ESTRATÉGIAS
--- Sobre o filosofar do
filosofar
"0 Pensamento é uma qualidade própria da
alma que a si mesma se multiplica.
Heraclito de Éfeso (Séc. VI-V A.C.)
Mil crenças nos
atravessam e sustentam, fazem parte dos referentes de estabilidade que nos permitem
flutuar sobre a epiderme fluida do quotidiano. E este, na sua aparente objectividade,
consente uma desmultiplição de vertentes cujo índice de realidade nem sempre coincide
com a imagem-padrão que nos é dada pelo "espírito do Tempo" [1]. Essa imagem
é uma arquitectura sintética na qual se misturam lugares-comuns, teorias,
mundividências, signos, aspirações, complexo e caótico tecido de que são feitas as
civilizações. Perante ela sistematicamente nos posicionamos, por ela nos medimos, a ela
tacitamente regressamos sempre que pressentimos a suspeita de excessivos desvios. [2]
Trata-se, portanto, de pensar esta relação, este vai-vem
de aproximações e distanciamentos, esta dimensão dúplice e plural de instituir o
filosofar e a filosofia. Porque a verdade é que a Filosofia se ergue na deslocação face
ao que é dado, tecendo compassos de espera por onde irrompe a incerteza, o esfacelamento
da convicções tácitas, a surpreendente fragilidade das coisas e das ideias.
Por fim restam as Palavras [3], essas vozes que nos habitam
desde os arcanos da História, derradeira fronteira para lá da qual se estende a
insondável paisagem onde cresce um silêncio e uma solidão aquém de toda a esperança.
Por isso a Filosofia tem também uma vocação nómada, impondo à Razão uma estratégia
singularmente análoga à dum caçador-recolector implantado num biótopo favorável. Isto
é, pretende-se um pensamento que construa "armadilhas", desenhe instrumentos
metódicos susceptíveis de aprisionar pela via da surpresa e da imprevisibilidade as
ideias que vão germinando sob o manto sombrio duma informação incontrolável e
incontrolada [4].
Mais fácil de dizer do que praticar, tal estratégia! Pois
os riscos são directamente proporcionais às eventuais vantagens e é perigosamente
dúplice a convicção que circunscreve este jogo a um exercício de razão, espécie de
devaneio lógico que se interrompe quando se quer. O espírito crítico implícito ao
filosofar e à filosofia é limitadamente livre, se tiver como objectivo último manter-se
enquanto tal, pois só sobrevive num Corpo com história pessoal, [5] isto é, num terreno
frágil, caprichoso, mutante, imprevisível.
Ignorar a implantação antropológica das ideias é, a
prazo, abrir a porta à devastação irreparável dos Homens. A História próxima e
distante aí está como testemunho. À Filosofia cabe, portanto, equilibrar com margem de
segurança aceitável um campo de observação onde subsista uma paixão de conhecer cujas
determinações antropológicas não bloqueiem a dimensão ética [6].
Sugere-se aqui uma plataforma de posicionamento para a
reflexão, um "local mental", uma atitude que por si só já não é um acto
natural, mas antes o resultado duma aprendizagem que levou a escolher como melhor esse
espaço de observação que sustenta uma permanência viável na Filosofia. Tal postura
está nos antípodas da racionalidade frenética que ignora uma temporalidade feita de
compassos de espera, desvios, bifurcações, rosário de fraquezas que acompanha a
condição humana [7] A História é avessa a toda a megalomania e se, por momentos,
parece sugerir o deslumbramento da conquista fácil, o triunfo ao virar da esquina, é
para mais silenciosamente ir cavando o "sítio-nenhum" onde serão crucificados
todos os Césares!
Mas não tenhamos excessivas ilusões. A racionalidade que o
desejo de filosofar comporta, o discurso que nos faz ir para além do banal, abandonando o
porto de abrigo das crenças que sustentam o quotidiano, transporta também os riscos duma
certa aspiração "blasé" em ser diferente, desviante, na possibilidade que
abre de contemplar o comum dos mortais, aqueles que ficaram do "lado de lá",
com olhar oblíquo e distante. Por momentos, o acto de filosofar é indissociável da
arrogância e do cinismo. A Razão, abandonada a si mesma, cria a ilusão dum ilimitado
poder, espaço de vertigem em que o primeiro sintoma de derrota é feito do voluntarismo
dos triunfos anunciados! O pior e o mais triste é o papel que em tudo isto ocupa a
sensação de Liberdade.
Herdada da melhor tradição filosófica oitocentista,
filtrada pelo liberalismo, correndo desventuras sem fim ao longo deste século,
sedimentada em textos constitucionais e códices jurídicos, a liberdade é para o
pensamento em geral e para a Filosofia em particular um insubstituível "sal da
terra".
O poder de tudo questionar, de abandonar crenças e
convicções, converge para um certo estado de imponderabilidade do pensamento que dá a
ideia de se ter escapado à complexa teia de dependências, hesitações e fraquezas
inerentes à condição humana. Mas há um momento em que a vertigem aparece, espécie de
"hora do lobo" em que a razão reencontra o Corpo [8], a prisão donde só
imaginariamente se evadiu. É aqui que a ideia de Liberdade readquire o estatuto de
sensação, isto é, de estado precário, evanescente, provisório.
Eis o crepúsculo do Filosofar, o regresso ao reino das
sombras do lugar-comum, dos ritmos e repetições que balizam o quotidiano [9], à apagada
e vil tristeza que nos sugere que é tempo de retomar a mediania dos dias, espaço
desprovido de "estesia" da Razão-sonâmbula! Altura do triunfo das
imagens-feitas, horas esvaziadas em que flutuamos à superfície das experiências que nos
atravessam, em que as coisas se resumem àquilo que parecem, explícitas, transparentes,
nítidas.
Esta espécie de sono do pensamento é a vertente
anti-heróica da Filosofia, o reconhecimento da sua estrutura efectivamente limitada pelas
infindas raízes que nos prendem à História e ao "instante". Resta esperar
pelo próximo momento acolhedor, pelo despertar do desejo vindo dos arcanos do Tempo ou do
mais íntimo de nós, aquela reverberação do real, imperceptível, fluida, que sinaliza
a hora de novamente partir. Momento imprevisível em que as evidências de ontem desvelam
a opacidade de sempre e tudo se torna estranho, irreal, insustentável, precário, no
limiar do "milagre". Os laços de cumplicidade com o mundo quebram-se de novo, o
"daimon" da Filosofia desperta e a viagem em direcção ao desencanto recomeça!
Esta é a infindável dialéctica do Pensamento, vai-vem entre
universos contíguos, verdadeiros mundos paralelos que somos forçados a habitar enquanto
não abandonamos a ilimitada paixão de pensar. Paixão que não é feita exclusivamente
de vontade, [10] pois que obedece a ritmos imprevisíveis que atravessam certas vidas e
não outras e, às vezes com certa crueldade, as gasta até à saciedade, abandonando-as a
troco de nada! A tudo isto, tranquilamente e como se nada fosse, chamam os dicionários
"vocação"...
Trata-se portanto de elaborar uma estratégia de filosofar
ou, melhor ainda, uma atitude que enquadre no limiar do razoável uma Razão que
provisoriamente quebra as amarras que nos pacificam corpo e alma e obstinadamente se
encaminha para as regiões do ainda-por-dizer, [11] onde as próprias palavras começam a
falhar e tudo tem de ser inventado. Por isso, o texto filosófico se cruza com a
Literatura, ganhando poderes expressivos, substituindo quando tudo parece indizível, a
construção de conceitos pela fabricação dum clima. Entenda-se, duma atmosfera
"pré-reflexiva" que possibilite ao interlocutor imaginário que todo o texto
visa, a réstea de cumplicidade que convem à Filosofia.
