Bar Indiferença
Édnei PedrosoO que restou da placa já dizia tudo: “Bar Indiferença”. Talvez tivesse sido um modo de dizer que nada fazia diferença ou sentido lá dentro. A única certeza era de que todos que entravam ali, com exceção de Mar, sairiam bêbados no fim da noite...ao menos era o que parecia...Mar caminha em meio a destroços queimados. O que sobrou do bar não dá idéia do que realmente ele representou para seus freqüentadores. Apenas a triste lembrança do que o “Bar Indiferença” poderia ter sido realmente, caminha solitária pelos ecos do vento que toma a clareira chamuscada. Mar ainda se lembra das pessoas que conheceu ali e que ali encontraram a morte, em um incêndio proposital. Ele se lembra de quando ganhou esse apelido, no dia em que foi “forçado” pelo seu amigo Tavares a visitar o bar pela primeira vez...Foi quando tudo começou...O Inverno.Um clima rigoroso chega em Tubarão. Os termômetros da cidade marcam 1º negativo quando Mário sai de sua casa para mais um dia de papeis e carimbos incessantes. A rotina já diz ao relógio biológico de Mário exatamente o que tem de fazer: acordar às seis, fazer sua higiene matinal, comer, correr e chegar ao escritório às sete para colocar os papeis em ordem. Tem sido assim desde que chegou de Porto Alegre para visitar a tia doente, à cinco anos. Ela não durou muito, vindo a falecer uma semana após Mário descer do ônibus. Como ambos não tinham parentes vivos – a não ser um ao outro – Mário ficou com a herança da tia. Três casas, sendo que uma delas é alugada para um casal, outra foi vendida graças ao aperto financeiro de Mário, já que o mesmo estava desempregado na época e a terceira é o que ele chama de “lar”, afinal, não havia nada que o segurasse em Porto Alegre. Um Gol branco ano 94 também estava entre os bens deixados, porém, Mário efetuou várias trocas até chegar ao carro que possui hoje: um Pálio Weekend igualmente branco.“Nada mal para alguém que, até quatro anos atrás, não tinha onde cair morto...”* * * * * * * * * * *Em um escritório de uma grande imobiliária no Centro da cidade, Mário traz ordem ao caos. Sua carteira de trabalho diz “Gerente do Departamento de Pessoal”, contudo, se há um “quebra-galhos” neste escritório, este alguém é Mário. Nem o Office-Boy trabalha tanto quanto ele...- Mário, pára um pouco. Assim tu vai se matar... – Diz Nelson Tavares, um homem gordo e de calças amarrotadas.“O Tavares vivia para o que ele chamava de “curtir a vida”: comer o que não pode pagar, freqüentar um bar que ninguém sabe onde fica e pagar mico nos videokês da vida...”A fama de “Bom Vivant” de Tavares chega a ser lendária, perdendo apenas para a fama de Juscelino, o “General”, que chega xingando a todos que ousarem estar ali no momento.“É como dizem: Todo escritório tem seu “karma”...e o General é o karma desse”.Juscelino ganhou este apelido por ser um predador nos negócios e, principalmente, por seus acessos megalomaníacos nos quatro escritórios que dirige. Sua mão de ferro pesa nos ombros dos pobres funcionários e seus berros podem ser escutados em todo o prédio.- Vocês pensam que tão em Cancun?!? Pensam que é Janeiro?!? Eu quero ouvir o suor de vocês pingando no chão.“Este discurso era o preferido do General, que o repetia sempre que o calendário marcava Sexta-Feira.”A rotina no escritório era tão previsível que todos já sabiam que – após os sermões – Denise entraria no recinto com uma xícara de café forte e amargo sobre um pires e a resposta ao gesto é imitada pelos lábios silenciosos dos funcionários:- Obrigado Denise! A senhorita é a exceção que confirma a regra. – Agradece o General, sorvendo o café com o ruído característico de quem toma sopa.Denise se retira, deixando apenas um agradável odor de Channel Nº5 e o olhar sempre babão de Charles, o Office-Boy.