"Estranho Estrangeiro " [1]

Sobre "O Estrangeiro" de Albert Camus

    ©  Eduardo de Quina

 

 

Esta história, estranha e desconcertante, começa com a morte da mãe de Meursault. O "herói trágico", desta história, recebe um telegrama que o informa da morte da mãe. Esta, morre num asilo onde o filho a havia colocado, porque, e sem que nada o faça prever, já não têm nada para dizer um ao outro. "...Nem a minha mãe, nem eu, esperávamos já alguma coisa um do outro, nem aliás de ninguém, e que os dois nos havíamos habituado às nossas vidas."[2] Mais tarde, perguntam-lhe se gosta da mãe. Responde que "...isso não queria dizer nada. Todos os seres saudáveis tinham, em certas ocasiões, desejado, mais ou menos, a morte das pessoas que amavam." [3]Tudo isto se torna estranho e, é notória a contradição do nosso herói, pois "...a minha natureza era feita de tal modo que as minhas necessidades físicas perturbavam frequentemente os meus sentimentos."[4] Acrescente-se, ainda, que no enterro Meursault revela uma total ausência de sentir. Não sente profundamente a morte da mãe, não chora, não quer ver o corpo e note-se, ainda, o facto de não saber a sua idade.
    No entanto, há que acrescentar que ao longo da história, o calor, o sol, perturbam "conscientemente" as atitudes do nosso personagem. Durante a vigília ao corpo da mãe fuma e bebe café com leite. Gestos que, apesar de aparentemente simples, vão ter algum peso no desfecho da história. Esconde algo, não deixa transparecer exteriormente os seus desejos e angústias. Não se manifesta pelo desgosto de perda da mãe.
    Logo após o enterro regressa a casa e, exactamente, no dia seguinte, o nosso herói volta a surpreender-nos, inicia uma relação com Maria, aqui podemos assistir a uma ida ao cinema e banhos de mar. Tudo actos do quotidiano comum, não fosse o facto de tudo isto se passar um dia depois do enterro da mãe.
    Esta também poderia ser uma história simples de amor. Maria pergunta-lhe se a amava e, com aparente simplicidade diz-lhe que isso "...não queria dizer nada, mas que lhe parecia que não."[5] Note- se, que há uma aparente estranheza na relação de Meursault com tudo o que o rodeia, há como que um desfasamento, uma distância, um alheamento face ao real. Há, apenas, uma solidão que o persegue, desde o princípio até ao fim da história. O mundo, a realidade, os outros aparecem-lhe como que distantes. Na relação eu-mundo, Meursault, revela uma iminente falta de solidariedade. Quando o personagem já só espera o inevitável assistimos a uma abertura nesta relação eu-mundo
    O herói demonstra uma estranha falta de sensibilidade. O amor de Maria nada lhe diz, tal como a morte da mãe. Na sua relação com o mundo, Meursault, vive apenas o dia que passa, o amanhã nada lhe diz. Homem entre outros, face ao mundo e aos próximos não se esgota em relações. Não mente a Maria e não tem uma ligação forte à mãe.
    Após a morte da mãe estabelece com Raimundo, de quem aparentemente se torna amigo, uma relação estranha e desarticulada. Envolve-se, com este, num estranho jogo que vai acabar com a queda do nosso herói. Envolvência essa que acaba por englobar um fim de semana em conjunto numa casa de praia.
Na praia, dá-se o encontro com alguns árabes que perseguem Raimundo para um ajuste de contas. Debaixo de um sol, tórrido, que afecta e ao mesmo tempo dá uma clareza de pensar a Meursault. Depois, de um primeiro contacto com os árabes, Meursault regressa à praia e, sem qualquer razão aparente, dispara alguns tiros à queima roupa sobre um árabe. Após o crime é preso, julgado e condenado à pena capital.
    Nesta segunda parte da história, assistimos aos dias de cativeiro de Meursault e ao seu julgamento, durante o qual, não dá mostras de arrependimento e é condenado.
    O interrogatório visa julgar não só o crime, mas também a pessoa e a respectiva alma. É acusado, sem hesitação, de insensibilidade. "Os investigadores tinham sabido que eu «dera provas de insensibilidade» no dia do enterro."[6] Este acto, consciente, acarreta no tribunal enorme importância.
    Durante este período, que vai desde a prisão à condenação, Meursault, mostra-se um "homem de pouca fé", ou melhor, é um homem sem fé. Perante o juiz de instrução e um crucifixo diz não crer e, diante tamanha falta de fé o juiz murmura que "«Nunca tinha visto uma alma tão empedernida como a sua. Os criminosos que aqui vieram, choraram sempre diante desta imagem de dor»". [7]
    Diante de si mesmo, e de todos os seus actos, não dá mostras de arrependimento, mas confessa que "...experimentava um certo aborrecimento." [8]
    A par de todo este clima aparentemente aterrador, Meursault, não se sentia infeliz. Aprende a viver na prisão, aprende, ainda, que recordar é o melhor e, entra em autênticos jogos de memória e de imaginação para poder passar os dias numa calma aparente.