Porque não se trata exclusivamente de demonstrar, partindo
dum acordo quanto aos pressupostos que uma estrutura metódica inflexível e
transubjectiva impõe. Mas antes de construir um pensamento para além do método, região
onde os factos e as ideias são mutantes, imensa rede sobre o vazio que o filosofar vai
tecendo. Então, a ideia anterior impõe a seguinte e, provisoriamente, fixa-a melhor numa
constelação conceptual que vai crescendo organicamente, abandonando o centro primitivo,
o ponto de partida ocasional que encobre o "perpetuum mobile" do pensamento. Um
passo dá sentido ao seguinte, uma "variação" abre-se sobre outra
"variação" e a Filosofia vai soprando a bola de cristal onde, deformado mas
nítido, o seu rosto se reflecte. Então, como um deus feito à pressa, quando o universo
do pensamento se sente terminado, o "daimon" da Filosofia julga que é tempo de
repousar e, abandonando as ideias à sua sorte, saciado, repousa!
É sobre estes movimentos confusos, no limiar do
imprevisível, sobre estas envolvências antropológicas da atitude filosófica, que por
um instante o filosofar se pode deter. Filosofar do filosofar, por conseguinte. Terreno
movediço onde se cruzam ideias com pressentimentos, factos com sensações, discursos
híbridos, fragmentários. Não é duma demonstração que se trata aqui, mas tão só do
desejo de acompanhar pela via do pensamento a aparição do seu antiquíssimo heterónimo.
[12] E também de procurar a postura interior mais favorável à duração intermitente da
simbiose entre a transtemporalidade da Filosofia e um Corpo que atravessa aos tropeções
o "som e a fúria" dos anos que passam.
2. Pensar. Flutuar
"(...) Pretendem alguns Papalaguis que nunca têm tempo. Correm desvairados de
um lado para o outro como se estivessem possuídos pelo «aitu» (diabo) e causam terror e
desgraça onde quer que cheguem, só porque perderam o seu tempo. Este estado de frenesim
e demência é uma coisa terrível, uma doença que nenhum homem de medicina pode curar,
doença que atinge muitos homens e que os leva à desgraça.(...)".
TUIAVII, "Discursos" (In "O
Papalagui")
É a tentação mais
óbvia. Porque estar na Filosofia pode ser habitá-la como um simulacro, reduzido a um
"métier", [13] a uma série de técnicas que esforçadamente se enumeram, mas
que têm um valor meramente normativo, um pouco como aquelas plantas de cidades dos
antípodas que se guardam algures na penumbra das prateleiras e que jamais visitaremos.
Trata-se de olhar de fora uma certa manifestação do
pensamento, institucionalizada por uma história "monumental" que os tratados de
Filosofia conservam e considerar, dentro dum Tempo banalizado, as aventuras e desventuras
de espíritos inquietos que gastaram a vida produzindo livros, batendo-se com
inexplicável persistência por uma certa constelação de ideias, uma determinada visão
do mundo. Perante essa paisagem mental posicionar-se com esforço, quase com fastio, na
ânsia de esgotar as horas gastas por um imperativo profissional, regressando à
"normalidade", ao mundo real que se inscreve no ruído do quotidiano, à
indizível sensação dum certo alívio quando se faz recolher às catacumbas uma pleiade
de questões de duvidosa utilidade e incerto destino! [14]
Digamos, que se trata dum Pensamento sem vontade de pensar,
para quem as ideias que se têm são, em princípio, as melhores ideias e o filosofar é
um espaço de desconforto que se deve assumir com precauções análogas às duma doença
infecto-contagiosa. Isto é, visita-se o "doente" para lhe dar um arremedo de
conforto, mas sem nunca se aproximar em excesso da fonte do vírus, não vá o mal
pegar-se...
Esta é a "atitude filosófica" perversa, a
institucionalização do reino da aparência no teatro do filosofar, o pensamento-comédia
que se leva a sério por obrigação e a horas certas. Regressão a um estado
indiferenciado, menos sério que a imprevisibilidade do filosofar espontâneo que nasce e
morre ao sabor da conjuntura porque este, ao menos, irrompe na autêntica brecha de
"non-sens" [15] que uma vida humana por vezes comporta e, enquanto dura, ergue
um estado de autenticidade que é a verdadeira antecâmara da Filosofia.
Naturalmente, escolher a estratégia do distanciamento face
ao conteúdo problemático do questionar filosófico e assumir, no sentido mais mesquinho,
o papel de burocrata do Pensamento, tem as suas compensações, pelo menos aparentemente.
Por um lado, esconjura o espaço de conflito interior que o filosofar sistemático
comporta e permite um reajustamento óptimo ao teatro de crenças, estímulos e
pressupostos que balizam o quotidiano confortável. Por outro, consente um clima de
auto-satisfação pelo bom cumprimento das regras duma aparente deontologia profissional,
capaz de prolongar até ao momento da reforma a convicção dum dever cumprido. Digamos
que esta plataforma de posicionamento para a Filosofia corresponde a um verdadeiro
"seguro de vida". Parafraseando Pangloss, tudo vai bem no melhor dos mundos
possÍveis! [16]
Eis a Razão prisioneira do "momento", manietada
de pés e mãos a um Corpo implantado numa história circunstancial e cujo objectivo
terminal é a manutenção dum estado de satisfação feito da complacência que se
esconde por trás do "espírito do Tempo". As grandes perguntas da Filosofia e
do filosofar habitam um campo mental psicologicamente doce, enquadradas que estão por um
sentido da vida proveniente dum contexto tido como apto a apaziguar as sombras
inquietantes que outros, que não nós, se comprazem em desvelar.
A sintonia assim realizada entre uma certa racionalidade e
as formas gerais de pensar e sentir contribui para a institucionalição dum espaço
coerente [17] em matéria de atitudes, crenças e hierarquias de valores, assim unificadas
e validadas por um consenso entre diferentes Sujeitos que flutuam sobre um universo de
cumplicidades. Tudo conspira para uma modalidade preferencial de Conhecimentos em que a
sensação das certezas presentes e futuras instaura uma espécie de evolucionismo à
escala dos nossos desejos, onde o Futuro assume um rosto similar ao daquelas alegorias que
povoam alguma pintura dos finais do séc. XIX em que a "Humanidade" caminhava em
direcção a uma "luz" paradisíaca, de aroma maçónico, serpenteando ao longo
da composição plástica em indescrítivel sucessão, desde as brumas trogloditas aos
inventores do telégrafo! Por outras palavras, ainda hoje a Razão-satisfeita não
desdenharia subscrever a famosa "equação metafísica de Jacinto" --- «suma
ciência ( X) suma potência = suma Felicidade»! [18]
Trata-se, portanto, de flutuar. Ao sabor de marés que se
ignoram, escolhendo um posicionamento maioritário naquilo que se pensa e diz porque tal
se revela como mais seguro, afastando esses espaços estranhos dum pensamento
"confuso" que persiste em perguntar "porquê", em abrir fendas na
nitidez das convicções, em apostar no desconforto e numa inquietação sem compensação
visível. Recusar a opção desviante [19] ou simplesmente encará-la como um epígono da
história das aberrações humanas, parece reforçar uma certa ideia de estabilidade
mental, do espírito de coesão entre o "eu" e os "outros" que não é
psicologicamente de desprezar. São, portanto, bem sedutoras estas vozes que sugerem uma
espécie de filosofar-leve, em dose moderada e manifestamente ocupando o meio da tabela
das prioridades quotidianas. Mas também, com tanta prudência, o pensamento cai numa
modorra suspeita. Engorda, adormece e sonha com chocolates. Não, por aqui não vamos
longe.