“Embora o corpo estonteante, os olhos azuis e os cabelos negros de Denise permeassem pelos nossos pensamentos mais sórdidos, apenas Charles deixava isso transparecer. Mas isso não era culpa dele, afinal, a testosterona está a mil aos dezesseis anos.”Logo, a voz do General traz todos de volta à realidade:- Quero ouvir o barulho das teclas lá da minha sala. – Conclui Juscelino, retirando-se.Após um leve suspiro geral, todos voltam ao trabalho. Tavares faz um gesto obsceno com o dedo médio para o patrão já ausente. Charles checa sua caixa de serviços. Mário continua absorto em papeis. Quase tudo fica no lugar...menos a língua de Tavares, que sempre aproveita para tecer comentários maldosos – obviamente – em tons quase inaudíveis:- O General não teve o que queria esta noite...Charles quase dispara uma gargalhada e Mário esboça um sorriso, tira alguns anti-depressivos de uma gaveta e, após entorná-los, continua a prosa:- Cara estressado, né?- Pois é...ei boy, tá saindo?- Tô indo no Foro. Quer alguma coisa? – Pergunta Charles, de pasta em punho. Tavares tira 70 reais da carteira, escreve alguma coisa em um pedaço de papel e entrega ambos para Charles.- Deposita isso pra mim agora de manhã, sem falta. Agora pode ir...vai, vai!Charles some. Tavares e Mário ficam a sós, e caem na risada silenciosa...- Esse guri é um sarro. – Fala Tavares, já com as bochechas vermelhas.- Tem futuro! – Concorda Mário.- Mário, tenho um presentinho pra ti. – Tavares tira um pequeno embrulho da gaveta e arremessa para Mário.- O que é...uma bomba?- Lembra que tu me pediu uma lembrança da minha viagem aos States?- Putz, faz quase um ano que tu foi pra lá, eu nem lembrava mais... – Mário abre o pacote e descobre uma miniatura de isqueiro Zippo.- Isso é um presentinho exclusivo dos hóspedes do Riviera, o hotel onde fiquei.- Ei, essa coisinha funciona. – Mário acende a chama do objeto e, após alguns segundos, o fecha novamente. – Pena que não fumo.- Não esquenta. Tu acha utilidade pra ele, aliás, tu acha utilidade pra tudo, né?- Tá bom, vou encarar isso como elogio.- É bom mesmo...e então, tem algo programado pra hoje?- Unnnn...não! Pensei em dar uma volta em Criciúma, mas tá meio frio...- Meio frio??? Deixa estar...tu ainda toma Diazepan?- Efexor. Por quê?- Tu não pode beber, né?- Tu sabe que não. Por quê?- Joga Tranca?- Quando dá na telha..., por quê?- Pára de falar “por quê”...Seguinte, quero te levar no bar hoje.Mário fica estático, enquanto Tavares o fita em espera.- Bar...O teu bar???- É...o bar que eu freqüento. Resolvi te dar uma chance e te levar lá.“Tavares sempre sumia a noite. No outro dia, ele só dizia que tinha ido no bar, com aquela ressaca descomunal. Era assim desde que o conhecera. Uma vez, tentei fazei-lo me levar no tal bar, mas ele inventou uma desculpa atrás da outra e acabou por isso mesmo. Agora, de uma hora pra outra, ele abre o jogo...Sabe quando te dá aquela sensação de que é melhor seguir por dentro da cidade do que encarar os dois quilômetros pela rodovia federal????? É isso aí...”- Ei, acho melhor eu não ir. Tu tá sempre de ressaca no Sábado...e eu não posso beber...- Tu mesmo disse...pode jogar cartas.- Pior ainda! Tô sem dinheiro.- Aí é que tá. Dá pra entrar na mesa com qualquer quantia. Até moeda.- Não sei...é longe?- Mais perto que Criciúma.- Tá...acho que vou...- Legal! Só tem uma coisa que eu quero que tu prometa pra mim...- O que é?- Eu só tô te convidando pra ti sair da rotina e, claro, porque tu é o meu melhor amigo...- Claro...- Promete que não vai contar pra ninguém onde fica o bar?- Eu nem sei onde fica...- Depois que a gente for lá hoje, né ô mala!Vendo que não teria nada de mais em cumprir essa promessa, Mário concorda:- Prometo!“Falei aquilo pra calar a boca do Tavares. Conhecendo-o como o conhecia, ele não pararia de me “convencer” até que meus ouvidos estourassem.”- Vou passar na tua casa lá pelas oito. Não esquece de levar luvas que lá faz um frio danado..., combinado?- Combinado.E o acordo é selado com um aperto de mãos.* * * * * * * * * * *“Fazia tempos que eu não entrava no carro do Tavares...e deveria continuar assim. O cheiro de bacon rançoso daria um nó no estômago de um avestruz. Tentei imaginar como ele convencia as mulheres que arranjava à entrar lá e cheguei a conclusão de que a lábia dele continuava afiada. O desgraçado conseguiria vender picolé de catchup pra madame...”