Práticas Sociais e Ciberespaço
Mônica Bragaglia
A CONFIGURAÇÃO DA REALIDADE ATUAL
A veloz transformação que vêm ocorrendo, nos últimos tempos, em todas as dimensões constituintes do real se expressa mais diretamente nas novas tecnologias que configuram a era digital. Ciberespaço, virtualidade, inteligência coletiva, complexidade e competências são termos que escuta-se freqüentemente e que começam a ser incorporados em nosso cotidiano. Mesmo que seus significados não sejam totalmente claros para maioria das pessoas, é certo a inviabilidade da negação de suas presenças.
Uma das questões que perpassam esta discussão é o reconhecimento da dimensão positiva ou negativa destas mudanças. Para muitos consideradas como « impacto », no sentido de choque, destruição. Para outros consideradas como a solução viável para os problemas atuais. Nosso posicionamento pode ser expresso pelas idéias de Lévy
« Aqueles que denunciama cibercultura hoje têm uma estranha semelhança com aqueles que desprezavam o rock nos anos 50 ou 60. O rock era anglo-americano, e tornou-se uma indústria. Isso não o impediu, contudo, de ser o porta-voz das aspirações de uma enorme parcela da juventude mundial. Também não impediu que muitos de nós nos divertíssemos ouvindo ou tocando juntos essa música. A música pop dos anos 70 deu consciência a uma ou duas gerações e contribuiu para o fim da Guerra do Vietnã. «É bem verdade que nem o rock nem a música o resolveram o problema da miséria ou da fome no mundo. Mas isso não é razão para « ser contra ? »
É inviável negar-se essa realidade. A era digital expressa principalmente pela internet viabiliza a mobilização de variados saberes ao mesmo tempo. Disponibiliza perspectivas, conhecimentos e posições com relação a diferentes temáticas. Permite o acesso a informações em segundos e instaura um movimento de inovação permanente.
A existência deste universo, denominado de ciberespaço, permite a vivência de novas e diversas experiências em todas as esferas da realidade. Ele configura-se como o « universo das redes digitais, como lugar de encontros e aventuras, terreno de conflitos mundiais, nova fronteira econômica e cultural. », coloca à vista novas formas de relação, « traz consigo maneiras de perceber, sentir, lembrar-se, trabalhar, jogar e estar junto. »
Nesse sentido, cria-se uma comunicação incessante e coletiva. As pessoas interagem de diferentes pontos e com diversos interesses, a informação circula, cresce, expande-se atinge lugares e pessoas que talvez de outra forma não acessariam o dado em questão.
O pressuposto da construção coletiva dos saberes é vivido intensamente, o saber de cada um disponibiliza-se e agrega-se ao saber do outro. A interação entre todos saberes viabiliza o conhecimento de todos. Os saberes antes desvalorizados ou mesmo tidos como inválidos começam a ser reconhecidos pelos diferentes olhares que nele se colocam e pelas diferentes facetas que assume na interação com o outro, interação esta vivida no tempo presente, em tempo real. As habilidades necessárias para o manejo com estes saberes são constantemente mobilizadas. Constrói-se o que Lévy denomina de inteligência coletiva, « uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências »
Neste cenário, a existência em potência é algo comum, cotidiano, intrínseco. Cada elemento pode explicitar e assumir sua dimensão virtual, a dimensão do possível que não é real nem atual. Cada agente social, cada questão, cada entidade tem a possibilidade de antecipar virtualmente sua situação, de problematizar-se, de interrogar-se e de constituir uma zona problemática, de tensão e conflitos, virtualizar-se.
Em outras palavras, « descobrir uma questão geral à qual ela se relaciona, em fazer mutar a entidade em direção a essa interrogação e em redefini a atualidade de partida como resposta a uma questão particular »
A complexidade está dada. Pensar o real hoje, como explicitou-se anteriormente, é considerar a gama de elementos que o compõem. Cada situação insere-se numa « tecido de relações », como refere Bachelard, e configura-se a partir das interações estabelecidades no mesmo.
