CARACTERÍSTICAS GERAIS DAS LUTAS DA ÉPOCA ATUAL

O texto abaixo é uma tentativa de esquematizar e sintetizar as características gerais das lutas de classes na época atual, fazendo abstração de todo elemento particular. Não é e não pretende ser uma receita para cada momento da luta. Contudo, parece-nos útil para formular uma linha geral internacional que oriente a ação das minorias de vanguarda do proletariado.


FORMAS GERAIS E PERMANENTES DE CANALIZAÇÃO DA LUTA DE CLASSES

A manutenção da ordem burguesa implica, como é óbvio, a negação permanente e cotidiana de toda organização do proletariado como classe para destruir o Capital e o Estado. Entretanto, não nega abertamente os interesses dos operários (como nos primeiros séculos do desenvolvimento capitalista), prefere enquadrá-los, transformando-os nos interesses normais do cidadão ou do vendedor de mercadorias (o que é também uma negação dos interesses do proletariado, de forma indireta). Ou seja, a melhor forma que o Capital encontrou (1) para manter seu inimigo histórico diluído como classe é sua integração no cidadão atomizado e/ou sua dissolução em categorias profissionais, como vendedor da mercadoria força de trabalho. As expressões mais desenvolvidas das duas negações dos interesses da classe operária são: o eleitoralismo e o sindicalismo. A negação permanente do proletariado como classe, que vivemos cotidianamente e que assume a forma de paz social, sustenta-se, tanto histórica quanto logicamente, no terrorismo geral monopolizado pelo Estado. Mas deixemos agora este aspecto tão decisivo, assim como a cidadanização e o eleitoralismo, que foram objetos de outros textos (2) e nos concentremos no tipo de canalização propriamente obreirista das lutas.

Não há dúvida de que, sempre que pode, o Capital (de acôrdo com sua tática geral de divisão do proletariado) "maneja" o proletariado, setor por setor. Em tal contexto, os sindicatos e outros aparatos de controle e divisão dos proletários conseguem manter a paz social enquadrando as lutas em "greves" e "manifestações". Além de tais "lutas" sindicais não questionarem a paz social, o partido histórico da contra-revolução (a social-democracia em todas as suas formas) utiliza a greve de braços cruzados e as manifestações pacíficas como formas por excelência de canalização e esgotamento das energias proletárias.

Quando afirmamos isto, não nos referimos somente às paralisações de trabalho parciais com aviso prévio e tempo determinado, que evidentemente só podem agradar aos patrões, mas também àquelas "greves" (3) que os sindicatos organizam, com certa radicalidade (que podem incluir até atos violentos e são freqüentemente impulsionadas pelos sindicalistas "combativos"), mas que em geral não rompem fundamentalmente com a paz social, por seu caráter setorizado e corporativo, por seu localismo, por enclausurar-se em sua categoria profissional, numa reivindicação particularista frente a certos patrões, a um determinado poder municipal ou nacional... o que geralmente se traduz em decisões de "todos os trabalhadores" de não deixar entrar nenhuma pessoa que não pertença ao setor, categoria, local de trabalho, etc. Esta é a garantia sindical de que a "luta" não será uma luta proletária contra o Capital, mas uma expressão qualquer do particularismo e, em nível global, da concorrência interburguesa. Por outro lado, a força proletária é canalizada em reivindicações que não atacam fundamentalmente a exploração (é preciso ser responsável frente as "necessidades da economia nacional"...) e/ou são levantadas barreiras entre os operários de determinado setor e os de outro. Nos países onde a concorrência capitalista se desenvolve com base nas lutas separatistas ou nacionalistas, usa-se exaustivamente essa manobra para aumentar a divisão dos proletários.

O mesmo acontece com as manifestações. Mesmo que se aceitem certas expressões radicais, as marchas pacíficas, bem enquadradas, com reivindicações parciais e que em geral contam com a tolerância das forças da ordem, só têm como função o simulacro do protesto, a manipulação e o desgaste das energias operárias (4).

Com o desenvolvimento do Capital, tal prática foi se consolidando e tornando habitual em toda organização mais ou menos estável da dominação capitalista. Desde muito cedo, no alvorecer do Capitalismo, ao lado das associações operárias, surgiram (como recuperação daquelas ou como criações diretamente burguesas) os sindicatos e outros aparatos de Estado (cujas denominações são muito variáveis, segundo o país) encarregados de realizar o enquadramento "operário" das lutas para transformá-las em seu contrário. Com o tempo, todas as associações massivas e permanentes de operários foram recuperadas e transformadas em aparatos de dominação estatal. Isso é uma demonstração palpável da impossibilidade de coexistência pacífica entre os interesses do Capitalismo e os do proletariado. Ao contrário do que dizem os sindicalistas e social-democratas em geral (incluídos os maoistas, trotskistas e guevaristas, que sustentam que os sindicatos, mesmo não lutando pelos interesses históricos do socialismo, defendem os interesses imediatos dos proletários), não é possível defender os interesses imediatos do proletariado sem enfrentar o Capital e, portanto, o Estado.

Paralelamente, a conquista pelos sindicatos de seu lugar no Estado (ao lado da polícia e do exército, que nada mais são que aparatos de liquidação de nossas lutas) e as práticas que esses aparatos impulsionam - o assembleísmo, as paralisações parciais e as "greves" controladas, as manifestações pacíficas, etc - se consolidaram e tornaram indispensáveis à manutenção da ordem burguesa em toda parte.

Quais foram as conseqüências? Do ponto de vista do Capital, é o processo no qual pelo qual ele se afirma e demonstra sua onipotência e sua pretensão de eternidade, recuperando tudo o que antes lhe era oposto, cooptando "homens", aparatos, organizações, diretrizes, formas de luta, para pô-los a seu serviço.