"(...) L'instant oú nous croyons
avoir tout compris nous prête l'apparence d'un assassin.(...)".
E. M. CLORAN, "Syllogismes de l'amertume"
Na
inventariação sumária das estratégias de pensar que este texto quer sinalizar,trata-se
agora de perspectivar uma outra modalidade. Nos antípodas da anterior, o que a move é
uma paixão. Uma aspiração híbrida de Sonho e Poder, um desejo faustico de
transfiguração.
Fenómeno historicamente pouco frequente, tanto irrompe em
conjunturas conturbadas, as chamadas épocas de crise, como ocorre em situações de
estabilidade colectiva, naqueles tempos em que os equilíbrios sociais parecem ser
eficientemente balizados por uma hierarquia de valores e comportamentos que perspectiva o
Futuro como "repetição" previsível do Presente.
Subitamente, sem que uma abordagem sociológica do
"comportamento desviante" dê explicações satisfatórias, um ou outro
"espírito" surge com o fulgor duma "super-nova", desenhando no
firmamento cultural uma diáspora de efeitos espectaculares que deixa atónitos os seus
contemporâneos e cujo verdadeiro impacto pode ser diferido no Tempo duma forma
imprevisível. É ainda duma consequência do filosofar que aqui se fala. Só que os
pressupostos e as consequências da atitude filosófica agora em questão são bem
diferentes.
As perguntas eternas não se satisfazem com a panóplia de
respostas pré-fabricadas, o pensamento "voa" de interrogação em
interrogação, movido por uma paixão incontrolável de questionar e a esfera vital dos
comportamentos quotidianos em breve será sobredeterminada por esse centro gravitacional
que vai mobilizando os meios que o potenciam. A atitude mental subjacente a esta
Razão-expansiva em breve institui espaços de conflitualidade com as ideias e os homens
que habitam o Tempo banalizado e que parecem persistir em não ver os transfinitos mundos
vislumbrados por essa Razão-heterodoxa. É o momento da separação.
O sujeito individualizado que descobre (é descoberto?!) por
tal "daimon", sente-se possuidor dum destino, duma trajectória existencial a
que não pode dizer não. Uma enorme barreira de sombra desdobra-se entre o "eu"
e o "mundo", inaugurando o local intercalar onde a crisálida vai tecendo o
bastidor duma metamorfose.
Por momentos, uma "estrada real" parece nítida no
horizonte e o sentimento de solidão, de distanciamento face a todos aqueles que ficaram
no exterior, faz redobrar as forças na vertigem da descoberta, na dimensão quase
heróica dum esforço para o qual se não encontram cumplicidades. O sentimento de
distância face ao mundo pode degenerar num solipsismo crescente, numa quebra de
relações que se encaminha para uma progressiva coesão entre o Autor e a Obra. Quanto
mais o abismo se cava, mais a urgência da "tarefa" se afirma como inadiável.
A hierarquia de valores recondiciona-se em função dum
objectivo prioritário, [20] instaurando um fosso entre o "valor supremo" e
todos os outros, configurando uma vertente maniqueísta em que tudo se torna claro, as
escolhas fáceis, as hesitações poucas no vórtice da Razão. Uma certa dimensão
profética por vezes vem à tona, dando uma tonalidade escatológica à
"missão" que há a cumprir. Subitamente, uma verdade impõe-se como
prioritária, obsessiva, urgente. O desejo de comunicar intensifica-se na necessidade do
reencontro que é o sinal por excelência do "humano", isto é, a procura de
interlocutores.
Se, por acasos imprevisíveis da conjuntura histórica, esta
"verdade" encontra uma audiência, estão criadas as condições para a
emergência duma "seita" de iluminados que, se vierem a controlar as alavancas
do Poder, não raro abrem as portas a infindáveis sofrimentos, sempre justificados na
óptica dos "educadores" pela dor necessária que anuncia todos os
renascimentos. É o momento da simbiose entre o indivíduo e um grupo, indefinida
fronteira que atravessa o terreno do filosofar e enigmaticamente se expande para o campo
ambíguo das ideologias e religiões fanatizadas! [21]
0 princípio de "deslocação" radical subjacente
a esta estratégia de pensamento pode também derivar num sentimento de impotência
perante o mundo alucinante de perguntas sem fim que a atitude filosófica desencadeia.
Neste caso, não tardarão a manifestar-se as consequências psicológicas deste nó
górdio, uma vez que se instaura um conflito irresolúvel entre a inelutabilidade das
perguntas, a visão intuitiva dum caminho adivinhado, e os meios existenciais disponíveis
para levar esse objectivo a bom termo.
Trata-se dum impasse, dum bloqueio entre duas pulsões
contraditórias, dum desajustamento entre meios e fins. Aqui, é a sobrevivência duma
personalidade estruturada que fica em questão, pois não sendo possível negar a
hierarquia de valores que se assumiu como preferencial, o sujeito tem como destino
provável o esfacelamento dos seus equilíbrios mínimos por entre as "placas
móveis" [22] onde residem, com descontrolada "equipotência", objectivos
contraditórios...
Este conjunto de comportamentos tanto pode potenciar os
pontos de vista dominantes que circulam no "espírito do Tempo", como estar
frontalmente em conflito com eles. Digamos somente que, no primeiro caso, a personalidade
em questão é objectivamente amparada pelas estruturas sociais que a envolvem, sem que
isso implique que ela deixe de ser "desviante", enquanto que na segunda
hipótese, a dimensão "marginal" tende a acentuar os mecanismos de
auto-convicção que compensam o isolamento face ao tecido social. Porém, há um traço
comum em todas estas variações, designadamente naquilo que se reporta à questão do
sentido da acção.
De facto, uma vez instalado o objectivo terminal para que
aponta um filosofar sistemático e dada a simbiose entre esse objectivo e o topo da
hierarquia axiológica (o objectivo é o valor supremo), o problema do "sentido da
vida", dos "porquês do existir", está resolvido pelo próprio espírito
de missão que sobre-determina esta estratégia de Pensar. Digamos mais, nesta ordem de
ideias vislumbra-se uma singular analogia entre o "Pensar- flutuar" e o
"Pensar-deslocar", pois apesar de ocuparem planos radicalmente distintos em
quase tudo, ambos coexistem no terreno onde o "sentido" se instaura e, em
última estância, a existência se justifica!
Naturalmente, esta é praticamente a única intersecção
entre estas estratégias divergentes, pois quanto ao resto nada ou quase nada as
identifica. Desde o estilo aos comportamentos, desde a produtividade intelectual à
originalidade duma trajectória vital, tudo conspira para fraccionar estes universos
mentais. Encontram-se na encruzilhada do Sentido".
Nada mais. De resto, os sistemas de auto-convicção
construídos por um pensamento desviante têm o poder de impor objectivos no domínio do
"agir" que instituem complexos circuitos entre a dimensão ética e a
gnosiológica, susceptíveis de potenciar vertentes contraditórias duma racionalidade
ambígua. Isto é, a construção mental pacientemente erguida por uma personalidade para
quem a obra e o destino se confundem, tanto pode levar a Razão ao limite de si mesma,
como anulá-la em favor do seu "contrário".