Cada fenômeno constitui-se neste tecido e, por esta razão, comporta suas tramas. É necessário apreender as relações que o conformam e compreender as interações entre os elementos que o constituem, perceber seu sentido, sua lógica, sua complexidade. « Deveríamos, portanto, ser animados por um princípio de pensamento que nos permitisse ligar as coisas que nos parecem separadas, umas em relação as outras. »
A capacidade de articulação de saberes e situações, necessária para lidar com a complexidade do real, pode ser viabilizada pelas competências que se possui. Isto porque, « uma competência pressupõe a existência de recursos mobilizáveis, mas não se confunde com eles, pois acrescenta aos mesmos ao assumir sua postura em sinergia com vistas a uma ação eficaz em determinada situação complexa. »
A ação competente expressa a apreensão do real em sua complexa constituição. Mobiliza diversos saberes e instrumentos para interagir com tal complexidade. Explicita a apreensão das redes digitais e da virtualidade do fenômeno. Por esta razão, Perrenoud considera a competência um conjunto de esquemas. Para ele,
« um esquema é uma totalidade constituída, que sustenta uma ação ou operação única enquanto uma competência com uma certa complexidade envolve diversos esquemas de percepções, pensamentos, avaliação e ação, que suportam inferências, antecipações, transposições analógicas, generalizações, apreciação de probabilidades, estabelecimento de um diagnóstico a partir de um conjunto de índices, busca de informações pertinentes, formação de uma decisão, etc. »
Competências, complexidade, ciberespaço, virtual e inteligência coletiva demonstram inegavelmente a configuração da realidade atual. A mesma realidade em que práticas sociais já existentes movimentam-se para uma nova constituição e inserção no real e que práticas sociais emergentes inserem-se com uma nova gama de proposições muitas vezes incongruentes com este cenário.
O CONSELHO TUTELAR COMO ESPAÇO POSSIVEL DE UMA NOVA PRATICA SOCIAL
Dentro do cenário das novas tecnologias, era digital, ciberespaço, virtual... pode-se focalizar práticas sociais que concatenam-se com estas rupturas/mudanças e práticas sociais alheias e desagregadas dessa realidade.
Estas mudanças traduzem uma nova forma de organização da vida em sociedade. A emergência de situações até então inusitadas, a acelerada busca por diferentes alternativas de "enfrentamento" das situações decorrentes de relações que fogem a apreensão humana, o surgimento de variadas formas de pensamento e tentativas de explicação dos fenômenos cada vez mais complexos, são características dessa nova etapa da civilização.
No caso das legislações relativas a criança e ao adolescente, avançou-se de um modelo legislativo com pressupostos que definiam a criança e o adolescente responsáveis por sua situação irregular para um modelo com prerrogativas de consideração destes indivíduos como seres em condição peculiar de desenvolvimento e, portanto, merecedores de direitos garantidos por parte da família, da sociedade e do Estado.
Nessa perspectiva as conquistas referentes a criança e ao adolescente são expressas pela lei 8069/90 denominada de Estatuto da Criança e do Adolescente, esta lei dispõe sobre o Sistema de Garantia de Direitos. Este sistema que representa a articulação entre a esfera pública e a privada, traz consigo prerrogativas de instauração de novas práticas sociais, em decorrência da ruptura com as práticas anteriores.
As mudanças que vem agregadas ao Estatuto da Criança e do Adolescente lei 8069/90, expressas pela Doutrina de Proteção Integral, apontam para uma concepção inovadora relacionada às políticas públicas voltadas à criança e ao adolescente.
Além da concepção inovadora, esta lei traz em seu bojo a criação de estruturas peculiares para contribuir na concretização desses pressupostos, quais sejam: Os Conselhos Municipais da Criança e do Adolescente, os Fundos Municipais e os Conselhos Tutelares.
Tomando-se como exemplo o Conselho Tutelar, órgão criado com o fim de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, pode-se tensionar de forma bastante rica essa realidade. Partindo-se de dados do real que demonstram como este órgão vem se constituindo pode-se analisar a incidência e a relação do mesmo com este cenário.