Antes, ao ouvir a palavra "GREVE", os proletários de todo o mundo sentiam-se envolvidos. Em qualquer cidade, povoado, fábrica ou bairro, os proletários se reuniam enquanto proletários, porque sua própria vida era vida coletiva de classe. Durante décadas, a vida dos explorados incluiu a discussão cotidiana das condições de sobrevivência, de luta. Em toda parte, qualquer que tenha sido a heterogeneidade da consciência de classe, discutia-se sobre os males desta sociedade, sobre a necessidade de destruir o Capitalismo, de enfrentar o Estado, de construir uma sociedade sem explorados nem exploradores... Não há dúvida de que nas últimas décadas, tudo isso desapareceu. O proletariado parecia não mais existir em escala mundial (5). Na vida diária, era como se só existissem indivíduos: ricos, pobres, mendigos, desocupados, delinqüentes, nacionalistas, terroristas, cidadãos, camponeses, sábios, feministas, estudantes, eleitores, ecologistas... Os intelectuais a serviço da classe dominante e/ou a velha ideologia imbecil da pequena burguesia, que falam da desaparição do proletariado, não dizem somente as mentiras que agradam a toda burguesia mundial, mas também exprimem um aspecto parcial da realidade que nós, proletários, sofremos.

Os proletários já não se sentem proletários, a inconsciência é tal que nem mesmo se concebem como pertencendo à mesma classe. Um se sente muito acima do proletariado porque usa gravata e trabalha num banco, outro se sente camponês e pobre; esse está desempregado, aquele crê que sua missão na vida é a luta pelo feminismo... Muitos estão integrados em diversos níveis nas lutas capitalistas: raciais (incluindo racistas e anti-racistas), nacionalistas, anti-imperialistas, etc. E, por isso, nem sequer se reúnem, nem mesmo trocam idéias sobre a vida, sobre o mundo, enquanto proletários. Nos bares, só se fala em futebol, e a maioria nem mesmo vai ao bar, porque foi quase totalmente negada como ser humano. Nas poucas horas em que a escravidão assalariada o deixa "livre", o proletário é um mero espectador. A combinação televisão e vídeo completou a obra histórica do Estado, ao acelerar a liquidação do proletariado, sua diluição individualista e familiar: não está aprisionado somente durante as 8 horas de trabalho e nas outras 8, em que dorme para poder voltar ao trabalho, está aprisionado também nas 8 restantes.

O Capital faz possível para alcançar a culminação de todo esse processo: uma sociedade na qual só existam bons cidadãos-produtores e se possível humanóides, idiotas úteis que o reproduzam sem questioná-lo, em absoluto. Todos os setores de atividade e de investigação tentam atingir essa meta. Na fábrica e no escritório, substituem-se os homens por máquinas. A informática e a robótica tendem idealmente para um mundo no qual toda vida humana seja substituída por um aparato artificial. A biologia, a genética, os estudos sobre inseminação tendem ao mesmo objetivo: a criação de um "homem" que seja programado por esta sociedade, isto é, pelo Capital. Enquanto esse humanóide não é um produto de laboratório, enquanto não se pode produzir um corpo "humano" que crie valor sem protestar (6), do qual se tenha extirpado toda capacidade de revolta, toda capacidade de pensar de uma forma que não seja a que a sociedade impõe, trata-se de conseguir algo que se assemelhe o máximo possível a isso, com a ajuda desses instrumentos de imbecilização coletiva que são o vídeo, a televisão, os videogames, as eleições, as drogas... Para aquele que não os aceita, existem os hospitais psiquiátricos, as prisões, os manicômios, os tranqüilizantes, as guerras, os vírus, os acidentes nucleares, etc. E, como se tudo isso fosse pouco, como se não fosse suficiente toda essa desumanização do ser humano, nos prometem para daqui a pouco os jogos com imagens virtuais (que, segundo dizem seus admiradores, deverão "abolir a distinção entre o imaginário e o real"), nos quais se poderá "realmente gozar" (7) com uma "parceira virtual", "viajar por todo o mundo" sem sair de sua casa, "lutar frente a frente, estando na América, com alguém na Europa"... sempre entre quatro paredes.

Certamente, as vitórias de nossos inimigos tem sido consideráveis. A submissão é profunda, a perplexidade é geral, a imbecilização é coletiva como nunca foi. E no entanto, o proletariado não morreu. É certo que não se exprime como antes, cotidianamente, com centenas de associações permanentes, com redes de solidariedade, com grupos internacionais e internacionalistas, com a imprensa operária que unia os proletários de todos os continentes... Mas, quando se exprime, é diretamente, de forma violenta e generalizada.

Exatamente porque ninguém acredita nas "greves" que os sindicatos organizam, assim como o sistema político nacional e seus jogos eleitorais não têm o atrativo de antes (quando havia a crença de que um partido parlamentar ou um governo poderia mudar a situação), as manifestações pacíficas e outras passeatas por alguma reivindicação parcial perderam também seu atrativo.... Isto é, exatamente porque as velhas mediações estatais perderam sua capacidade de funcionar como válvulas de escape, o proletariado - que alguns já consideravam morto e enterrado - quando reaparece, investe contra tudo: sem aceitar mediações, sem se deixar esgotar com pequenas greves, manifestações pacíficas ou promessas de eleições.

Nos últimos anos, quanto mais ia ficando clara a inexistência de estruturas de enquadramento do proletariado, quanto mais se dizia que o proletariado havia desaparecido para sempre, tanto mais inesperadas foram as revoltas generalizadas que se desenvolveram numa cidade, em várias e em todas as cidades de um ou vários países. Mencionamos apenas alguns casos, que consideramos mais importantes: Venezuela, Birmânia, Argélia, Marrocos, Romênia, Argentina, Los Angeles (EUA)...

É claro que esses exemplos são bem diferentes, quanto ao radicalismo e à duração do questionamento da ordem burguesa, como examinamos em nossas diferentes publicações. Mas não se deve esquecer que aquilo de que este texto trata não é a análise das diferenças, nem tampouco a comparação dessas situações, mas sim, pelo contrário, da descrição do que há em comum entre elas.

Assim, por exemplo, se nesta enumeração não incluímos o caso do Iraque, não é porque nesse país não possamos assinalar as linhas de força que observadas na maioria das atuais revoltas proletárias, mas porque na última década nesse país houve uma continuidade na auto-organização do proletariado, na ação de grupos comunistas, na presença de bandeiras proletárias, que constituem quase uma exceção e, em todo caso, um aspecto contra a corrente que faz com que a situação da luta de classes nesse país transborde o esquema geral que utilizamos neste artigo, que, aliás, não pretende prever até que ponto esse transbordamento pode funcionar como estímulo para uma superação generalizada. O que há de objetivo a respeito é a enorme dificuldade que nós, proletários internacionalistas, encontramos para que seja assim. Ver nesta mesma revista o artigo "Ação direta e Internacionalismo".