No 1º caso, está aberto o caminho para a dimensão
utópica, para a evidência dos paraísos perdidos duma cidade ideal [23] onde o
planeamento científico corrigirá a ferro e fogo as imperfeições aleatórias da
condição humana. É a vertigem duma Razão plenamente fechada sobre si. No 2º caso,
abre-se a hipótese da construção dum estado pós-racionalista do pensamento, que tanto
pode assumir um estatuto inofensivo, como desencadear os parâ metros dementes, porque
voluntariamente incontroláveis, dum "cérebro gigantesco" [24] que está ainda
na pré-história da Consciência-de-si!
Eis o espaço onde germina uma metafísica do Terror, na
confluência duma vertente anárquica cujos limites últimos não afastam a ambiguidade
que por vezes se estabelece entre o martírio o martírio duma auto-destruição exemplar
e o crime purificador [25].
Com uma violência próxima das forças elementares da natureza,
quebrados os laços, todos os laços, que a prendem à circunstância e ao
"instante", a Razão transforma-se numa máquina de guerra, ser puramente
lógico, máscara hedionda para além de todo o limite. Não mais diálogo, hipótese de
entendimento, consenso viável.
No teatro do pensamento ou, pior ainda, no terreno da
História, já só há lugar para carrascos e vítimas. uma noite imensa, então, desce
sobre a Terra.
4. Pensar. Ampliar
« DlÓNISOS: Podéis acaso dizer-nos onde fica a morada de Plutão? Somos
estrangeiros, acabados de chegar.CORO: Não terás de ir mais longe, nem de interrogar-me
de novo. Sabe que és chegado à sua própria porta.»
Aristófanes, "As Rãs"
Até agora
estiveram em questão duas vertentes estratégicas de posicionamento da reflexão que
sugeriram cenários singularmente marcados e opostos quanto ao alcance ético,
gnosiológico e histórico de cada um dos seus potenciais desenvolvimentos extremos. De
certa forma "paradigmáticos" [26], pois revelam o ponto de fuga para que
tendencialmente aponta o filosofar, parecem não abrir espaço a modalidades alternativas
de reflexão.
Todavia, o próprio limite para que tendem, ao dilacerar a
atitude filosófica para regiões que confinam com o "não-ser" (por defeito e
por excesso), deixa aberto uma espécie de terreno intercalar, local devastado na
saturação das "vozes" que por lá passaram, mas consentindo ainda uma
hipótese de pensar como se fosse a primeira vez [27]. Trata-se de aceitar, por um
instante que pode durar uma vida, a ilusão de que nos está destinado um tempo onde
coisas novas se abrirão debaixo do Sol e de que nada impede de sermos escolhidos pelos
deuses do acaso.
Naturalmente, tudo isto é um jogo, entenda-se. Mas
entenda-se também que um jogo tem regras, como espaço cósmico que é. Logo, num certo
sentido, nada há de mais sério que correr esta aventura e, com indisfarçável prazer,
refazer a viagem imemorial ao mais íntimo de nós.
De filosofar se trata, uma vez mais. Mas, no presente, o
espaço em que tal se torna possível está repleto pela multidão de signos que uma longa
história foi depositando nos livros e instituições que concretizam o labirinto que todo
o pensamento se vê compelido a atravessar. E, se a reflexão filosófica habitar um
"corpo" que não é o dum funcionário cumpridor, porque sim, de regras que não
discute, nem o dum "iluminado" sem alternativa, o confronto com essa panóplia
de informação acumulada é uma batalha decisiva. Porque, perante ela, não se trata
simplesmente de dizer sim ou não, na tentativa de tudo afirmar ou tudo negar.
O importante é saber escolher a plataforma de
posicionamento que dê margem, no breve intervalo de lucidez que uma vida humana permite,
a um pensamento que não sacrifique o essencial do filosofar. [28] Por consequência, é
um pensar que não se pode evadir do "conflito das interpretações" e que deve,
com risco, ser capaz de determinar o "timing" dum discurso que visa a
"autonomia", isto é, de inscrever a sua marca para lá da inventariação das
viagens que outros fizeram.
O grande risco desta atitude é a repetição e a
redundância que, a reconhecer-se, deve ser encarada como um risco inscrito na regra do
jogo. Mas não há alternativa, pois a acumulação de informação disponível para a
mais obscura região do saber é de tal maneira incomensurável que qualquer tentativa de
a esgotar como acto propedêutico ao pensar, condenaria à partida toda a virtualidade
criativa da atitude filosófica. Por conseguinte, a Filo- sofia e o filosofar, pautados
pelas perguntas de sempre, devem atravessar permanentemente a História da cultura e das
civilizações, o discurso científico e estético, com o objectivo último de neles
encontrar os "sinais" que contribuam para colmatar o deserto metafísico
instaurado por Prometeu e Sísifo. [29]
O pensamento deve aceitar esta "peregrinação"
como dever irrecusável, mesmo vendo-se condenado ao silêncio, ao erro, ou ao anonimato.
É rigorosamente aqui que se concretiza uma outra estratégia do filosofar.
A pergunta parece inocente e deslocada mas, apesar de tudo,
talvez não seja inútil! Como filosofar, hoje? Isto é, como pensar as eternas perguntas
quando tudo parece já feito, nada mais restando do que procurar a resposta inscrita
algures na "montanha mágica" do "espírito objectivo".
Antes de mais, uma persistência sem precipitação no que
respeita ao essencial, isto é, ao núcleo duro inscrito no problema das origens, desde a
dimensão cosmológica até à metafísica, passando pela vertente antropológica e
ética. Não esquecer que toda a infor- mação, todo o ciclo de perpétua aprendizagem
deverá ser sistematicamente re-ordenado em função do objectivo estratégico
prioritário que instituiu originariamente o filosofar. [30]
A primeira consequência que daqui decorre leva a um
distanciamento crítico face aos arquétipos interpretativos implantados na
"circunstância", contribuindo para a instauração dum sentimento de
fragilidade face a um saber até então marcado pela evidência das luzes da ribalta. O
reino das "certezas" torna-se fluido na consciência do abismo que separa o
secundário do essencial, uma certa instabilidade inscreve-se no plano dos
"juízos" [31] que, com progressiva desconfiança, um filosofar defensivo
continuamente produz.
Aqui se estabelece uma bifurcação que deve ser encarada com
prudência uma vez que, desprovido dum efeito de distanciamento metódico, o filosofar
facilmente instaura mecanismos de "retroacção" sobre o sujeito psicológico,
desgastando os referentes axio- lógicos usuais sem simultaneamente os substituir por uma
alternativa ética e metafisicamente equivalente. [32] Trata-se, portanto, de assumir a
vertente lúdica, contornando o vórtice subjacente a este patamar instável do filosofar.
Mesmo assim, a estabilidade íntima que decorria da firmeza
dum sistema de valores "pré-crítico", [33] não se revela imune ao caminho
necessariamente conflitual inerente ao cruzamento numa consciência finita da
multiplicidade contraditória dos "discursos-com-sentido". Instaura-se,
portanto, um espaço onde é dominante a sensação duma fragilidade generalizada das
interpretações quando se confrontam com o essencial dos porquês da Filosofia,
sentimento que atravessa duma forma evidente quer o campo das Ciências Humanas, quer o
das Ciências Exactas. [34]
A plataforma estratégica onde se propõe localizar este
tipo de atitude filosófica vê-se compelida a distender o pensamento em direcção às
questões-limite mas, quase sempre, recebe como resposta a complexificação do problema
inicial na altura mesma em que julgava aproximar-se dum ponto de viragem. Ao
pensar-ampliar, o filosofar inscreve-se num vai-vem de que se não vislumbra o fim,
envolvendo a dialéctica do conhecimento e da acção num clima indefinido, instável,
mutante.
