Algumas
considerações sobre a reorganização da esquerda revolucionária
Há 58 anos,
o escritor francês Georges Sorel afirmava que "os historiadores e os
atores no drama histórico são incapazes de ver o que mais tarde será
entendido como a essência do que aconteceu" (1). Esta verdade genérica é
também particularmente válida para a esquerda (revolucionária). Semelhantes
àqueles que, na Idade Média, marcharam com o "Bundschuh" (2) para
implantar o Reino de Deus na Terra, quando, na verdade, estavam lutando
contra a sociedade feudal, muitos esquerdistas revolucionários dos séculos
XIX e XX tinham idéias falsas sobre o real significado de seus pensamentos e
atos. Estavam convencidos de que dirigiam uma revolução proletária, mas a
revolução pela qual se empenharam levou à transformação do capitalismo
privado em capitalismo estatal.
Recentemente,
afirmou-se que "com o colapso do socialismo real... a esquerda ficou
profundamente abalada" (3). Ninguém negará a realidade deste abalo. Mas
deve-se acrescentar imediatamente que o que entrou em colapso não pode ser
definido como socialismo real. E, por mais que
este abalo cause preocupação, ele finalmente forçou a esquerda a abrir
mão de suas ilusões.
No entanto, o
fim das ilusões ainda não levou a
uma reorganização. No máximo,
pode-se ver apenas uma de suas precondições. Isto se deve ao fato de que a
esquerda tradicional pode ser caracterizada não somente por suas ilusões sócio-políticas
mas também por suas formas de organização e suas pretensões. Talvez, por razões
históricas específicas, esta esquerda entre na cena pública como um partido
ou grupo político que se apresenta como "a vanguarda da classe operária"
e considere que sua tarefa é estimular o que ela define como "consciência
de classe" dos trabalhadores. Esta tarefa é considerada urgente porque a
esquerda considera que os trabalhadores são
"o agente da revolução que ela prevê".
De fato, é
justamente o contrário: a revolução proletária é o resultado da luta diária
dos trabalhadores. Para a esquerda tradicional, o ponto de partida não é a
luta de classes, mas a revolução. Seu princípio é a tese leninista "sem
teoria revolucionária não há prática revolucionária". Isto é, a prática revolucionária tal como ela a entende.
Quer a
esquerda tradicional acredite ou não, ela se caracteriza pela crença errônea
de que se substituirmos as idéias falsas pelas verdadeiras, a realidade
existente irá desabar. Sem dúvida, o equívoco pode ser explicado pelo fato de
que, embora a esquerda saiba que não é a interpretação que importa mas a
transformação, ela considera esta transformação não como um ato do
proletariado, mas como um ato da vanguarda. Ou seja, resultante da ação desta.
Não obstante, como já sabia Marx: "Não se trata do que este ou aquele
proletário ou mesmo o proletariado em seu conjunto se apresenta como objetivo.
Trata-se do que o proletariado é na realidade e do que ele será historicamente
compelido a fazer de acordo com seu ser" (4). Contrariamente a Marx, a
esquerda tradicional pensa que a classe operária precisa aprender que deve
lutar para superar a sociedade capitalista e que a vanguarda está lhe ensinando
isso! Deste modo, ela se torna um estrato intelectual acima da classe. E isto é
verdade desde o início.
À primeira
vista, a pretensão da esquerda tradicional parece ter uma certa base na
realidade, mas só à primeira vista! Tão logo essa esquerda explica sua posição
em relação à assim chamada "passividade dos trabalhadores quando
deixados a si mesmos", torna-se claro que a prática dos trabalhadores está
longe de ser o que essa esquerda crê que deveria ser, não é o que deveria ser
de acordo com essa esquerda. A realidade, assim, não está de acordo com o que
a esquerda tradicional pensa. Em suma: essa esquerda vê a realidade de cabeça
para baixo.
Não é
verdade que sem teoria revolucionária não há prática revolucionária. Não
é verdade que certas opiniões e idéias, que uma certa quantidade de consciência
são uma precondição absoluta para a luta.