O TIPO DE REVOLTA PROLETÁRIA QUE CARACTERIZA O PERÍODO ATUAL: A FORÇA PROLETÁRIA

Antes, o proletariado mostrava cotidianamente sua existência e seu antagonismo com a ordem social. Atualmente - se excetuarmos a existência de minúsculas organizações proletárias revolucionárias que persistem (como por exemplo nosso grupo), e cuja própria existência, como produto da prática histórica do proletariado, afirma, contra a corrente, a determinação proletária - o proletariado só mostra que existe, só desmente sua suposta desaparição histórica nas explosões sociais como as que caracterizaram a década de 80 e têm caracterizado a de 90 (8). Adiante, sublinhamos os traços - que consideramos essenciais - de tais revoltas.

Essas explosões se caracterizam pela ação violenta e decidida do proletariado, que ocupa a rua e enfrenta violentamente todos os aparatos do Estado. A massificação é instantânea, a generalização é rapidíssima. O fato de que a rua é diretamente ocupada tende a produzir uma ruptura violenta com todas as categorias em que o Capital divide os proletários. O quadro restrito da fábrica, da mina, da oficina... é rompido: desempregados, mulheres que o Capital condena ao trabalho doméstico, velhos, crianças.... todos se unificam na ação direta.

Tais revoltas geralmente se produzem sem objetivo definido e explícito, e muito menos algo positivo a propor. O ponto de partida é, em geral, um muito vago "não agüentamos mais!" onde se misturam aspectos econômicos, políticos, sociais. "Não agüentamos mais a repressão!", "não, este aumento de preços é exagerado!", "contra a prepotência policial e o partido governante!", "queremos comer!", "não suportamos outro aperto de cintos!", "não aceitamos o novo aumento de preços de tal ou qual artigo de primeira necessidade!"... são, em linhas gerais, os elementos aglutinantes da ação unificada do proletariado.

Este não é um traço particular do período. Em toda história de nossa classe, as revoltas massivas e violentas concentraram essas negações coletivas em uma específica ação do Capital e do Estado. O que talvez caracterize a atualidade é o fato de que não há um crescimento quantitativo visível antes da explosão, que o "nunca mais!" proletário não seja precedido de um acúmulo de lutas parciais. Pelo contrário, o período atual se caracteriza precisamente por essa reafirmação tão fugaz da existência do proletariado, que, fora desses momentos, parece disposto a aceitar tudo de modo que o próprio Capital se surpreende com a pouca resistência que suscitam suas criminosas medidas de austeridade (9).

Em decorrência do fato de que não há uma série de reações cotidianas aos diversos ataques do Capital, este vai sempre muito longe e arrasta o proletariado a uma situação desesperada. De fato, em nenhuma outra época, o proletariado mundial foi tão maltratado, nunca havia sido submetido a tal situação limite, nunca foi tão hermeticamente aprisionado num beco sem saída, nunca havia sido encurralado a tal extremo. Esta é outra característica importante dessas lutas: são verdadeiras explosões porque efetivamente o proletariado é levado a uma situação desesperadora, insuportável, intolerável...

A economia sempre sacrificou o ser humano, como já tinha sido assinalado por Marx, mas a renúncia total a tudo que um ser humano necessita em nome da rentabilidade das empresas e da competitividade da economia nacional nunca pôde ser anunciada publicamente com tanto descaramento como no presente, porque nunca foi tão reduzido o protesto cotidiano contra essa (a verdadeira) razão de Estado. Nunca se expôs tão abertamente essa inumanidade que guia a sociedade, gerando tão pouca indignação. Essa mesma lógica conduz a situações extremas, em que se suporta ainda mais do que era possível imaginar anteriormente. No entanto, necessariamente, há um momento em que, por mais boatos e mentiras que se contem, não é possível suportar mais, a explosão é inevitável.

O fato de que a luta assuma a forma de uma explosão incontrolável cria um elemento de força importante: o efeito surpresa, que paralisa o inimigo, deixando-o sem a menor idéia de como reagir (10). O velho arsenal social-democrata e reformista não funciona contra a ação violenta e decidida do proletariado. O sindicalismo é totalmente incapaz contra a generalização da violência proletária. As diferentes estruturas regionais ou de bairros, os assistentes sociais e os diferentes agentes estatais de mediação social são completamente ultrapassados. A ausência de reivindicações concretas torna mais árduo seu labor reformista de liquidação do movimento. Quando se colocam à sua frente, o proletariado passa-lhes - literalmente - por cima. Essa ausência de reivindicação positiva e a atuação do proletariado sem divisão categorial são um elemento de força do movimento: a contraposição a tudo que venha do poder, a negação de tudo que existe, aquilo que toda a esquerda burguesa critica desses movimentos, marca a necessidade da revolução comunista.

Os protagonistas da ação direta se beneficiam sempre desse efeito surpresa. A não-comunicação generalizada que domina normalmente a paz social, o individualismo que governa a vida diária, o "cada um faz o que quer em sua casa" é explodido pela ação direta na rua (ainda que seja apenas essa minoria decidida, que toma a iniciativa, e mesmo que seja somente nos momentos de luta aberta). Todo aquele que atuou nesses movimentos descobre uma solidariedade que não conhecia, se surpreende com a falta de egoísmo que existe nas barricadas, com a extraordinária organicidade que estrutura a ação. Além disso, em muitos casos descobre no vizinho que não cumprimentava, no colega de trabalho que era considerado um imbecil, no amigo que só falava de futebol.... um companheiro que luta lado a lado com ele.

Em todos os casos, são atacados e incendiados: as delegacias de polícia, os edifícios dos partidos governantes, as sedes sindicais e outros aparatos estatais (gerências, prédios administrativos oficiais, tribunais...). A ação direta é exercida contra os representantes oficiais do regime, são ajustadas contas com os colaboradores mais ou menos disfarçados; em alguns casos, os cárceres são atacados e consegue-se libertar os presos. Tudo isso, independentemente da consciência mais ou menos difusa dos protagonistas, é não apenas uma brutal demonstração da recomposição de nossa classe, mas também do antagonismo geral entre o proletariado e todo Estado burguês.