Perde-se a todo o momento aquilo que mais se deseja e o
sentido do quotidiano e da história esvai-se pelas fendas que vão dar a sítio-nenhum.
É, portanto, o tempo de conviver com uma inquietação indefinida que atravessa o
quotidiano supérfluo onde as coisas acontecem no encontro consensual entre
sujeitos-cúmplices abandonados à deriva no oceano do Tempo. Então, o filosofar
desdobra-se sobre uma rede tensa, por vezes no limiar da incomodidade, quando cresce a
suspeita que o insondável que nos habita pode ter nascido do logro mais humano de todos,
o desejo dum sentido que explique "in extremis" o espaço insólito da nossa
humanidade.
No jogo da Filosofia as derrotas acumulam-se, mas também é
verdade que o prazer do pensamento que tudo desafia reside naquele instante mágico em que
uma nova constelação de ideias se ergue no imprevisível imaginário e, intimamente,
encontramos um contentamento para além de toda a amargura.
Da reflexão já
feita decorrem, naturalmente, consequências. Se a racionalidade que atravessa a Filosofia
e a Ciência é, de certo modo, desenraízada enquanto produtora de sistemas explicativos
que são o rosto visível do património cultural das civilizações, também a Razão
como faculdade autónoma é uma pura ilusão metódica. [35] Resulta duma operação
indutiva que isolou "in-vitro" um segmento espectacular da máquina humana,
colocando-o num patamar modelar que perverte a sua função "instrumental" numa
sucessão organizada de equívocos.
Mesmo com o risco da banalidade, vale a pena recordar que o
poder da racionalidade não está ao serviço de si mesmo como máquina cuja única
função seria a produção de transfinitos replicantes (duplos), [36] mas antes deve ser
assumido como um "conector" que divide e re-agrupa em imagens provisórias o
caleidoscópio do Mundo. O seu posicionamento ideal na arquitectura transcendental da
consciência não pode deixar de visar um "saber mais", submetido ao objectivo
axiologicamente mais valioso de "viver melhor". Porém, sendo a Razão o
instrumento que directamente parece ser o responsável pelos dons mundanos que fazem
correr as civilizações actuais, rapidamente se instala um erro de paralaxe na
apreciação da sua importância relativa.
O que um filosofar sistemático não tarda a descobrir é
que as Ciências e as Tecnologias recobriram a epiderme do mundo com placas de Sentido
meramente regionais, sobre as quais febrilmente laboram legiões de
"construtores" que tentam impermeabilizar o quotidiano do imenso silêncio
envolvente. Aqui reside a condenação dum filosofar que não sacrifique o essencial, esse
sistemático "Sim! Mas ..." que por toda a parte irrompe nos interstícios da
condição humana. É o momento do recolhimento e da consciência dos limites, encontro
paradoxal entre um Pensamento e um Corpo atravessados por uma sucessão de instantes nos
quais a memória e o desejo desenham a face do Tempo.
Por tudo isto, o filosofar envolve riscos quando falham os
equilíbrios entre a pulsão de compreensão que o move e o enquadramento antropológico
individualizado no qual, momentaneamente, vive. É então necessário atender à voz duma
sabedoria mais flexível que sugere uma retirada para regiões de clima mais temperado,
afastando do limiar do abismo uma consciência e um corpo que têm o dever de sobreviver.
Fica então ao dispor, como espaço residual, um filosofar prudente, que observa com um
certo distanciamento cinematográfico as notícias que vão chegando do "deserto dos
Tártaros"! [37]
A tensão que o jogo do filosofar comporta não é suportada
por uma consciência que atravessa as desventuras da História, isto é, por um corpo
integral que nasce, vive e morre. O jogo do pensamento, na sua inocência e na sua
crueldade exige uma espécie de forma ideal, no sentido quase desportivo da expressão!
Paixão pelo risco, coragem, um certo desprendimento, persistência, desenham parte do
perfil da Filosofia.
Uma vida humana normal não dispõe destas benesses por
muito tempo e, em regra, quando verdadeiramente as possui, não se apercebe da sua real
existência. É no princípio da sua ausência, naquele momento em que o
"daimon" dum pensamento ágil começa a anunciar o desejo de partir, que cresce
a lucidez e se percebe com um misto de amargura e encanto o efectivo centro de nós.
Ítaca parece agora nítida no horizonte, mas a vontade de viajar, de passar noites ao
relento, é cada vez mais sinónimo de desconforto. A Razão olha o relógio. E é tarde.
6. Moral Provisória II
"Cessai de cogitar, o abismo não
sondeis."
Camilo Pessanha, "Clépsidra"
Há, portanto, em tudo isto,
situações desagradáveis ou, no mínimo, pouco lisonjeiras. Região onde emergem as
nossas incapacidades, os defeitos, a consciência da distância entre aquilo que
gostaríamos de ser e efectivamente somos, é aí que temos de permanecer. Trata-se, por
conseguinte, de equilibrar no plano do quotidiano uma medida que mantenha a dignidade da
aspiração que há milénios faz correr a Filosofia. Quer dizer, planear com
antecedência uma retirada que impeça o ridículo de nos confrontarmos com um Pensamento
titubeante, esbracejando no meio da confusão, a troco de duas linhas num jornal ou do
aplauso enfastiado de meia dúzia de comparsas.
Por tudo isto, ensinar filosofia pode ser uma outra paixão.
Espaço que resta quando o exercício do filosofar mais impiedoso leva ao reconhecimento
de que se está a cair no domínio da repetição ou da redundância, ou quando a
disposição mental e as energias combativas não suportam a aridez das terras de ninguém
do Pensamento.
Então, resta o encanto de transmitir. Não só aquilo que
se sabe mas, como diria Roland Barthes, aquilo que se ignora. [38] Isto é, os espaços
estranhos, as quase-ideias aquém (além?!) da Linguagem, a tensão que antecede uma
constelação sugestiva no limiar do enigma, a sensação de descoberta que por vezes uma
frase, um parágrafo apenas, consente trazer à luz do dia. Tudo isto disseminar, tentar
dizer. Empurrar outros para a "viagem" enquanto é tempo, fazendo-o com a
convicção e tranquilidade de quem assume os seus limites.
Neste sentido a História da Filosofia é o princípio e o fim da
Filosofia. Sem a assumir como propedêutica, o filosofar dificilmente se liberta da
inconsistência dum acto episódico e incontrolado, mas também se dela se não desprende,
está condenado a um "treino" intensivo que jamais será posto à prova.
Porque a História da Filosofia não é, obviamente, a
História dos historiadores da Filosofia. Quando muito há eventuais cruzamentos entre
esses dois registos culturais numa ou noutra personalidade que conseguiu ligar na sua vida
e obra aquilo que, a partir de certa altura, são parâmetros contraditórios. A História
da Filosofia está para a Filosofia como a História da Arte está para a Arte. De certo
modo, o abismo que distingue a autonomia do acto de filosofar da sabedoria adstrita à
História da Filosofia é análogo ao que separa o "criador" do "crítico
de Arte". Assim como a razão de ser deste só se explica pela prioridade ontológica
daquele, também a historiografia filosófica depende da precedência criativa de todos os
que apostam numa concepção problemática do filosofar e, contra toda a prudência,
arriscam responder!
Naturalmente, o terreno é escorregadio. As "leis"
que gerem estes fenómenos comportam demasiadas excepções e quase nunca se sabe quando
se atravessa confiante o "princípio de Peter"... Nada há de mais cruel, no
domínio do pensamento, do que o esbracejar megalómano da banalidade, o momento em que um
espírito está convencido de voar alto quando está simplesmente em bicos de pés!!