É justamente o contrário! Afirmou-se muitas vezes que a "teoria se
torna uma força material assim que se apossa das massas". Porém, uma
teoria nunca é mais do que um balanço das experiências do passado e de suas
conseqüências. Não é por causa de uma certa teoria que se têm novas experiências
de luta, mas novas experiências que surgem da
luta dão nascimento a uma nova teoria. Isto é um processo contínuo. Não
é um processo na cabeça dos trabalhadores. Eles não sacam conseqüências teóricas,
mas práticas. Eles não lutam para cumprir nenhum tipo de teoria, eles lutam
por seus interesses. Sua prática não é o resultado de uma certa teoria, ao
invés disso, sua prática é que tem conseqüências para a teoria. Quando as
circunstâncias que levam à luta não existem, a voz da esquerda, que pensa a
teoria como precondição da luta, permanece a voz de um pregador no deserto. O
fato de este comportamento permanecer ainda hoje
- e não desde há poucos anos - é mais claro do que nunca que é a essência da crise.
Que
possibilidades tem a "esquerda revolucionária" de superar essa crise?
A discussão de sua reorganização
implica em dizer com clareza para os trabalhadores que a transformação do
capitalismo privado em capitalismo de Estado não muda sua condição de classe.
Porém, isto também não contribui para superar a crise. Não difere de quando
os "esquerdistas" dizem que a libertação da classe trabalhadora não
significa um ato político, mas social. E de quando eles dizem que uma mudança
nas relações de produção - em outras palavras, a abolição do trabalho
assalariado - não pode ser realizada por um partido ou vanguarda. Isto requer a
luta autônoma, de modo que os trabalhadores criem suas próprias organizações,
completamente diferentes das tradicionais. Nada disso tem a ver com abandonar a
luta.
A derrocada
do falsamente chamado "socialismo real" parece ser a causa de uma
crise crescente, mas certamente não é bem assim. Ao contrário, tem a ver com
o fato de que o velho movimento operário, cujos líderes proclamavam estar
agindo em favor dos trabalhadores e
tomavam decisões em nome deles, se tornou um anacronismo. Hoje, pode-se ver um
abismo crescente entre os pretensos líderes e os trabalhadores, que são
impedidos pelos tais líderes de agir por si mesmos e fazer seu próprio
destino.
A
autoproclamada "esquerda revolucionária" crê que sua reorganização
significa que ela deve apresentar outros slogans e, com outros princípios e
perspectivas, continuar agindo como vanguarda, tentando ensinar e conduzir
os trabalhadores. Ela apenas continuará vendendo gato por lebre. Mas
agindo assim, ela está apenas sendo coerente com a lei que rege sua própria
forma de organização. A realidade mostra que os revolucionários têm mais a
aprender dos trabalhadores do que a lhes ensinar.
Ou seja, não tentando impor suas próprias idéias, mas compreendendo o
que os trabalhadores estão fazendo. Mas se fizesse isto, a esquerda não seria
mais uma vanguarda e isto iria interferir nas intenções de reorganização.
Cajo Brendel
O autor
se define como marxista. Ainda? Que significa este "ainda"? Se alguma
teoria desmoronou, não foi o marxismo. O autor quer ressaltar que o que se
entende aqui por "esquerda revolucionária" é a esquerda tradicional,
que existe desde o início do movimento operário e que hoje experimenta uma
crise devido ao surgimento de novas formas da luta de classes que não
correspondem às velhas tradições. [nota do autor]
NOTAS:
1 – Georges
Sorel, "Reflexões sobre a Violência".
2 –
Bundschuh (União dos Sapatos). Seu
símbolo, um sapato, era pintado na bandeira dos camponeses
rebelados. Era, aliás, muito diferente dos belos sapatos dos senhores
feudais, para que não houvesse dúvidas sobre quem empunhava aquela bandeira.
3 – A
revista alemã "Spezial" julho/agosto de 1993, p. 24.
4 – Marx & Engels, "A Sagrada Família".
Livremente traduzido de Some Thoughts on the Re-organization of the Revolutionary Left, disponível em http://ca.oocities.com/red_black_ca/