Outro indiscutível elemento de força dessas revoltas proletárias é a expropriação - mais ou menos organizada por grupos de vanguarda - da propriedade burguesa. Varrendo preconceitos ancestrais, desafiando o terrorismo de Estado (11), os proletários tomam o que necessitam, tentando destruir assim todas as mediações a que o Capital os condena: dinheiro, salário, trabalho, etc. Para muitos, é o primeiro dia de suas vidas, na qual podem comer realmente o que querem. Uma grande parte dos que participam na revolta conseguem prover-se do que sempre quiseram ter e nunca puderam: uma televisão, um ventilador, uma almofada de plumas, um traje de seda... Logo se festeja, come-se e bebe-se sem restrições (e bebidas menos falsificadas, cujos preços as fazem em geral proibitivas)... Enfim, ignorando as velhas privações, dança-se e canta-se....

Juntamente com essa afirmação elementar dos interesses proletários contra a propriedade burguesa, com essa fugaz afirmação da vida humana contra esta sociedade de privações, de guerra e de morte, que anuncia a possibilidade e necessidade da ditadura do proletariado contra a mesma, surgem os primeiros problemas organizativos. Nas barricadas, nos bairros onde a polícia não tem coragem de entrar, organizam-se grupos de ação, distribuem-se responsabilidades, se planificam ações mais arriscadas, que requerem mais força organizada (12) e discutem-se critérios: de ação, de repartição, de emprego da violência, de quais comércios atacar, de formas de autodefesa, etc.

Em todos esses protestos, lutas, saques... Há, pois, uma tendência real para assumir de forma embrionária a guerra civil ao qual o Capital nos empurra. Em muitos casos, soldados e/ou policiais enviados para restabelecer a ordem mortífera do Capital se negam a disparar suas armas e em algumas ocasiões até se juntam aos proletários em luta.

O TIPO DE CONTRA-OFENSIVA BURGUESA: SUBORNO, PORRADA E DESINFORMAÇÃO

Mas, evidentemente, nem tudo é cor de rosa. Os corpos armados do Capital, especialmente formados para esse tipo de circunstância não pensam duas vezes antes de reprimir sanguinariamente. Passado o primeiro momento de surpresa, produto da extensão violenta e inesperada do movimento, a burguesia prepara sua contra-ofensiva. A tática de sempre é separar a maioria dos proletários de sua vanguarda.

Essa divisão atua sobre os próprios limites do movimento, sobre a divisão real que se realiza no proletariado entre quem é parte ativa na luta e quem se opõe a ela. A eficiência permanente da ideologia burguesa faz com que, inclusive nesses momentos críticos, só participe uma minoria, que setores operários enquadrados pelos sindicatos ou partidos políticos burgueses não só neguem sua participação, mas se oponham a essas práticas e estejam predispostos a aceitar a versão oficial dos acontecimentos (ou a versão da oposição parlamentar que, para o proletariado em luta, é a mesma coisa).

Baseados nisso, todos os aparatos de fabricação da opinião pública cumprem a função de institucionalizadores da mentira: só é difundido o que agrada a polícia (13). Os atos mais decididos são desqualificados, fala-se de provocadores, de agentes do exterior, de terroristas, de subversão internacional... Além disso, se a burguesia local conta com determinada divisão local - racial, nacional, ideológica... - todos os meios de difusão tentam aproveitá-la: "os que semeiam a desordem são os estrangeiros", "são os negros contra os coreanos", "são apenas os favelados", "são só os kurdos", "trata-se de uma sublevação fundamentalista", etc.; com o objetivo de negar o proletariado como tal. É desnecessário lembrar que essa forma de ataque contra nossa classe será ampliada e multiplicada por todos os meios de comunicação internacional. O mais importante é que na revolta não se veja nenhuma causa geral ou universal, e que os proletários de outros lugares do mundo não fiquem sabendo que, em algum lugar, proletários se manifestam enquanto proletários. Para os meios de comunicação de massa, jamais há revoltas proletárias, mas apenas revoltas "fundamentalistas", "palestinas", "antiditatoriais", "de imigrantes", de "famintos", "típicas do terceiro mundo", de "árabes"...

A contra-ofensiva burguesa se estrutura organizando a separação entre os "bons e honestos cidadãos" e os "agitadores", entres os nativos e os estrangeiros, entre os bons trabalhadores e os vagabundos, entre os empregados honestos e os marginais... Para uns, o suborno; para outros, a porrada.

Nesse momento, sempre são feitas algumas concessões: um presidente ou ministro é afastado, são anunciadas medidas contra a pobreza, anulam-se os aumentos de preços que detonaram a explosão, abastecem-se os armazéns subsidiados, são anunciadas medidas caritativas... E, no mesmo momento, reprime-se violentamente, da maneira mais seletiva possível. Todos os manuais de contra-insurreição insistem na seletividade da repressão: para "evitar a simpatia da população para com os subversivos, a repressão deve ser seletiva e não reprimir indiscriminadamente". Mas o fato de que os aparatos oficiais de Estado trabalhem intensamente, na repressão ativa e em plena rua dos setores abertamente mais decididos, não é suficiente. Muito antes, já vinham se preparando para tais fins aparatos supostamente não-oficiais: grupos paramilitares, especialistas do crime (metade sindicalistas, metade mafiosos), esquadrões da morte, etc.

A desinformação é total, a imprensa não conta o que realmente acontece nas ruas, mas mistura cenas ou fotos de "barbárie", reapropriações, incêndios, cenas repressivas, com os discursos de tal ou tal político sobre as "causas dos distúrbios". Nunca falta o "toque de veracidade" envenenado: por exemplo, um pobre diabo cujo pequeno armazém, do qual mal vivia com sua família, foi saqueado e incendiado (14). Pouco a pouco, o se passa nas ruas é completamente abandonado e além disso somos bombardeados com discursos políticos com que procuram nos tranqüilizar, discursos nos quais se diz que a calma voltou, que tal coisa será revisada, que fulaninho renunciará, que haverá novas eleições, que é compreensível que a situação de miséria seja insustentável mas que isso não justifica certos atos, que o movimento é manipulado por agitadores profissionais, etc. Nesse momento difícil da correlação real de forças entre as classes que se colocam nas ruas, todos os agentes do Estado colaboram, desde os jornalistas aos sindicalistas, passando pelos padres e pastores, sociólogos, a polícia, os ecologistas, os partidos de esquerda e de direita.