O problema é não poder adivinhar o Futuro. Seria sem
dúvida preferível um razoável habitar da História da Filosofia a um medíocre
simulacro do filosofar. Mas há um ponto a partir do qual este preceito de nada me serve.
A não ser como perpétua ameaça que um dia arrasará, como de há muito suspeitava, as
derradeiras árvores dos jardins de Epicuro.
Levi António Malho - 1987
NOTAS DE FIM DE
TEXTO
[1] - Esta expressão é a transcrição literal do
título dum livro de Edgar Morin, onde se faz uma análise do ponto de vista
socio-antropológico dos diferentes registos que determinam os comportamentos numa
sociedade industrial avançada onde, sob uma forma disseminada, coexistem "discursos
normativos" que actuam como "estabilizadores pedagógicos" numa cultura de
massas. (Edgar Morin, "L'Esprit du Temps", Grasset, Paris, 1962).
{2] - A noção de "desvio" só faz
sentido relativamente a uma média de atitudes e comportamentos que, objectivamente,
funciona como padrão. O seu papel não é meramente restritivo da individualidade
criativa, uma vez que serve de porto de abrigo que permite manter os laços de coesão
social de que todo o pensamento carece. O problema reside no distanciamento estratégico
nas relações indivíduo-grupo, na escolha do posicionamento preferencial que esti mule o
espírito crítico sem cair na "marginalidade" forçada!
[3] - Isto é, o filosofar confronta-se sempre, em
última estância, com os limiares da linguagem. Arte de falar e de dizer, o seu espaço
constitui-se também do ponto de vista linguístico como "problem",
designadamente quando se encaminha para áreas em que a aparição do facto filosófico
implica a necessidade dum poder "expressivo" doseadamente controlado.
{4] - Se a informação incontrolada --- no sentido
de instituir um campo de dados que nenhum "Sujeito" apropria --- levanta um
problema de escolha que pode levar a um bloqueio na prática da inovação, também é
verdade que ela permite uma quase ilimitada liberdade de reflectir sobre os mil rostos da
Natureza. Uma vez mais, a questão reside na escolha e no "timing".
{5] - Naturalmente, todos os "corpos" têm
uma história pessoal e irredutível. O problema reside na sua "equivalência"
com corpos análogos e no que se ganha e perde com tal substituição. À medida que
caminhamos no sentido evolutivo da hominização e da complexidade cerebralizada,
crescemos em autonomia e diferenciação de tal forma que, no plano da condição humana,
se atinge a radicalidade duma irredutível diferença erguida sobre uma matriz genética
comum. O que acontece é que a consciência desta irredutibilidade tem gradações que
dependem de circunstâncias aleatórias (espírito crítico, formação cultural,
sensibilidade, etc.).
[6] - Trata-se, em última estância, das relações
entre o Conhecimento e a Acção. Consequentemente, duma hierarquia de valores que está
para além duma determinação científica e que concretiza um estado de liberdade.
Conhece-se mais para viver melhor, e não o contrário. E, mesmo que a questão se
inverta, continua a tratar-se duma ordenação axiológica que implica, obviamente, outros
posicionamentos éticos.
[7] - A relação com o Tempo é o núcleo duro da
matriz cultural judaico-cristã e atinge, com a revolução industrial, um manifesto
estatuto económico. O mito de Cronos, a paixão pelos calendários e as terríveis
disputas em sua volta, a tirania dos relógios que marcam o tempo "público" com
noticiários, sinais horários, campaínhas, sirenes, são alguns dos heterónimos desta
antiquíssima obsessão. Bem contrastante, aliás, com o discurso dum chefe duma
comunidade dos mares do sul, após uma visita à Europa. "(...) A meu ver, é
precisamente por o Papalagui tentar reter o tempo com as mãos, que ele se lhe escapa por
entre os dedos, como uma serpente por mão molhada. O Papalagui nunca deixa que ele venha
ao seu encontro. Corre sempre atrás dele de braços estendidos, não lhe concede o
repouso necessário, não o deixa apanhar um pouco de sol. (...) O Papalagui não se
apercebeu ainda do que o tempo é, não o compreendeu. (...)". [Cf. Erich Scheurmann,
"0 Papalagui. Discursos de Tuiavii, chefe de tribo de Tiavia nos mares do Sul",
tradução do françês por Luiza Neto Jorge, Antígona, Lisboa, 1982, p. 68]
[8] - "(...) E todo o problema do mundo de hoje
está aí. Regresso a mim, ao meu corpo distinto e classificável onde todo o milagre
aconteceu. E pergunto-me, suspenso, como foi possível, como é que uma breve semente
abriu assim até essa Voz, até ao silêncio donde essa Voz falou. (...) Lume breve na
minha intimidade, na brevidade de um Pequeno ser, eu, anónimo e avulso, ocasional e
frágil --- eu. E todavia, esse lume vibra de vigor, brilha único e intenso contra o
assalto da noite. (... )". [ Cf. Vergílio Ferreira, "Invocação ao meu
Corpo", Bertrand, Lisboa, 1978, p. 15]
[9] - A consciência da vida quotidiana é um
fenómeno histórico moderno, enquanto efeito de distanciamento que favorece ou impede a
concretização de determinados objectivos. Está também ligada à
"popularização" da História, ao avanço dos "mass-media", ao prazer
de conhecer outras culturas e outros povos. O ciclo quotidiano duma sociedade industrial
continua a ser motivo de reflexão e é um campo transdisciplinar que atravessa as
Ciências Humanas.
[10] - Nenhuma paixão o é! O factor enigmático
que a paixão envolve sobredetermina o conjunto dos parâmetros pessoais com vista a um
"fim" que se impõe como indiscutível. Porém, a "paixão de pensar"
pode ser culturalizada, isto é, valorizada pelas matrizes culturais que suportam o
indivíduo, de tal forma que contribuem para a implantação afectiva dum objectivo
artificial e importado do exterior. Tal pode acontecer com a paixão de filosofar,
nomeadamente quando todos esperam que o façamos, mas a vontade que nos move não é
suficiente para concretizar esse fim. O que significa reassumir a "ambiguidade da
paixão"...
[11] - São as zonas de confluência com os
"limites de nós", a tentativa de apropriação-criação duma paisagem nas
fronteiras da estesia. Aqui, os discursos mundanos empobrecem, não porque não haja de
que falar, mas porque não se sabe como dizer. Há, por conseguinte, um terreno indefinido
que só uma Linguagem no limiar da Arte é susceptível de revelar. Tal região não pode
ser indiferente para a Filosofia.
[12] - Tendo em atenção que a contemporaneidade
valoriza certas manifestações do "pensamento" em desfavor de outras que
considera arcaicas ou duvidosamente úteis, cabe lembrar que a atitude filosófica é
precedida por um filosofar espontâneo, que corresponde à primeira consequência dum
sujeito que se distancia da Natureza por um acto de solidão e espanto, quando encontra a
mortalidade. O fenómeno cultural que define a "humanidade" do "Sapiens-
-Neandertal", mais que a produção de innstrumentos, é a construção de túmulos.
Isto é, do resultado monumental dum pensamento que se interroga.
[13] - Na verdade, a Filosofia como actividade
reconhecida socialmente exige, em parte, a cobertura institucional duma escola que lhe
confira dignidade pública. Assim, a Filosofia é um "curso" como qualquer outro
(?) e os seus profissionais, em regra, constituem-se como professores de Filosofia. Daqui
necessariamente não deriva que um curso de Filosofia produza filósofos, tal como uma
licenciatura em Medicina ou Engenharia fornece médicos e engenheiros.
