Afinal o que é a filosofia?

    © João Fonseca

 

       A filosofia sofre dessa eterna doença de se questionar a si própria. De eternamente se olhar no espelho, numa espécie de obsessão pela sua existência. Tendo já idade para ter ultrapassado esses complexos de identidade, a filosofia quer saber se deve parecer jovem, rejuvenescer continuamente, estar de acordo com o seu tempo, para que a escutem, para que lhe aturem as suas inquietações. O filósofo, ora apresentando-se como político, poeta, cientista ou homem religioso, tem dificuldades em se assumir apenas como filósofo. Como se a existência da filosofia, só por si, fosse uma estranha forma de vida, uma forma inadaptada de estar no mundo. É como se o filósofo olhasse o mundo de cima, ou de qualquer outro lugar distante, como se não fosse parte dele. Às vezes, por isso mesmo, retira-se, esconde-se, transmuda-se, disfarça o seu discurso, tem dificuldade em expor-se. E se aparece, manifesta um discurso revoltado e crítico, um alerta ou um bocejo face à infantilidade do mundo. Parece, portanto, ressentido com a vida, amargurado e incompreendido. Mas terá, inevitavelmente, que ser assim? Terá o filósofo que temer o seu lugar no mundo, como se tratasse de um marginal, uma ave rara que suscita curiosidade e estranheza ao mesmo tempo, oscilando entre o obscuro estilo heraclitiano e o claro e evidente estilo cartesiano?
      Território de incerteza, de questionação, numa época em que todos querem certezas, objectividade e produtos acabados, a filosofia afasta os jovens, amedronta os curiosos. Esta situação da filosofia conduz, muitas vezes, o mais optimista dos aprendizes de filósofo ao desânimo, à inquietação, à desistência. Por isso, hoje, a filosofia não interessa a todos. Ao homem contemporâneo, curioso de novidades, ávido de informação, deveria interessar-lhe a especulação filosófica, a radicalidade do seu pensamento, no entanto isso não acontece. Para ele, a filosofia apresenta-se como algo difícil, penoso, que exige tempo, dedicação pessoal. Daí que o repto de Agostinho da Silva de que se deve estudar ferozmente, com os dentes cerrados, correndo-se o risco de não dominar a filosofia, não agrade ao homem actual, tanto mais que a filosofia não se compadece com a facilidade, o comodismo e o conformismo do nosso tempo. Efectivamente, a filosofia não se compra, não se obtém como um novo produto informacional que se possa digerir com o comando da TV na mão. Como refere Daniel Innerarity, a filosofia exige tempo e não combina com a cultura da pressa.
      A filosofia pode transformar-se, adaptar-se aos tempos, mas não pode desvirtuar a sua verdadeira função, a de repensar a vida. Obviamente que podemos repensar a vida de muitos modos, uns mais fáceis, outros mais difíceis, mas a filosofia não se deve acobardar no silêncio dos pensamentos profundos. A filosofia deve arriscar o ridículo, não temer as batalhas, não se alhear dos assuntos da ágora. Desde as questões últimas, as mais radicais, as que surgem intemporalmente do próprio fundo dos tempos, às mais simples e actuais, aos programas de televisão, à moda, ao gosto, à literatura, à governação do país, à exploração dos imigrantes ilegais, ao aumento do preço do petróleo. Todas as questões que tenham a ver com a vida humana não podem passar indiferentes ao filósofo. Com a particularidade de poder pensar sobre as coisas com total liberdade. Deve ser esse o grande ideal da filosofia: a liberdade de pensamento. A par dessa liberdade, a filosofia possui um carácter fundamentador. Fundamentar é ir aos limites possíveis, aos pressupostos últimos sobre os quais assenta uma opinião, integrando-a num todo relacional, que lhe confira completude, sistematicidade. Deste modo, o discurso filosófico enquadra sempre um conjunto de relações integradoras de uma visão do mundo devidamente organizada. Assim, é impossível ter uma opinião fundamentada sobre a eutanásia, se não tenho uma perspectiva sobre o que é o homem, sobre a sua relação com o transcendente, sobre o que é existir e para que existimos, sobre o que é o bem e o mal, sobre o que é o tempo, a vida e a morte... Acrescente-se ainda um outro aspecto ao discurso filosófico, o seu carácter ético e estético - a filosofia não deixa de ser uma arte, não sei se como defende Innerarity, uma das belas artes, mas pelo menos a arte de produzir raciocínios livres, que fundamentem opções de vida e visões do mundo. Sendo que tais raciocínios se apresentem estruturados sob a forma de discurso.
      O apregoado desinteresse acerca do discurso filosófico, as eternas queixas acerca do seu emaranhado, do barroco surrealista das suas ideais, da estranheza dos seus conceitos, não nos deve, de maneira nenhuma, afastar da filosofia, embora algumas dessas queixas possam até ter razão de ser. Do mesmo modo que o atleta não se priva dos sacrifícios a que está sujeito, das dificuldades e das incertezas do seu sucesso desportivo, o aprendiz de filósofo deve ser corajoso. A filosofia pode contribuir, de algum modo, para a nossa realização como seres humanos, para fazer vir ao de cima o que de mais importante podemos alcançar na vida - a nossa liberdade; o que não significa que esse ideal não se possa alcançar sem filosofia.