DEBILIDADES REAIS DE NOSSA CLASSE

É certo que os burgueses sentem um tremendo cagaço, que retrocedem, que as vezes nos damos o prazer de infundir-lhes um terror que nunca sentiram, que por alguns dias satisfazemos algumas de nossas necessidades imediatas e que em bairros e cidades inteiras, pela primeira vez na vida, se festeja de verdade.

Mas não nos enganemos, isso dura pouco, demasiado pouco. Em poucos dias o Capital impõe a ordem terrorista. Muitas vezes (lamentavelmente, a maioria das vezes), o massacre é enorme, o custo em vidas humanas, em feridos, altíssimo. Nossos melhores companheiros são aprisionados e fichados. O terrorismo de Estado se impõe. Veja-se, por exemplo, os casos da Venezuela, da Argélia, de Los Angeles... depois de uma curta vitória de alguns dias, que consiste na ocupação das ruas, o que se produz sempre é uma profunda derrota, que demora anos para que se volte a questionar.

Por isso, tapar os olhos para a realidade e fazer a apologia desse tipo de revolta, como se a forma que adotam fosse "a forma enfim encontrada da luta revolucionária" (15), é criminoso. Se bem que não possamos impedir que imediatistas e modernistas façam uma apologia barata desse tipo de movimento, nosso dever, o dever dos revolucionários, é fazer a critica militante desta ação de nossa classe.

É grave, é trágico que massacrem nossos companheiros e que não possamos responder. É triste que a força que conseguimos obter alguns dias seja destroçada em alguns instantes, que no dia seguinte estejamos tão sós quanto antes (16), que a solidariedade prática que vivemos nalguns dias desapareça mais rápido do que veio, que não sejamos capazes de retirar os companheiros dos cárceres, que o "cada um por si" volte a dominar novamente quando abandonamos as ruas, que o individualismo, o egoísmo, isto é, o impotente cidadão reassuma o lugar central na cena histórica e que até a história que vivemos seja negada pelas versões dominantes e que nossa esquecida memória social seja submetida às suas mentiras.

São conseqüências trágicas dessa falta de auto-organização permanente do proletariado, que caracteriza o mundo atual. Do fato de que não existem núcleos permanentes, centros de reunião, imprensa classista e massiva, organizações internacionais de revolucionários capazes de reagrupar a vanguarda da real comunidade de luta que se manifesta esporadicamente. É compreensível, portanto, a importância que tem hoje mais do que nunca a atividade militante permanente, a ação diretamente comunista internacionalista, contra toda corrente, em torno de um programa revolucionário de ação, de organização, de perspectiva, como o que desenvolve nosso pequeno grupo militante: o Grupo Comunista Internacionalista apesar de nossas modestas forças.

A ausência dessas formas de organização se concretiza, nos momentos decisivos da ação, na falta de critérios mais gerais para enfrentar o inimigo, na falta de estruturas organizativas, na falta de diretrizes claras, na falta de perspectiva, na ausência de direção. Se bem que a intuição classista é suficiente para saber o que é necessário expropriar, os lugares que devem ser tomados ou os inimigos visíveis que devem ser enfrentados (em geral, a polícia e outras forças de repressão aberta); desde que se passa a uma fase mais decisiva da luta e a burguesia apresenta diferentes e sutis facetas, desde que setores da oposição burguesa empregam toda sua força para transformar o conteúdo classista em um conteúdo específico, conseguem sempre transformar a luta contra o Capitalismo numa luta particular: contra a ditadura, contra o governo, contra tal ou qual ministro, contra essa ou aquela medida impopular, ou, pior ainda, numa luta pela democracia, pela autonomia regional, pelo Islam...

Mas tudo isso se deve também ao fato de que, inclusive no apogeu da luta, as permanentes mentiras e adulterações da ideologia burguesa influenciam profundamente nossa classe. O nacionalismo, as mobilizações islamicas, as lutas contra esta ou aquela ditadura, etc, não são apenas um discurso burguês, mas sua transformação em força material de desorganização de nossa luta, porque centenas de milhões de proletários são arrastados e mobilizados por essas ideologias. O populismo, o novo impulso das religiões e seitas, o racismo e o pseudo-antiracismo, como movimentos políticos, se desenvolveram enormemente e não apenas pesam nos intermináveis períodos de paz social, mas inclusive nas grandes batalhas deflagradas pelo proletariado mundial têm um enorme peso desorganizativo. Em pleno desenvolvimento da luta, a burguesia consegue muitas vezes desviar os objetivos da mesma; mais ainda, em muitas circunstâncias consegue mobilizar uma parte do proletariado contra outra, o que é um passo decisivo para transformar a guerra social em guerra imperialista no interior de um país (17). Sem ir tão longe como no caso da Iugoslávia - onde as lutas proletárias de anos passados deram lugar a uma guerra fratricida por interesses burgueses (o que, não importa se vence tal ou tal fração local ou internacional, é sempre uma vitória inquestionável do Capital mundial) -, em muitos casos o Capital busca, e em alguns consegue, lançar um setor do proletariado contra outro. Foi assim, na Argentina, nos bairros que mais haviam participado nos saques; e, nos Estados Unidos, as tentativas que se fizeram - ainda que com menor êxito - para transformar a revolta proletária de Los Angeles em uma luta entre comunidades raciais.

Em síntese, hoje podemos afirmar que nunca houve uma defasagem tão grande entre a potência da ação proletária e a falta de consciência proletária dessa ação; entre a prática de classe contra o Capital e contra o Estado e o completo desconhecimento das determinações e dos objetivos dessa prática; entre a homogeneidade das condições e das lutas do proletariado internacional e a total ignorância do fato de pertencer à mesma classe e lutar pelos mesmos objetivos; entre o questionamento prático e radical da propriedade privada e a amnésia social do projeto comunista. É precisamente a ausência de estruturas permanentes de organização proletária massiva e a correlativa ausência de válvulas de escape que faz todas essas contradições serem muito mais violentas do que no passado. Esta característica resume o quadro das lutas da época atual, tanto no que se refere à sua força quanto às suas fraquezas, que se concretizam na relativa facilidade com que o Capital as transforma em lutas interburguesas, interimperialistas e, em última instância, impõe, contra o projeto inconsciente que contém aquelas (o da revolução comunista), seu projeto de guerra imperialista (ou seja, a renovação da sociedade burguesa por meio de um novo ciclo de guerra, reconstrução e expansão).