Os dados que serão demonstrados advém de uma pesquisa intitulada « Conselho Tutelar : a institucionalização de uma nova prática social ? » , cuja amostra se constituiu em 40% dos Conselheiros Tutelares do município de Porto Alegre. Esta pesquisa buscou identificar e inferir algumas análises acerca das condições individuais dos agentes sociais que ocupam a função de Conselheiro Tutelar, as características das práticas empreendidas pelos mesmos e suas percepções sobre as relações estabelecidas com os demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos.
É importante salientar que o município de Porto Alegre elege seus Conselheiros por voto universal, direto e facultativo; a gestão tem duração de 3 anos e os critérios para candidatura, além dos previstos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, são os dispostos pela lei municipal 6787 e complementados pela lei municipal 8067.
A realidade explicitada através da pesquisa revelou um certo descompasso dos agentes sociais envolvidos no trabalho do Conselho Tutelar com a dinâmica atual da realidade. Este descompasso evidenciou-se pela existência de situações onde se constata que esses agentes sociais detêm uma frágil discussão referente ao Estatuto da Criança e do Adolescente enquanto política de direcionamento das ações dirigidas a crianças e adolescentes bem como com relação ao significado e as ações a serem desempenhadas pelo Conselho Tutelar.
O entendimento com relação ao Conselho Tutelar revelado na pesquisa traduz o que está posto pela legislação federal, isto é, órgão de garantia de direitos a criança e ao adolescente ou a idéia de coerção e definição de comportamentos, sob uma imagem de ajuda e aconselhamento denotando uma idéia de órgão canalizador de detentor da noção de responsabilidade e de autoridade máxima relativa ao trato com crianças e adolescentes.
De uma forma muito reduzida encontra-se falas que relacionam o órgão CT com órgão de aplicação de medidas e como órgão de atuação política associada com o componente de intervenção direta na realidade.
Pode-se observar também que as principais atividades desenvolvidas pelos Conselheiros Tutelares são voltadas em grande parte das vezes para ações de acolhida e esclarecimentos onde, necessariamente, não estão incluídas situações de violação de direitos.
No que se refere as principais dificuldades encontradas no exercício da função evidenciam-se a ausência de uma efetiva retaguarda de atendimento e, em segundo aspecto, a falta de estrutura e qualificação do próprio órgão.
As colocações feitas através das entrevistas revelaram que o entendimento das demais instituições sobre o Conselho Tutelar expressa-se nas ações feitas pelas mesmas e, nesse sentido, pode-se identificar dois grandes eixos caracterizantes destas concepções. Um primeiro eixo traduz o entendimento do CT como órgão depositário de todas as questões que envolvem criança e adolescente, mesmo não se constituindo em situação de violação de direitos. Nessa perspectiva há uma desresponsabilização por parte das demais instituições no trato com esta parcela da população.
Um segundo eixo central que explicita o entendimento das demais instituições no que se refere aos CT traduz a demanda por um órgão de controle e autoridade com relação a situações que demandam na verdade uma ação posta a estes aspectos.
Além destes aspectos notou-se uma forte presença de elementos que caracterizam a configuração deste órgão como detentor do poder e da autoridade frente a tudo e a todos. Isso é demonstrado em falas que refletem a demanda das instituições pelo CT não como um órgão de zelo pela garantia de direitos nem como órgão a ser buscado quando na identificação de direitos violados, mas sim como um órgão que pelo poder e autoridade que detêm, assusta e impõe respeito.
Dentre as principais tendências descobertas na pesquisa identificou-se: necessidade de "formação" específica , anterior/concomitante, para a função de Conselheiro Tutelar; necessidade de maior clareza com relação as atribuições do Conselho Tutelar por parte de todos agentes envolvidos; importância de realizar uma reorganização na forma de gestão do órgão; necessidade de ampliação e qualificação das ações integradas de responsabilidade de todos agentes sociais envolvidos.
A VINCULAÇÃO COM A ERA VIRTUAL
As tendências identificadas na pesquisa demonstraram o distanciamento dos agentes sociais que constituem o Conselho Tutelar dos movimentos e mudanças que caracterizam a era digital. É imprescindível que se possa pensar as tendências apontadas na pesquisa inseridas nesta nova dinâmica.