[14] - Por estranho que pareça, não são raros os
"profissionais" de Filosofia que contribuem para uma postura de
auto-desvalorização de si mesmos, ao assumirem como "boas" as hierarquias de
Ciências de 1ª ordem e Ciências de 2ª ordem que uma sociedade tecnológica
naturalmente faz circular. Porque a verdade dominante é esta: quando se está doente,
chama-se um médico. Quando se está a morrer, chama-se um padre! Quando se chama um
filósofo?!
[15] - O filosofar espontâneo esta quase sempre
associado nos traumatismos do quotidiano, isto é, às "rupturas" da
normalidade. E como as coisas boas são, em regra, tidas como merecidas ou pouco
valorizadas, é pela catástrofe que o filosofar se instaura! Assim, o sofrimento e a
morte são a ocasião de interiorizar as "grandes perguntas". Infelizmente, as
respostas é que já não são tão sedutoras, como se prova pelo estafado lugar-comum.
"Ai! Na verdade, não somos ninguém...".
[16] - "(...) O preceptor Pangloss era o
oráculo da casa e o pequeno Cândido escutava-lhe as lições com toda a boa-fé da sua
idade e do seu carácter.Pangloss ensinava a metafísico-cosmolólogo-nigologia. Provava
admiravelmente que não há efeito sem causa e que, neste melhor dos mundos possíveis, o
castelo do Sr. Barão era o mais belo dos castelos e a Srª Baronesa a melhor das
baronesas possíveis. «Está demonstrado», dizia ele, que as coisas não podem ser de
outra maneira: porque, tendo tudo sido feito para um fim, necessariamente o foi para o
melhor dos fins. Reparai bem que os narizes foram feitos para trazer óculos; por isso
nós os usamos. (...) E como os porcos foram feitos para serem comidos, assim nós comemos
carne de porco todo o ano. Por conseguinte, os que afirmaram que tudo está bem disseram
apenas uma asneira, porque deveriam ter dito antes que tudo está o melhor possível
(...)". (Cf. Voltaire, "Cândido", tradução do françês por Maria Isabel
Gonçalves Tomás, Europa-América, Lisboa, sem data, p. 12/13)
[17] - Trata-se dum "espaço coerente" em
termos culturais e axiológicos em que a esfera do "privado" e do
"público" estão razoavelmente ajustadas, assim permitindo a sensação dum
pensamento maioritário que faz coincidir o universo dos nossos problemas e aspiraþ§es
com a "média" da paisagem social envolvente.
[18] - Digamos que é ainda corrente uma certa
ideologia neo-positivista em inúmeros sectores das práticas e discursos que têm
aceitação e que depositam na Ciência e Tecnologia uma fé redentorista que os seus mais
lídimos representantes já não subscrevem. Há um século atrás, através da figura de
Jacinto, Eça de Queiroz retratava uma dimensão significativa desta atitude, apesar do
desenvolvimento psicológico do personagem de "A Cidade e as Serras" se dirigir
à refutação desses valores. (Cf. Eça de Queiroz, "A Cidade e as Serras",
Livros do Brasil, Lisboa, sem data, p. 17).
[19] - A "opção desviante" concretiza um
relacionamento paradoxal entre o indivíduo e o grupo e aparece inscrita como dimensão
fundamental nas espécies mais cerebralizadas, designadamente nos primatas superiores. A
curiosidade e o espírito de aventura são responsáveis pela introdução de inovações
no património cultural da comunidade, apesar de serem vítimas duma
"quarentena" que representa a afirmação social da "regra dominante".
(Cf. Edgar Morin, "0 Paradigma perdido. A Natureza humana", tradução do
françês por Hermano Neves, Europa-América, Lisboa, 1975, p. 32/90)
[20] - Uma hierarquia de valores tem sempre um
"valor supremo" que pode concretizar ou não a dimensão de "valor
absoluto". O que aqui se pretende significar reporta-se à perca da flexibilidade da
hierarquia que tende para um "monismo" axiológico que condicionará
impiedosamente os restantes valores, garantindo ao sujeito uma evidência de justeza nas
acções a empreender, por mais dúvidas que psicologicamente lhe possam levantar.
[21] - São estas dimensões as que mais usualmente
concretizam o ponto terminal dum filosofar sistemático e que, por conseguinte, conseguem
um significativo impacto histórico. Delas pode nascer uma Ética indiscutível, tanto por
motivos "científicos" como por motivos religiosos. Neste segundo caso, existe
uma situação híbrida entre a Razão e a Fé, em que esta pode ser progressivamente
petrificada por influência duma tecitura de raciocínios sustentados numa ordem
transcendente.
[22] - Entendam-se estas "placas móveis"
no sentido freudiano da metáfora, isto e, as compressões incidentes sobre o
"Eu" através de conflitos entre o "Super-Ego" e o "ld".
[23] - A construção de "cidades-ideais"
é a vertente mais nítida da História das Utopias que atravessa a cultura ocidental. Da
"Cidade das Leis", de Platão à "Fundação" de I. Azimov, uma
paciente rede de normas estende-se no sentido de "racionalizar" o quotidiano dos
Homens em torno dum arquétipo de perfeição que pretende justificar toda a violência
purificadora. (Cf Gilles Lapouge, "Utopie et civilisations", Flammarion, Paris,
1978; Jean Servier, "Histoire et Utopie", Gallimard, Paris, 1967).
[24] - Entenda-se esta expressão quer no sentido
literal, quer no metafórico. O cérebro humano, apoiado numa "rede fina" de
conexões cujo alcance global ainda se ignora, é uma estrutura de enorme complexidade
desde o ponto de vista biológico, até à dimensão multi-organizacional que o institui.
O que nele parece específico do "Homo Sapiens-Sapiens" é a zona do neo-cortex
que, todavia, se integra duma forma enigmática com estratos mais arcaicos como são os da
camada reptiliana e do sistema límbico. (Cf. Edgar Morin; Massimo Piattelli-Palmarini,
"L'Unité de l'homme. 2 - Le cerveau Humain", Seuil, Paris, 1979; Henri Laborit,
"L'homme et Ia ville", Flammarion, Paris, 1971; Carl Sagan, "The Dragons of
Eden", Hodder and Stoughton, Suffolk, 1977).
[25] - Um dos pensadores que mais intensamente
reflectiu sobre esta dimensão foi Albert Camus. As relações entre a Justiça, o Crime,
a Inocência e a Culpa, atravessam a sua obra, desde o teatro "Les Justes" ao
ensaio. "(...) Il y a des crimes de passion et des crimes de logique. Le Code Pénal
les distingue, assez commodément, par Ia préméditation. Nous sommes au temps de Ia
préméditation et du crime parfait. Nos criminels ne sont plus ces enfants désarmés qui
invoquaient l'excuse de l'amour. Ils sont adultes, au contraire, et leur alibi est
irréfutable: c'est la philosophie qui peut servir à tout, même à changer les
meurtriers en juges. Heathcliff, dans les Hauts de Hurlevent, tuerait Ia terre entière
pour posséder Cathie, mais il n'aurait pas l'idée de dire que ce meurtre est raisonnable
ou justifié par un système. (...) Mais à partir du moment oú, faute de caractère, on
court se donner une doctrine, dès l'instant oú le crime se raisonne, il prolifère comme
Ia raison elle-même, il prend toutes les figures du syllogisme. Il était solitaire comme
le cri, le voilá universel comme la science. (...)". (Cf. Albert Camus,
"L'Homme Révolté", Gallimard, Paris, 1951, p. 13).