NECESSIDADE E POSSIBILIDADE DE COMBATER NOSSAS FRAQUEZAS

O Capital só pode oferecer mais miséria, mais desemprego, mais sem-tetos, mais guerra, mais atrocidades cotidianas... Conseqüentemente, a paz social, componente essencial desse mundo criminoso, continuará sendo destroçada por repentinas ondas de revolta proletária. O Capital e todos os seus agentes estatais, por mais piruetas e manobras que tentem, não podem impedir a multiplicação quantitativa e qualitativa dessas revoltas. Os organismos internacionais, os serviços de contra-insurreição e de repressão, os especialistas em futurologia tentam prevê-las e se preparam para combatê-las. Sindicalistas, políticos, padres e pastores, assistentes sociais são adestrados para os novos enfrentamentos, que tentam impedir, sabendo que sua função amanhã será a de derrotá-los. É normal que o inimigo se prepare.

E nós, o que fazemos para nos preparar? Sem dúvida, pouco, pouquíssimo.

Esta triste realidade não pode ser, lamentavelmente, mudada apenas pela vontade e consciência revolucionária de tal ou qual grupúsculo, enquanto o resto da classe não seja receptiva e se contente com o mundo de torturas que o sistema capitalista a submete. A organização minoritária de um punhado de comunistas, qualquer que seja sua vontade e sua ação, por mais importante que seja sua função, não pode suprir essa imensa ausência de preparação coletiva. A desorganização que vive nossa classe, a ausência de estruturas permanentes de difusão de informações, de posições, de discussão, de intercâmbio, de coordenação e de organização não podem ser resolvidas por uma insignificante atividade grupuscular.

Por isso, é certo que, a curto e médio prazo, continuarão as revoltas desse tipo com todas as suas forças e sobretudo, infelizmente, com todas as suas fraquezas. Não poderemos evitar que as revoltas futuras, a curto prazo, tenham um custo muito alto para nossa classe. A desorganização, a dispersão que o inimigo provoca em nossas filas desde que reorganiza a repressão massiva e começa a disparar contra nós, o fato de que o proletariado não conte sequer com grupos de ação capazes de responder ao terrorismo de Estado, ao terrorismo seletivo contra nossa classe, a ausência de estruturas de solidariedade internacional elementar, a quase inexistência de estruturas internacionais proletárias capazes de fazer conhecer o que se passa em outro lugar e, a nível global, a desorganização do proletariado como classe, permitirão ainda muitas vezes e em muitos lugares que a burguesia se vingue das revoltas, tomando como reféns os militantes da vanguarda do proletariado, golpeando-os, assassinando-os, torturando-os, fazendo-os desaparecer, enterrando-os nos calabouços de sempre.

Pior ainda, nas revoltas que se aproximam, a burguesia continuará ocultando o caráter de classe das mesmas e tentará fazer crer que obedecem a causas particulares; a maioria dos proletários permanecerá indiferente e acreditará na falácia de que essa é uma "revolta islamica", a outra é "contra a ditadura" e aquela mais adiante é "contra a corrupção". Como no passado, a interpretação falsa será parte da verdade (já disse um filósofo, faz muito tempo: "o falso é um momento do verdadeiro"). E o Capital fará o que for possível para transformá-la na única verdade, para desfigurar a luta de classes em luta interburguesa, interimperialista.

O que poderá marcar a mudança desta situação é, por um lado, a homogeneização ainda mais geral do capitalismo que acarretará a homogeneidade das condições de luta; e, por outro, a inevitável tomada de consciência que irá provocando a multiplicação das revoltas desse tipo e derrotas sucessivas.

A crise torna homogêneas as condições gerais de desenvolvimento do Capital. Não apenas os problemas são os mesmos, não só é inevitável que haja mais fome, mais desemprego, miséria, etc, como também a política econômica de todos os governos do mundo se assemelha cada vez mais. Já não há sequer discursos diferentes, todos aceitam o que chamam de "realismo", "pragmatismo", e que não é mais do que o reconhecimento de sua submissão aos ditames da economia. O que é novo não é a submissão, que sempre foi assim, mas o reconhecimento generalizado e inquestionável dessa submissão. Se os discursos de direita e de esquerda, do norte e do sul, de imperialistas e supostos "anti-imperialistas", de nacionalistas e islâmicos fazem-se cada vez mais idênticos, não é porque agora estas frações estejam mais capitalistas que antes ou porque o tipo de gestão capitalista que chamam de "comunismo" tenha desaparecido, mas sim porque enquanto o Capital em épocas de expansão pode se permitir diferentes formas de gestão, em épocas de crise, a política econômica do Capital é somente uma: aperto de cintos.

Enquanto em certos períodos, com base num aumento sustentado do salário real, o Capital pode gerir popularmente a força de trabalho, dissimulando o permanente aumento da taxa de exploração e dando origem a diferentes políticas econômicas, mais ou menos estatistas, mais ou menos populistas, mais ou menos protecionistas, etc; em épocas de crise e sobretudo nas de crise profunda e generalizada como a atual, a lei do valor se impõe violentamente e obriga todas as frações do Capital a uma luta generalizada contra seu próprio proletariado e contra os concorrentes (18), para manter o processo de valorização. Se, na luta contra o proletariado, não consegue um aumento "normal" da taxa de exploração, torna-se indispensável (em quase todos os casos) impor uma diminuição do salário real.

A aplicação inevitável e universal da mesma política econômica contra a mesma classe social, a repetição até o esgotamento do mesmo tipo de discurso em todos os lugares para justificar essa mesma política ("os sacrifícios são inevitáveis", "devemos produzir mais e de forma mais rentável", "defendemos a competitividade de nosso país", etc), finalmente tende a unificar as reações do inimigo e o próprio inimigo, por mais empenhos que ideologicamente se tentem para evitar essa unificação. Tal unificação é, em princípio, algo mais ou menos automático, subconsciente, uma reação inevitavelmente unificada no espaço e no tempo; sua reprodução e a coincidência num mesmo momento desse tipo de revoltas em diversas partes do mundo farão inevitavelmente muito mais difícil o papel dos ideólogos e jornalistas, em seus esforços para esconder as causas comuns. O que necessariamente abre as possibilidades de formação de uma consciência efetiva de constituir uma só classe, contra um só inimigo.