Nessa perspectiva, acredita-se que uma « formação » próxima as necessidades demandadas por esta nova era deve possibilitar ao agentes sociais implicados nesse processo o confronto com situações problemáticas e inusitadas, situações nas quais necessitem mobilizar diferentes saberes e habilidades para seu enfrentamento. Esta idéia expressa que
« O perfil instaurado, em um espaço de formação, que coloca o formado em estado permanente de rupturas e de novas construções permite, com maior probabilidade, a formação de um trabalhador competente. Isto porque, cada vez mais, sabe-se que há uma "(...) relação indissolúvel entre processos vitais e processos de conhecimento" e, portanto, o desencadeamento dos processos de aprendizagem deverá estar associado ao desenvolvimento de vivências que partam das experiências já acumuladas e, também, das demais em que o formado circulará no seu futuro profissional. »
Nisto está imbricada a idéia de conceber a realidade como inesperada e cada vez mais complexa demandatária de posturas e práticas agéis e que disponibilizem e acessem diferentes saberes. A idéia de composição do órgão por agentes cujos critérios possibilitam a diversidade em sua constituição vai então ao encontro desta nova realidade e permite sua operacionalização. A questão central reside no fato de tornar concreta a formação para este tipo de ação resgatando e otimizando os diversos saberes que os agentes sociais possuem.
Perrenoud, aponta algumas características que devem permear a formação na dos alunos e que podem servir de parâmetro para a formação dos Conselheiros Tutelares, quais sejam :
« -considerar os conhecimentos como recurso a serem mobilizados ;
-trabalhar regularmente por problemas ;
-criar ou utilizar outros meios de ensino ;
-negociar e conduzir projetos com seus alunos ;
-adotar um planejamento flexível e indicativo e improvisar ;
-implementar e explicitar um novo contrato didático ;
-praticar uma avaliação formadora em situação de trabalho ;
-dirigir-se para uma menor compartimentação disciplinar. »
Consequentemente, este tipo de formação tende a possibilitar a gestão do Conselho Tutelar sob outro prisma, visto que seu gerenciamento será demarcado por uma visão de realidade imbuída das características dessa nova era.
A gestão que se faz necessária aponta para um planejamento permanente, que de conta da complexidade do real com todas suas situações inusitadas e que permita uma vinculação com os paradigmas postos e orientadores da era que vivenciamos hoje. Pode-se dizer que este tipo de gestão possibilitará a autonomia e, consequentemente, a competência necessária para a função.
Cabe salientar que a autonomia mencionada é entendida na perspectiva da complexidade, onde, se pressupõe que « cada ser humano é autonômo, mas sua autonomia depende do meio exterior. ». Reforça-se com isso a idéia de que todos os fenômenos inserem-se dentro de uma rede de relações que constitui sua complexidade.
Em síntese pode-se apontar algumas questões a serem problematizadas, quais sejam : a instauração de práticas formativas que habilitem os agentes sociais envolvidos com o Conselho Tutelar a lidar com situações inusitadas, inesperadas que demandem uma postura ágil, flexível e criativa ; o exercíco de práticas de uso dos recursos disponíveis através das novas tecnologias aproximando e criando canais de interação permanente entre diversos saberes que circulam sobre este fenômeno ; a incorporação de práticas de gestão em que se evidenciem ações estratégicas, sintonizadas com os novos movimentos da atualidade e explicitadoras de suas influências na realidade social e, ainda, a utilização das redes digitais e dos mecanismos da era virtual de maneira a circular e interagir com todas esferas envolvidas no fenômeno em questão.
Assim, busca-se sobretudo evidenciar a imprescindibilidade de que este órgão, assim como todos os demais, sintonize-se com esses novos movimentos do real permitindo desa forma uma inserção competente na realidade. Para tanto, é necessário que se lançe um olhar diferenciado para este fenômeno. Um olhar que permita extrapolar um discurso oficial existente em torno dessa realidade e construir proposições que visem a concretização de prerrogativas verdadeiramente relacionadas com a garantia de direitos a infância e juventude dentro de uma sintonia com a nova dinâmica da realidade.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
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