[26] - Há, naturalmente, um número indeterminado
de posturas face ao filosofar. O que aqui se pretende é, dum ponto de vista pessoal,
sugerir três zonas de intersecção para as quais tendem, duma forma exemplar, essas
diferentes modalidades.
[27] - Isto é, tentar assumir com a autenticidade
possível uma postura autónoma de reflexão, como se de nós dependesse o momento zero da
Filosofia. É, por conseguinte, um estado de desconforto e de solidão do pensamento. E
também uma grande nostalgia da Escola de Mileto!!...
[28] - Será necessário repetir que o essencial do
filosofar é a estruturação articulada entre uma Cosmologia, uma Antropologia, uma
Ética e uma Metafísica? Logo, a tentativa de organizar um espaço de coerência entre o
Universo, o Homem, a Acção e o Sentido!
[29] - A autonomia do homem face aos deuses paga-se
caro. Prometeu é agrilhoado ao Cáucaso e Sísifo repete eternamente um trabalho
condenado a um fracasso sem esperança. A Filosofia e o pensamento em geral ao suspenderem
ou ao distanciarem-se das grandes explicações mítico-religiosas recebem como
contrapartida um presente amargo mas irrecusável: ficam com a presença duma ausência! E
passarão os séculos dos séculos a tentar preencher esse Vazio incomensurável.
[30] - Naturalmente, esta dimensão é plenamente
compatível com a profissionalização da Filosofia mas, necessariamente, não se
identifica com ela. Pode, muito simplesmente, ser-lhe exterior, como se sugeriu no
conceito de pensar-flutuar.
[31] - "(...) Pourtant toute Ia science de
cette terre ne me donnera rien qui puisse m'assurer que ce monde est à moi. Vous me le
décrivez et vous m'apprenez à le classer. Vous énumérez ses lois et dans ma soif de
savoir je consens qu'elles soient vraies. Vous démentez son mécanisme et mon espoir
s'accroit. Au terme dernier, vous m'apprenez que cet univers prestigieux et bariolé se
réduit à l'atome et que l'atome lui-même se réduit à l'électron. Tout ceci est bon
et j'attends que vous continuez. Mais vous me parlez d'un invisible système planétaire
oú des électrons gravitent autour d'un noyau. Vous m'expliquez ce monde avec une image.
Je reconnais alors que vous en êtes venus à Ia poésie: je ne connaitrai jamais. Ai-je
le temps de m'en indigner? Vous avez déjà changé de théorie. Ainsi cette science qui
devait tout m'apprendre finit dans l'hypothèse, cette lucidité sombre dans la
métaphore, cette incertitude se résout en oeuvre d'art. (...)". (Cf. Albert Camus,
"Le Mythe de Sisyphe", Gallimard, Paris, (1942, p. 35)
[32] - Esta é uma situação singularmente análoga
à dos pressupostos que justificam, no pensamento cartesiano, a manutenção duma moral
provisória. "(...) ainsi, afin que je ne demeurasse point irrésolu en mes actions
pendant que la raison m'obligerait de l'être en mes jugements, et que je ne laissasse pas
de vivre dès lors le plus heureusement que je pourrais, je me formais une morale par
provision, qui ne consistait qu'en trois ou quatre maximes dont je veux bien vous faire
part. (...)". ( CF. René Descartes, "Discours de la Méthode", Flammarion,
Paris, 1917, p. 16)
[33] - Entenda-se, do conjunto de crenças
naturalmente assumidas por uma via educativa e que fornecem os princípios orientadores
para a inserção no Quotidiano. Estes são, por um longo período, aceites com uma
evidência análoga à das percepções sensitivas, uma vez que acompanham o crescimento
intelectual e afectivo como se fossem entes naturais.
[34] - A propósito da "perturbação" que
invade sectores de ponta do saber actual, sugere-se a consulta das obras de Raymond Ruyer,
"La Gnose de Princeton" (Fayard, Paris, 1974) e "Science et Conscience. Les
deux lectures de l'Univers" (Stock, Paris, 1980). Os títulos de alguns capítulos e
comunicações de um e outro livro são, por si mesmos, significativos. ("Les
accolades domaniales et les holons"; "Un bruit de fond originaire ne peut créer
Ia parole"; "La théologie néo-gnostique"; "Le Tao de la
physique"; "Le chat de Schrodinger et l'imagination"; "La
neurocybernétique du comportement humain à la lumière du silence de Ia pensée de
l'hésychasme", etc.).
[35] - Entenda-se esta afirmação no seu sentido
estrito, isto é, na exponenciação da importância que tal parâmetro do espírito
humano adquiriu nos sistemas interpretativos dominantes pós-cartesianos. Foram precisos
mais de dois séculos para uma reabilitação do significado das "paixões da
alma", com o pensamento freudiano e os seus sucedâneos. Mesmo assim, este ponto de
vista não se liberta, "in extremis", dum racionalismo exacerbado, uma vez que
os processos terapêuticas estão intimamente ligados à Razão que se institui como o
fármaco por excelência. É por uma espécie de "iluminismo psicanalítico" que
a "luz" da Consciência neutraliza as "viroses" do ld"".
[36] - É interessante referir que sendo o campo
científico-tecnológico a expressão mais valorizada, em termos pragmáticos, das
virtudes racionalistas, seja ele que concretiza a desmultiplicação de objectos
equivalentes e estandardizados provenientes das sucessivas "revoluções
industriais". Neste sentido, a Razão tem horror ao "particular" e a tudo
aquilo que não é redutível a uma classe integradora. Por isso existe a tentação
esclavagista nas Utopias, na sistemática persistência com que pretendem encarar os
homens como "objectos", isto é, como entes equivalentes.
[37] - "(...) Enquanto não anoiteceu, Giovanni
ficou a observar a planície setentrional. Da fortaleza só tinha podido ver um pequeno
triângulo, porque os montes que estavam em frente tapavam o resto. Mas agora podia
abrangê-la toda com o olhar, até aos limites extremos do horizonte, onde pairava a
habitual barreira de névoa. Era uma espécie de deserto, salpicado de rochas, com manchas
de moitas cheias de pó aqui e além. À direita, lá muito ao fundo, uma faixa negra bem
podia ser uma floresta. Aos lados, ásperas cadeias de montanhas. Havia algumas
belíssimas com intermináveis paredes cavadas a pique e os cumes brancos, cobertos pelas
primeiras neves outonais. Mas ninguém fazia caso delas; todos, Drago e os soldados,
tinham tendência para olhar instintivamente para o Norte, para a planura desolada, sem
sentido e misteriosa. (...)". (Cf. Dino Buzzati, "O Deserto dos Tártaros",
tradução do italiano por Fernando Moreira Ferreira, Europa-América, Lisboa, 1963, p.
119/120).
[38] - "(...) Há uma idade em que se ensina o
que se sabe; mas surge em seguida uma outra em que se ensina o que se não sabe: a isso se
chama procurar. Chega agora, talvez, a idade de uma outra experiência: a de desaprender,
de deixar germinar a mudança imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação
dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu,
um nome ilustre e fora de moda que ousarei aqui arrebatar, sem complexos, à própria
encruzilhada da sua etimologia. SAPIENTIA: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de
sabedoria e o máximo de sabor possível(...)". (Cf. Roland Barthes,
"Lição", tradução do françês por Ana Mafalda Leite, Edições 70, Lisboa,
1979, p. 41-42).
- © Levi António Malho - Regressar
a "Textos de
Filosofia "
- Actualizado em 30.12.2002
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