Por outro lado, a inevitável intensificação quantitativa e qualitativa dessas revoltas, a repetição dessas derrotas abrirão os olhos, os ouvidos, as mentes, etc., do proletariado, fazendo-o aprender com a própria experiência e com as experiências de outras regiões, de outras épocas. No princípio, não serão muitos os que farão essa experiência. Mas, de uma forma ou de outra, cada um de nós é produto desse tipo de abertura forçada, de reflexão sobre a ação, de superação das barreiras contra as quais se fez a luta anterior, do balanço de um ciclo de lutas em que não conseguimos o que queríamos. Os revolucionários - os que efetivamente impulsionam a classe para adiante, os que em cada momento concreto do movimento representam os interesses de conjunto, os interesses internacionalistas e históricos do comunismo - não se formam nos livros, são o produto complexo de experiência concretas, de tentativas de generalização dessas experiências, de esforços militantes de abstração, de comprovação de que as conclusões embrionárias às quais chegaram, são exatamente as mesmas que foram extraídas em outras épocas e/ou outras circunstâncias. Os livros, os escritos militantes adquirem toda sua significação de transmissão de experiência, de resgate da memória histórica da classe, de balanço de uma derrota para organizar a perspectiva da vitória, de desenvolvimento e afirmação do programa comunista, nesse contexto. O processo é demorado, difícil, doloroso, mas não há outro.

Contrariamente à visão social-democrata e leninista, de um partido de intelectuais que sabem tudo e que ensinam a massa amorfa e ignorante, a realidade é muito diferente. O proletariado engendra frações, grupos capazes de sintetizar sua experiência histórica acumulada, que consiste na única forma de romper com o imediatismo, de evitar que em cada lugar e época sejam reproduzidos exatamente os mesmos erros.

Mas esses grupos de revolucionários, hoje mais isolados do que nunca, só poderão assumir plenamente sua tarefa de direção revolucionária quando as futuras lutas impulsionarem setores cada vez mais amplos do proletariado em direção ao rompimento com as ideologias que o aprisionam e, de forma cada vez mais nítida, comecem a distinguir as minorias atuantes e voltem a por em primeiro plano as preocupações de sempre dos comunistas: a revolução, a luta contra o capitalismo em todas as suas formas.

Então, nossos inimigos, que acreditam que o comunismo está enterrado para sempre, que o proletariado não existe mais e que dormirão tranquilos eternamente, porque nunca mais alguém gritará VIVA A REVOLUÇÃO SOCIAL, levarão o susto do século, quando despertarem aterrorizados desse sonho fabuloso e imbecil ao qual, na sociedade que representam, ainda estão submetidos.

HOJE, MAIS DO QUE NUNCA:
REIVINDIQUEMOS O COMUNISMO, ENFRENTANDO O CONJUNTO DA BURGUESIA EM SUAS MÚLTIPLAS VARIANTES: SOCIAL-DEMOCRÁTICAS, NACIONALISTAS, STALINISTAS, MAOÍSTAS, FASCISTAS E OUTRAS! ASSUMAMOS O CONTEÚDO ORIGINAL DO COMUNISMO: A NEGAÇÃO ABSOLUTA DO CAPITAL!
VIVA A ORGANIZAÇÃO COMUNISTA INTERNACIONAL DO PROLETARIADO!


NOTAS:

(1) Como já dissemos muitas vezes, a democracia não é uma simples forma de dominação. Pelo contrário, ela corresponde à própria essência do Capital, ao modo de funcionamento normal da sociedade mercantil generalizada: no mercado não existem classes sociais, mas compradores livres e iguais!

(2) Por exemplo: ""1984" ... 85 ... 87 ... 89 peor que lo previsto. La ciudadanización de la vida" em Comunismo Nº 27, abril de 1990 e "Contra el terrorismo de Estado, de todos los Estados existentes" em Comunismo Nº 23, outrubro de 1986.

(3) Se falamos "greve" entre aspas é porque, para nós, uma greve de verdade é uma batalha entre os proletários e o Capital, e tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, tende a exprimir esta realidade de mil maneiras (ausência de reivindicações precisas e categoriais, tendência para a generalização, tempo indeterminado, sabotagem da produção, enfrentamento com os fura-greves, aparição de grupos minoritários "incontrolados"...) e aqui nos referimos, pelo contrário, a uma ação sindical (ou seja, de um aparato de Estado capitalista) que tem por objetivo canalizar (e assim liquidar) a energia proletária.

(4) Em alguns casos, a divisão do trabalho dos aparatos do Estado burguês (por exemplo, os sindicatos e a polícia) permite inclusive certas doses de violência minoritária estéril, dado que não ataca em absoluto a ordem burguesa. Assim, enquanto a maioria da manifestação se enquadra pacificamente em intermináveis discursos sindicalistas, tolera-se (em muitos casos, promove-se) que uma parte radical da mesma vá enfrentar as forças especiais da polícia previstas para tais situações. A burguesia e sua propriedade ficam bem salvaguardadas e, de passagem, aproveitam para espancar os proletários radicais e fichar os ativistas. Assim, cada força estatal cumpre sua função, a uns dão paus, a outros entretenimento (o que não quer dizer, obviamente, que os sindicatos não utilizem as vezes a repressão aberta). E a força proletária, por ser incapaz de se dirigir para objetivos próprios, de aplicar a violência minoritária contra os verdadeiros inimigos de classe, se desgasta sem questionar o Capital.

(5) Essa inexistência do proletariado é uma falsa aparência. Em última instância, a sociedade burguesa tem seu fundamento e sua fonte de reprodução (ampliada) no proletariado. Mas, por outro lado, é parte da realidade: o proletariado é negado como classe, como força, como potência contraposta ao Capital. E essa aparëncia que é parte da realidade só pode ser plenamente questionada na prática. Ou seja, não adianta nada, num momento como o atual, repetir que "o proletariado existe". O proletariado existirá totalmente se e quando novamente se constituir em força social, contrapondo-se à toda ordem existente. É claro que, materialmente, a possibilidade e a necessidade da recomposição do proletariado enquanto classe - e portanto em partido - se baseia no antagonismo permanente desta sociedade, que a burguesia não pode abolir nem mesmo em suas épocas douradas de dominação total. Esse antagonismo está germinando, hoje, nas centenas de batalhas esporádicas e descontínuas de que tratamos esquematicamente neste texto.

