O BOM CIDADÃO
Malungo
Só lhe resta um olho (o outro ainda escorre lentamente da cavidade ocular), mas entregou-se ao uso. Em volta, os muros sorriem. A televisão vomita na sua cara, provocando-lhe um estranho gemido. A boca, em forma de U, parece um ânus. Onde quer que ele vá, a mesma cena. Por toda parte: um carro fala, um hambúrguer grita, belos vestidinhos comentam a respeito da conjuntura geopolítica. E todos dançam.
Durante a semana, ele é desgastado, utilizado, dedado no olho, pisado, chutado no saco, cagado&mijado e, enfim, elogiado pelo patrão. Mas tem os seus direitos: por exemplo, o de votar, escolhendo entre o ruim e o pior, de tempos em tempos.
Está subjugado ao tripalium.
É um trabalhador e, às vezes, até se orgulha disso.
Produz tudo que pode ser produzido. Em troca, recebe uns pedaços
de papel com os quais tenta imantar os objetos à venda. Não
percebe que a mercadoria obedece ao dinheiro, não a ele. Até
mesmo a água suja do arroz com feijão que ele come.
O mundo, reduzido a espetáculo
mercantil, pulula em bisonhos fetiches antropomórficos. Das vitrines,
inconsoláveis, as coisas choram a falta do pedaço de papel
moeda - que se tivemos, já não temos... As mercadorias não
existem para satisfazer as necessidades humanas.
Oh! Sim... E, para impedir
a satisfação das necessidades, estão convocados fuzis,
metralhadoras, tanques e a servidão (mais ou menos voluntária)
dos que os manejam.
"E tudo que não se pode fazer, o dinheiro faz
para a gente. Pode-se comer, beber, ir ao baile e ao teatro. Ele pode adquirir
arte, saber, tesouros históricos, poder político; e pode-se
viajar. Mas, apesar de poder fazer tudo isso, o dinheiro só quer
criar a si mesmo, e comprar a si mesmo, pois tudo mais a ele se submete."
(K. Marx – Manuscritos Econômicos e Filosóficos)