A LUTA AUTÔNOMA

Lúcia Bruno

A LUTA AUTÔNOMA

A força de trabalho é a única mercadoria cujo valor se estabelece através de uma luta social.
Enquanto o operário procura incorporar o máximo de tempo de trabalho nesta mercadoria que vende ao capitalista, tendo em vista aumentar o seu valor, o capitalista procura reduzi-lo ao máximo.
Essa luta tem um caráter muito peculiar no capitalismo. De um lado, constitui fator integrante do sistema, pois é o próprio processo econômico que determina a fixação de um valor para a força de trabalho, que encontra no salário a sua expressão jurídica.
Por outro lado, essa luta não tem condições de se desenvolver no tipo capitalista de organização operária que o sistema de exploração impõe. A disciplina da fábrica implica na completa obediência e submissão do operário ao sistema tecnológico de produção. E esta é a única forma de organização que o capitalismo pode admitir.
No entanto, esta luta não pode deixar de existir porque ela é exigida pelo próprio sistema econômico. É a partir daí que se dá o assalariamento produtivo, e dessa luta resulta o aumento da produtividade e da intensidade do trabalho.
Além disso, sem a luta do proletariado pela diminuição do grau de exploração, ele correria o risco de, não opondo resistência à miséria, desaparecer fisicamente.

Nesse sistema econômico onde o proletariado procura aumentar o valor da sua força de trabalho e o capitalista procura diminuí-la, desenvolve-se um campo institucional que garante a reprodução dessa contradição: o campo sindical.
A organização sindical representa precisamente o ponto em que a luta pelos seus objetivos se insere no capitalismo.
Você pode prestar atenção; sempre que se desenvolve uma luta proletária efetiva, ela acaba extravasando o campo sindical e criando formas de organização fora do sindicato. Por exemplo: os comitês de greve, as comissões de fábrica, etc.
Quando se verificam aumentos salariais onde essas novas formas de organização não surgem, é porque não houve nenhuma luta proletária. É quando o sindicato cumpre plenamente o seu papel no capitalismo: de organismo especializado que planifica para o capitalismo os aumentos que este necessita para a expansão do mercado de consumo particular.
Quando, ao contrário, se desenvolvem lutas proletárias, que extravasam, pelo menos no interior de cada unidade produtiva, os limites do sindicato, os dirigentes sindicais cumprem a tarefa de definir um meio-termo aceitável para os patrões. É dessa forma que integram as lutas proletárias na dinâmica do capitalismo. Com isto quero dizer que nenhuma luta pode se expandir nos limites estritos do aparelho sindical, assim como não se desenvolve sob o esquema rígido da disciplina fabril.

Mas então fica a pergunta: se a classe operária quando luta diretamente pela diminuição da exploração não atua nas instituições existentes no capitalismo, onde é que ela atua? Eu diria que ela atua fundamentalmente nas organizações que cria no próprio processo de luta - nas instituições autônomas.
Esta é uma contradição muito importante do capitalismo. É a própria dinâmica de seu desenvolvimento que determina o surgimento de relações sociais que lhe são antagônicas. Relações sociais igualitárias e não especializadas, que destroem o sistema da “representatividade”, característico do capitalismo.

Na resistência contra a exploração do capital todos os operários são iguais. O movimento social dos explorados, hoje, tende a projetar esta igualdade para além da destruição do sistema no qual ela foi gerada. . . Isto é, as novas relações sociais criadas no processo de luta tendem na sua expansão a se realizarem em novas formas econômicas e, portanto, em novo modo de produção.
Por isso, podemos dizer que nas sociedades contemporâneas se articulam duas realidades sociais antagônicas: o modo de produção capitalista e o socialismo em permanente tendência para o desenvolvimento, fundado nas relações igualitárias e comunitárias que o proletariado cria no decorrer de suas lutas.

Tudo isto é bastante abstrato. Vejamos de maneira mais concreta como essas lutas se desenvolvem e por que têm sido derrotadas.

AS INSTITUIÇÕES AUTÔNOMAS

Os indivíduos não atuam no vazio, mas dentro de instituições que criam no decorrer de sua existência. Isto quer dizer que quando a classe proletária luta diretamente contra a sua situação de explorada/oprimida, separando-se da lógica capitalista, cria nesse ato novas organizações sociais que constituem as condições da transformação social.
Essas organizações, a que chamei conselhos operários ou comissões de fábrica, privilegiam a luta na empresa, ultrapassando os aparelhos sindicais e partidários, desenvolvem práticas novas onde se afirma a preponderância das bases trabalhadoras frente aos dirigentes e a satisfação das necessidades da vida cotidiana frente ao capital, etc.
Saídas diretamente do processo de luta, essas organizações unem os trabalhadores em função das lutas práticas e não de objetivos abstratos mais ou menos limitados.