(6) Dir-se-á com razão que, dado que o valor é essencialmente trabalho humano, um humanóide não criará valor e que, para o Capital total, esse limite seria sua própria morte. No entanto, não é o Capital total que governa este mundo, mas a luta mortal entre os múltiplos capitais parciais, luta em que cada um deles obtem uma mais-valia extraordinária quando recorre a esse humanóide. Daí, o interesse em desenvolver as forças produtivas nesse sentido. Supor que o Capital possa impedir seu próprio suicídio e/ou o da humanidade é atribuir-lhe virtudes de planificação que ele efetivamente não tem.

(7) Não cremos ser necessário explicar a nossos leitores o motivo de pormos aspas nesses "gozos".

(8) Esse tipo de explosão – que, em alguns casos, acontece num bairro de uma cidade, em outros, numa cidade inteira, ou ainda em todo um país e que transpõe fronteiras – não é a única forma da luta de classes atual, mas consideramos que é a mais característica dos tempos que vivemos. O proletariado também mostra sua existência e seu antagonismo com a ordem mundial quando se nega a alistar-se nos exércitos ou quando deserta. Mas, com exceção do Iraque, essas expressões do proletariado não são ainda as determinantes dos tempos atuais. Também poderíamos mencionar os casos em que uma "greve" sindical é superada e os proletários saem da fábrica para generalizar sua luta; mas dada a escassa frequência e a pouca importância relativa dessas expressões com relação ao passado, tampouco merecem que lhes dediquemos maior atenção neste esquema geral sobre as lutas de classes atuais.

(9) Especialistas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional se felicitam com a pouca resistência que a população opõe as medidas preconizadas por eles, o que ao mesmo tempo se transforma num argumento forte para convencer tal ou qual governo ou partido político a aplicá-las.

(10) Referimo-nos evidentemente à massa social da burguesia e aos aparatos estatais clássicos. É óbvio que o Estado há muito tempo tem corpos especiais (tanto diretamente repressivos, quanto de repressão ideológica) treinados para essas circunstâncias: manipulação da informação, repressão seletiva, etc., como apresentaremos esquematicamente no capítulo seguinte.

(11) Ou melhor, não é o Estado que cria a propriedade, mas o inverso, dado que o Estado não é outra coisa que a propriedade organizada em força para se reproduzir. Não devemos esquecer que o ser humano respeita tanto a propriedade privada que chega até a morrer de fome por estar privado da propriedade do mais essencial - que por outro lado se desperdiça -, só pela influência que exercem séculos e séculos de terrorismo de Estado. É pela ideologia do respeito a propriedade que esse terrorismo em sua obra secular consegue se impor e reproduzir.

(12) Em muitos casos, passado o primeiro momento de surpresa, são organizados corpos de defesa da propriedade privada, e o proletariado responde com formas primárias de organização e armamento.

(13) Na verdade, dizer que o jornalismo está a serviço do Estado é ser demasiado condescendente com os jornalistas, porque na realidade o próprio jornalismo é parte do Estado e contribui para o delineamento de sua política. Mas também seria parcial considerar que esse aparato de Estado (ou em geral todos os meios de comunicação) dirige todos os outros. Esta postura - tão na moda para alguns modernistas ou ex-militantes de esquerda, e que não é nada mais do que uma interpretação idealista da "sociedade do espetáculo" - esquece as determinações fundamentais do Capital. Se bem que o jornalismo possa circunstancialmente "dirigir" a polícia, o governo, o exército, etc., o jornalismo também é muito frequentemente "dirigido" pela polícia, pelo governo e pelo exército. Não esqueçamos que em última instância quem dirige a todos é o valor se autovalorizando, que todas essas estruturas de Estado estão submetidas à mesma determinação central: reproduzir o Capital, a dominação burguesa, o explorado enquanto explorado. A pretensão de que o espetáculo jornalístico dirija o mundo não é outra coisa que uma submissão espetacular ao mundo do espetáculo.

(14) Claro que em todas essas revoltas há exproriações incorretas, injustas, etc., há ações individualistas e egoístas, chefetes insuportáveis e egoísmos, assim como também há participantes nas mesmas que atuam efetivamente como provocadores para difamar o movimento. Mas isto, contrariamente a versão da polícia e dos jornalistas, não constitui nunca a essência desse tipo de movimentos. Pretender que não existam tais problemas seria absurdo. A transformação da massa individualista e egoísta, sobre a qual se apóia o Capital, numa classe compacta e revolucionária é um processo longo que só se (re)inicia com estas revoltas.

(15) Na onda revolucionária de 1917-21, esta fórmula se referia aos conselhos operários e sovietes, que foram estruturas úteis na organização dos proletários, como a forma que garantia a revolução para sempre. Mas nenhuma forma organizativa pode garantir o conteúdo revolucionário. Tanto os conselhos quanto os sovietes terminaram, em todos os lugares (notadamente na Rússia e na Alemanha), garantindo o funcionamento do Capital. A apologia acrítica de tais formas (conselhismo) foi uma aliada insuperável do Estado no estabelecimento da reorganização capitalista.

(16) Ainda que, isso também está certo, alguns contatos e relações, produtos do movimento, são indestrutíveis e se manterão e desenvolverão preparando novas lutas. Mas na situação mundial atual eles são exceções, são demasiado poucos para caracterizar o período.

(17) O exemplo histórico supremo desse tipo de massacre da luta do proletariado foi a década de 30, na Espanha, onde o Capital mundial conseguiu reverter a luta revolucionária do proletariado contra o Capital e o Estado numa guerra interburguesa, numa guerra imperialista entre fascismo e antifascismo. Era o passo decisivo que faltava para a chamada "Segunda guerra mundial".

(18) Quanto à inelutabilidade do aguçamento da guerra contra o proletariado e da guerra interburguesa, ver o texto "La catástrofe capitalista", Comunismo Nº 32, novembro de 1992.


TRADUZIDO DE COMUNISMO # 33 (JULHO DE 1993), PUBLICAÇÃO EM ESPANHOL DO G.C.I. (GRUPO COMUNISTA INTERNACIONALISTA), PELO GRUPO AUTONOMIA, EM ABRIL DE 2000.


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