    Na hora da verdade, e perante a sua própria imagem, não mente. Apesar da absurdidade de uma vida aparentemente simples, Meursault, não falta à verdade, mesmo que esta lhe custe a vida.
    Perante todos os factos, o procurador acusa-o de "«...de ter assistido ao enterro da mãe com um coração de criminoso»."[9] No absurdo do acaso da vida, e dos dias, na absurdidade dos seus actos, é condenado e nada nem ninguém, nem ele mesmo o podem salvar.
    Este homem, que vive a sensibilidade do momento, torna-se um "Estrangeiro" no olhar dos outros que o rodeiam. É alguém que apesar de aparentemente adaptado é acusado de ser não solidário com os outros e a sociedade. "«...O vazio de um coração como o que descobrimos neste homem se torna num abismo onde a sociedade pode sucumbir»."[10] Meursault vive à margem da sociedade, tudo, nesta, se torna aparentemente normal e alheio à sensibilidade deste homem.
    Depois de condenado à morte tem uma estranha sensação de que algo lhe foge, é assaltado por "...recordações de uma vida que já não lhe pertencia."[11] Mais uma vez, recusa ajuda divina e é ele quem excomunga um capelão por amor a este mundo, um amor a Maria. Impõe-se-lhe o problema da morte e, perante a precariedade da vida, responde ao capelão. "«...se não morrer agora, morrerá mais tarde. Voltará a pôr-se o mesmo problema. Como irá abordar terrível prova?» Respondi que a abordaria exactamente como agora."[12]
    Apesar de tudo e, perante a consciência da morte, da sua condenação, era feliz e aberto "...pela primeira vez à terna indiferença do mundo.",[13] da sua realidade e do humano. Sempre consciente, deseja por fim "...que houvesse muito público no dia da minha execução e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio." [14]
    E "Neste momento, e no limite da noite, soaram apitos. Anunciavam possivelmente partidas para um mundo que me era para sempre indiferente."[15]
    Homem absurdo, sempre consciente de si mesmo e dos seus actos, é condenado. Deslocado da sociedade e de Deus tudo lhe é permitido. Debaixo de um sol, que nos esmaga e nos torna lúcidos, este personagem, um dia depois da morte da mãe inicia uma relação e desfruta dos prazeres da vida. O mesmo sol faz com que mate um árabe sem que alguma razão o justifique. Na véspera da sua condenação diz que "...fora feliz e que ainda o era."[16]
    Na relação eu-mundo, o nosso herói não é bom nem mau, é o absurdo que comanda a existência. E diante da sua própria finitude, este ser-no-mundo, é o absurdo da condição humana no dualismo inultrapassável espírito-natureza.
    Não obstante, e sem que nada o faça prever, Meursault, tem medo de perder este mundo onde, apesar de uma existência que não explica e onde ele mesmo não se explica, sente-se feliz. Neste confronto eu-mundo, apesar da inexplicabilidade, da perda de sentido, ainda se é feliz. O próprio amor é algo desconexo e não se explica, pois o amor só tem sentido na sua paixão pelo "absoluto", não se pode esgotar no dia-a-dia e na sensibilidade do momento presente.
    Condenado, onde o mais pequeno incidente tem importância, este homem não se justifica, é inocente. Tudo, na sua existência, se torna aparentemente inexplicável: o amor, a amizade, a vida, a morte, o próprio Homem na sua condição de ser-no-mundo. Alguém a quem a morte estranhamente amedronta. E sofre. "...não me sentia desesperado. Tinha apenas medo, como era natural."[17] No limite do mundo e da vida este homem, condenado, reage, inocente, à falta, ao medo de perder este mundo onde era feliz. Como julgá-lo? Será legitimo julgá-lo? Desprovido de tudo e, para quem Deus não existe, tudo lhe é permitido. Feliz, inocente, como condená-lo?
    Meursault, consciente das relações eu-mundo, é um desesperado, um melancólico, um deslocado e não solidário. No entanto, há uma vida que o prende, que lhe foge. Há uma falta que o condena, que o mata. Há uma solidão, uma estrutura que o arrasta, que o prende e o entrega, feliz, ao absurdo, à morte.

 


[1] -  Entendemos repescar o titulo de uma obra de Robert Bréchon; «Estranho Estrangeiro – Uma biografia de Fernando Pessoa», por acharmos que este titulo se adequava a este nosso pequeno texto sobre “O Estrangeiro” de Albert Camus.

[2] - Camus, Albert; «O Estrangeiro», Lisboa, Livros do Brasil, 1999, p. 175.

[3] - Id., ibidem, p. 140.

[4] - Id., ibidem, p. 140.

[5] - Id., ibidem, p. 95.

[6] - Id., ibidem, p. 139.

[7] - Id., ibidem, p. 146.

[8] - Id., ibidem, p. 146.

[9] - Id., ibidem, p. 186.

[10] - Id.,  ibidem, p. 195.

[11] - Id., ibidem, p. 200.

[12] - Id., ibidem, p. 219.

[13] - Id., ibidem, p. 226.

[14] - Id., ibidem, p. 226.

[15] - Id., ibidem, p. 225.

[16] - Id., ibidem, p. 226.

[17] - Id., ibidem, p. 218.