Por viabilizarem praticamente formas embrionárias de controle e gestão da produção pelos trabalhadores, as comissões de fábrica constituem a forma embrionária das novas relações sociais de produção.
Ao mesmo tempo, iniciam formas institucionais de extinção do poder político, porque são organizações que enquadram os representantes eleitos pelos trabalhadores, especialmente quando a luta se expande e passa das comissões de fábrica locais para formas mais avançadas constituídas por órgãos que articulam outras comissões.

É importante salientar que a comissão de fábrica não é forma política no sentido tradicional do termo. Ela não tem autonomia com relação ao conjunto dos produtores; tal como ocorre com o Estado, por exemplo.
Quanto mais se desenvolve a comissão de fábrica - enquanto órgão de controle e gestão da produção, por exemplo - mais diminui o caráter intermediário nesse controle.
Se criamos instituições através das quais podemos decidir em conjunto sobre todos os aspectos da vida social, eliminamos aqueles que sempre decidiram por nós: os políticos profissionais, que detém o controle das decisões. Criando as instituições que realizam a democracia direta eliminamos o Estado, que existe para decidir por nós e sobre nós.
Com isto quero dizer que a dinâmica do socialismo é dada pelo conjunto organizado da classe operária. mediante a criação de estruturas próprias de poder, onde os representantes estão controlados nas suas atribuições por todos, podendo ser destituídos a qualquer momento.

É preciso diferenciar a representação nessas organizações e a representação nas estruturas políticas capitalistas, onde ninguém controla a ação dos nossos “representantes”.

1- Os elementos eleitos pelos trabalhadores não têm possibilidades de decidirem por si mesmos. Eles são simplesmente executores. Apenas o conjunto dos representados pode decidir.
2- Os representantes eleitos só executam tarefas e não determinam linhas de ação, pois seus limites estão de antemão delimitados e, portanto, não podem extravasar as suas funções.
3- Esses elementos permanecem como representantes, no máximo, até o tempo de executarem as tarefas, eles não têm como se reproduzir em nova classe dominante.
4- Os representantes permanecem na produção e os seus atos podem ser controlados a cada momento. O desempenho de funções na qualidade de representantes dos trabalhadores não lhes confere nenhum tipo de privilégio.

Você pode notar que o tipo de organização social que os operários criam na sua luta direta e autônoma é completamente diferente e oposto ao sistema de representação existente no capitalismo. No sistema dominante quais os mecanismos de controle que temos sobre os indivíduos que elegemos? Nenhum. Que informações temos de sua atuação no parlamento ou na chefia de um Estado ou coisa semelhante? Aqui impera o sigilo, fundamental em toda estrutura burocrática, onde informação é poder.
Mas não se trata de mistificar ou idealizar as comissões de fábrica. A existência dessas instituições atestam o descrédito em que caíram os sindicatos e os partidos políticos no mundo contemporâneo. Ao mesmo tempo, expressam o grau de autonomia da classe operária com relação às instituições capitalistas.
No entanto, nem sempre isto quer dizer que exista uma absoluta democracia na condução das lutas e que são as próprias bases operárias a manterem em mãos a iniciativa e o poder, no combate contra a exploração.

É preciso ver os problemas com os quais as comissões de fábrica se deparam, e o funcionamento das mesmas. Na realidade, o caráter complexo dos processos de transformação social inviabiliza qualquer tentativa de impor um modelo acabado de organização.
O estudo da história do movimento operário e das novas formas de luta que hoje presenciamos podem nos indicar as tendências e possibilidades futuras do movimento, nunca suas formas concretas de realização. Estas dependem da articulação complexa de todas as variantes e especificidades históricas de cada momento considerado.