      A Alegoria da Caverna é paradigmática do que temos vindo a referir. Os males de que aparenta padecer a filosofia estão já aí patentes. Platão alerta-nos do seguinte modo: se o prisioneiro que se soltou voltar ao interior da caverna, terá os olhos cheios de trevas e a sua incapacidade causará o riso dos outros, o que em última instância será uma justificação para a inutilidade da filosofia. Esta justificação aparece hoje com novas variantes, novas facetas típicas da mentalidade actual, mas a sua presença continua actuante. Lembremo-nos, apesar de tudo, que essa incapacidade não é mais do que uma tentativa humana e falível de pensar livremente, de arriscar um olhar, mesmo que no fim do trajecto não haja nenhum pote de ouro, nada, ilusão, ou pelo menos o encontro de outros olhares como o nosso, que ousaram partir, arriscar, sentir esse lado errante, incerto, vacilante, próprio do pensamento originário.
    É vulgar ver-se na filosofia uma ascese, no entanto não é esse o verdadeiro sentido da filosofia. Antes nos parece que a filosofia é uma fuga para a liberdade, liberdade que por vezes sucede ser liberdade-diálogo, abertura ao outro. Não deixa, pois, a filosofia de ter um sentido ético fundante da vida humana, já que essa necessidade de encontro, para além das suas raízes biológicas, tem também fios linguístico-cognitivos que arrastaram o homem para um verdadeiro sentido comunitário. Os homens encontram-se no modo como olham o mundo.
     A alegoria platónica é escrita no âmbito de uma visão completa e sistemática acerca do ser humano no mundo, pelo que não se pode entender a filosofia como um mero mecanismo de educação pertencente a um sistema de organização social e política. Platão apresenta o homem na sua totalidade, nas suas relações múltiplas, na sua completude. Ora, não haverá hoje, época de crise dos sistemas, muitos falsos filósofos apenas enredados em academismos puros, em análises mais ou menos científico-literárias, num esforço inconsciente e inconsistente de legitimação epistemológica pela afirmação do mesmo? Parece-nos que sim, embora pensamos, como Nietzsche, que o homem alexandrino, o corcunda, o puro teórico, já tem uma existência antiga e não é fácil livrarmo-nos dele. Quem ousa hoje tentar fundar um sistema de pensamento total e pessoal, integrador dos vários pontos de vista sobre a natureza humana e partir daí para as questões mais pequenas e, aparentemente, insignificantes? Poucos. Há hoje, um amontoado de pessoas dedicadas à filosofia que não passam de meros opinion makers, editorialistas de filosofia, enredados numa espécie de pequeno clube de pseudo-intelectualidades vãs. Talvez, também por isso, muitas pessoas se afastem hoje da filosofia, o que de todo não constitui nenhuma tragédia nem motivo de alarme. Parece-nos que algumas das queixas e lamentos acerca do papel da filosofia, bem como da sua situação social e educacional, não são originais. Original talvez seja o afastamento dos filósofos dos círculos de poder ou, pelo menos, das novas formas de poder, como os meios de comunicação social. Como sabemos o filósofo muitas vezes frequentou os palácios e as cortes, as esferas diplomáticas e as cátedras mais importantes. Alguns filósofos ainda herdeiros deste complexo de poder mais ou menos absolutista, não aceitam pois a condição mais humana e humilde da filosofia, reflexo da própria natureza constituinte do ser humano, da sua relação com o mundo e a vida.
    É certo que existe na filosofia uma dimensão social e política, mas a filosofia em termos sociais e políticos está integrada numa visão global da situação do homem no cosmos.
    A alegoria platónica revela uma visão fundamentada acerca do mundo e apresentado-nos o homem na sua dimensão total e livre, uma vez que os homens não são forçados a ser prisioneiros, o trajecto da libertação está aberto a todos. O filósofo não está acima de ninguém, é um homem como os outros, que deseja estar com eles. Assim, se a Alegoria possui algum sentido último, aquela força reveladora das metáforas de que fala María Zambrano, é o de que uma sociedade governada por filósofos é aquela, não em que os filósofos são reis, mas em que todos os homens podem ser reis se assim o desejarem. É esta visão humanista acerca da vida, da crença e convicção na possibilidade de todo o homem aprender, se o desejar, que marcou a filosofia como território de liberdade e abertura ao outro, como lugar de encontro, onde os saberes, marcados por uma matriz originária, podem regressar à sua unidade, a um espaço-tempo perdido na lonjura dos tempos, ao reencontro dos laços que se soltaram. A filosofia não deve, pois, andar arredada do palco da vida, da ágora, do quotidiano, não deve voltar as costas à ciência, à arte, à religião, à política e ao senso comum. Como sugere Levi Malho, não deve cair na tentação de também ela cercar o seu território com o arquétipo disciplinar da modernidade. A filosofia é o lugar de todos os encontros. Deve, portanto, a filosofia estar de braços abertos a quem nela queira entrar, ao artista, ao cientista, ao homem comum, não para se vergar ou envergonhar, não para olhar de cima com arrogância, mas para procurar atar os laços, para reconduzir todos os saberes a um fundamento único. Ela é a arte não de segurar, mas de poder segurar laços, de poder abrir brechas, e não deve ter medo de ser aquilo que é, isto é, de ser apenas filosofia.

 

© João Fonseca

 

 

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