aquele infeliz a quem acaba de dar a
vida. Um quarto de hora, aos que se demorasse, Joaquim Paulista estava escapo. Mas
o que tinha de acontecer estava escrito lá em cima.
Não bastava ao coitado do Joaquim Paulista ter
sido tão infeliz em vida, a infelicidade o perseguiu até depois de morto.
O comandante do destacamento, que não era nenhum
samora, desconfiou do caso. Mandou prender os dois soldados, e deu parte na vila
ao juiz, que daí a dois dias veio com o escrivão para mandar desenterrar o
corpo. Vamos agora saber onde é que ele estava enterrado. Os dois soldados, que
eram os únicos que podiam saber, andavam guiando a gente para uns rumos muito
diferentes, e como nada se achava, fingiam que tinham perdido o lugar.
Bateu-se mato um dia inteiro sem se achar nada.
Afinal de contas os urubus é que vieram mostrar
onde estava a sepultura. Os dois soldados tinha enterrado mal o corpo. Os urubus
pressentiram o fétido da carniça e vieram-se ajuntar nas árvores em redor.
Desenterrou-se o corpo, e via-se então uma grande facada no peito, do lado
esquerdo. O corpo já estava apodrecendo e com muito mau cheiro. Os que o foram
enterrar de novo, aflitos por se verem livres daquela fedentina, mal apenas
jogaram à pressa alguns punhados de terra na cova, e deixaram o corpo ainda mais
mal enterrado do que estava.
Vieram depois os porcos, os tatus, e outros bichos,
cavoucaram a cova, espatifaram o cadáver, e andar espalhando os ossos do defunto
ai por toda essa mata.
Só a cabeça é que dizem que ficou na sepultura.
Uma alma caridosa, que um dia encontrou um braço
do defunto no meio da estrada, levou-o para a sepultura, encheu a cova da terra,
socou bem, e fincou ai uma cruz. Foi tempo perdido; no outro dia a cova estava
aberta tal qual como estava dantes. Ainda outras pessoas depois teimavam em
ajuntar os ossos e enterrá-los bem. Mas no outro dia a cova estava aberta, assim
como até hoje está.
Diz o povo que enquanto não se ajuntar na
sepultura até o último ossinho do corpo de Joaquim Paulista, essa cova não se
fecha. Se é assim, já se sabe que tem de ficar aberta para sempre. Quem é que
há de achar esses ossos que, levados pelas enxurradas, já lá foram talvez
rodando por esse Parnaíba abaixo?
Outros dizem que, enquanto os matadores de Joaquim
Paulista estivessem vivos neste mundo, a sua sepultura havia de andar sempre
aberta, nunca os seus ossos teriam sossego, e haviam de andar sempre assombrando
os viventes cá neste mundo.
Mas esses dois malvados já há de muito tempo
foram dar contas ao diabo do que andavam fazendo por este mundo, e a cousa
continua na mesma.
O antigo camarada da Carolina, esse morreu no
caminho de Goiás; a escolta que o levava, para cumprir sentença de galés por
toda a vida, com medo que ele fugisse, pois o rapaz tinha artes do diabo, assentou
de acabar com ele; depois contaram uma história de resistência, e não tiveram
nada.
O outro, que era currado de cobra, tinha fugido;
mas como ganhava a vida brincando com cobras e matava gente com elas, veio também
a morrer na boca de uma delas.
Um dia em que estava brincando com um grande urutu
preto, à vista de muita gente que estava a olhar de queixo caído, a bicha
perdeu-lhe o respeito, e em tal parte e em tão má hora lhe deu um bote, que o
maldito caiu logo estrebuchando, e em poucos instantes deu a alma ao diabo. Deus
me perdoe, mas aquela fera não podia ir para o céu. O povo não quis por maneira
nenhuma que ele fosse enterrado no sagrado, e mandou atirar o corpo no campo para
os urubus.
Enfim eu fui à vila pedir ao vigário velho, que
era o defunto padre Carmelo, para vir bendizer a sepultura de Joaquim Paulista, e
tirar dela essa assombração que aterra todo este povo. Mas o vigário disse que
isso não valia de nada; que enquanto não se dissessem pela alma do defunto
tantas missas quantos ossos tinha ele no corpo, contando dedos, unhas, dentes e
tudo, nem os ossos teriam sossego, nem a assombração acabaria, nem a cova se
havia de fechar nunca.
Mas se os povos quisessem, e aprontassem as
esmolas, que ele dizia as missas, e tudo ficaria acabado. Agora que há de contar
quantos ossos a gente tem no corpo, e quando é que esses moradores, que não são
todos pobres como eu, hão de aprontar dinheiro para dizer tanta missa?...
Portanto já se vê, meu amo, que o que lhe contei
não é nenhum abusão; é cousa certa e sabida em toda esta redondeza. Todo esse
povo ai está que não me há de deixar ficar mentiroso.
À vista de tão valentes provas, dei pleno
crédito a tudo quanto o barqueiro me contou, e espero que a meus leitores
acreditarão comigo, piamente, que o velho barqueiro do Parnaíba, uma bela noite,
andou pelos ares montado em um burro, com um esqueleto na garupa. |