Voltando ao problema colocado, pode acontecer de uma comissão limitar-se a servir de intermediária entre o sindicato e os trabalhadores. Se isto mostra a exterioridade do sindicato com relação à classe, mostra também que é o sindicato quem conduz todas as lutas, mantendo os trabalhadores em uma situação de apatia. A comissão limita-se a dizer ao sindicato o que os trabalhadores gostariam que fosse feito e a dizer aos trabalhadores o que o sindicato decidiu fazer. Vemos que na realidade essa comissão exerce a função de seção sindical, subordinada ao sindicato.
Há ainda comissões que, apesar de informarem todos os trabalhadores e os consultarem antes de qualquer atuação, acabam se isolando das bases. Isto acontece não porque se tornaram “pelegas”, mas porque os trabalhadores caíram numa certa apatia. E a que se deve esta apatia?
Este é o ponto central, pois nenhuma organização pode fazer sozinha o que compete ao conjunto dos trabalhadores. Antes de avançarmos nesta questão, a partir de que momento se verifica o isolamento das bases?
O aparecimento de uma comissão de fábrica, autônoma, demonstra um grau elevado de atividade dos operários, e essa atividade vai se refletir no controle a que estará sujeita a comissão eleita pelo conjunto dos operários. No início são realmente todos a decidirem o que a comissão vai executar. Mas depois começa a haver uma distinção entre o conjunto dos operários e os executores. São sempre os mesmos - os membros da comissão - que executam e decidem.
Os trabalhadores, então, se afastam de toda a atividade e a comissão se apodera de todas as iniciativas.
A partir daí está criado o isolamento da comissão e se desenvolve o terreno ideal para a sua burocratização, para a defesa de interesses particulares (partidários ou não) que acabam prevalecendo sobre os interesses do conjunto. É ainda o momento propício para a repressão patronal, que acaba despedindo os trabalhadores mais combativos.
Isso porque os trabalhadores foram afastados do trabalho prático e voltaram a uma situação amorfa. Com isto quero dizer que as organizações autônomas só podem existir em momentos de luta direta e conjunta de todos os interessados.

De nada adianta criticar as lutas operárias pelo fato de acabarem integradas no capitalismo. Ou dizer que as organizações autônomas não sobrevivem por muito tempo, pois são destruídas pela repressão ou subordinadas às cúpulas sindicais e partidárias.
A questão fundamental é procurar novas formas de manter essas organizações, generalizando-as e unificando-as.
A circulação de informações, a troca de experiências entre trabalhadores inseridos em lutas diferentes, é indispensável para desenvolver a solidariedade e a coesão dos trabalhadores.
Nas sociedades contemporâneas, o peso das práticas sociais que tendem a integrar indivíduos e grupos sociais pertencentes a classes sociais antagônicas é muito grande. Essas práticas são realizadas a todo o momento nas instituições de consumo, de lazer, na escola, nos partidos políticos, nas instituições religiosas, etc.
Em momentos de ascenso revolucionário, elas acabam sendo negadas na prática, através da criação de novas instituições sociais - as comissões autônomas, os comitês de moradores, etc. Mas para que elas se desenvolvam e se generalizem é fundamental a expansão das diversas lutas, ultrapassando, assim, o localismo em que surgem. Não é possível a existência de “ilhas” autônomas num contexto capitalista.

Uma comissão autônoma tem grande poder, porque expressa o que há de mais importante na fábrica: a força-de-trabalho, sem a qual não existiria capital. Por esse motivo, ela é sempre “objeto de desejo” de muitos.
São os patrões que procuram cooptá-la para que funcione como amortecedor dos conflitos internos da fábrica.
São os partidos políticos que tentam a todo instante inchar-se com a força alheia.
São as cúpulas sindicais que procuram estender seu campo de controle para dentro das fábricas.
É contra tudo isso que os trabalhadores têm de lutar, tendo em vista manter a comissão sob seu controle efetivo. Para que funcione como instrumento de luta e campo de desenvolvimento das relações igualitárias, a autonomia das comissões é fundamental. De nada adianta eleger comissões de trabalhadores, se estes não as controlam diretamente. Os trabalhadores não lutam por delegação. Lutam eles próprios ou não há luta revolucionária.

Uma comissão que não seja a expressão da luta auto-organizada e autodirigida pelos operários nada tem de autônoma. Muito menos aquelas criadas pelo patronato, ou ainda as fomentadas de fora por militantes que pretendem utilizá-las como células de seus partidos.
O caráter subversivo das organizações operárias reside no controle que o conjunto dos interessados tem sobre a ação daqueles que foram eleitos como seus porta-vozes.

Pensar que o capitalismo integra estas instituições é ver apenas os seus traços exteriores. Não existe a menor possibilidade de se conciliar estruturas de organização antagônicas.

As comissões de fábrica, enquanto expressão das relações igualitárias e coletivistas, nada têm a ver com as comissões criadas pelo patronato, pelos partidos políticos ou pelas cúpulas sindicais.
Sobre estruturas desse tipo, centralistas e burocratizadas, só podem se desenvolver relações sociais de militarização, submissão e dependência, que prefiguram as relações sociais numa sociedade de exploração.

A integração das comissões de fábrica, assim como de outras práticas autogestionárias, se dá pela destruição dessas instituições e práticas. Muitas vezes, se conserva o mesmo nome, mas para encobrir práticas absolutamente diversas.
Por isso, não é para o nome das organizações que devemos olhar. É para a sua estrutura interna e para as funções práticas que concretamente realizam. E isto não apenas num dado momento. E preciso ver, no processo de evolução das lutas, como estas organizações vão se desenvolvendo.

Extraído de O que é Autonomia Operária, Lúcia Barreto Bruno, Coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense, 1985.



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