- Onde fica isso? O Charles vai estar em um asilo quando a gente voltar...- Calma, já viu lugar legal dando bandeira? Quando tu ver a pilha de carros estacionados, é porque estamos perto.- É tão freqüentado assim?- Freqüentado???! Sabe quando tu procura alguém a noite e não encontra o indivíduo em lugar nenhum? É no bar que ele tá.- O que tem lá de tão bom?Tavares breca o carro. Aciona o freio de mão e as travas e sai do carro sem dizer uma palavra. Mário também sai, incógnito.“É nessas horas que dá vontade de fechar os olhos e pensar que está na cama, enfiado embaixo dos cobertores. Tavares me olhou enigmático e eu nunca o tinha visto assim. O que você pensaria se um cara que sempre leva tudo na brincadeira, te olhasse como se fosse te dar um tiro?”- Ei, que bicho te mordeu? Tá frio aqui fora...- Mário...antes de irmos, tem certas regras que temos de seguir . Questão de segurança.- Ah, qual é?!!!! “Primeira regra: Não falar sobre o Clube da Luta!” Isso tá ficando chato. Tamo no meio do nada e tem mais regras nesse boteco do que no Afeganistão. Só pra eu não ficar perdido, tu tá me levando pra uma boca de fumo? É isso? Não, porque se for isso, te aviso que tu vai perder um amigo. Tu sabe o que eu penso...- Pára! Pára de reclamar. Tu parece uma velha, porra! – Grita Tavares com as mãos em conchas nos ouvidos. – Não é uma boca de fumo...é um bar.- E porque tanto auê por causa de um boteco?- Olha, tu não vai saber se não ir. Quer saber das porcarias das regras ou não quer?Mário olha para os lados e só vê o breu. Sabe que, seja lá o que for, seu amigo está sério demais para se tratar de uma brincadeira.“Ou isso, ou o Tavares merece um Oscar®.”- Fala!- A primeira regra tu já conhece...- “Não contar pra ninguém onde fica o bar.”- É isso aí. A segunda regra é: Não brigue dentro do bar. Se quiser bater em alguém, chame pra rua.”- Tu quebrou a primeira regra.- Shhhh...há atenuantes. Terceira regra: Tu só pode levar uma pessoa ao bar. Quarta regra: O que é falado lá dentro não é escutado aqui fora...“Aquilo estava cheirando a leite azedo. O tipo de encrenca que explode a cidade toda...e eu estava certo. Pensei comigo: “se ele podia levar uma pessoa, bem que podia ser o General...” O Tavares parecia um profeta ditando os dez mandamentos. Por pura coincidência, ou não, eram dez regras ao todo. Fiquei imaginando o que encontraria de tão incrível nesse bar e tudo soou como um daqueles RPGs: eu era um elfo, prestes a entrar no castelo do horror...ou na taverna mesmo.”Após as explicações, Tavares alega que o melhor lugar para deixar o carro é aquele. Os dois adentram a escuridão da mata e chegam a uma pequena trilha.- Isso é um RPG.- Shhhh...estamos chegando.A visão é surrealista. Há mais veículos nessa clareira do que no estacionamento de um grande shopping. Carros e motos de todos os tipos e cores seguem estacionados em fila por uma rua oposta à trilha. Tavares pegara um atalho. No centro da clareira, um barraco de madeira de médio porte com as paredes em frestas...era o bar. Três homens guardam a entrada fechada enquanto conversam despreocupados. Mário puxa Tavares para baixo e fala em voz baixa:- Tu tá maluco? Que espelunca é essa?!- Não tá vendo a placa? É o bar.“Uma espelunca. Não tinha outro nome pra isso. “Bar Indiferença”. Que piada.”- Se não tivesse tão frio, eu ria na tua cara. E vem me dizer que tem regra disso e regra daquilo??!!!Mário tira um comprimido do bolso e o engole em seco. Tavares tenta acalmá-lo.- Olha...vamos entrar. Lá dentro tu toma um refrigerante, a gente sai desse frio, joga umas cartas...A voz calma de Tavares ameniza os ânimos. Mário suspira conformado e acena positivo com a cabeça...* * * * * * * * * * *“Igual a todos os outros...”É a primeira coisa que passa pela cabeça de Mário assim que entra no bar. Talvez a única diferença seja o número absurdo de pessoas que estão ali dentro. Se as paredes não fossem tão varadas, ser humano algum suportaria o ar pesado e o cheiro doce de cevada. Três amontoados de homens mostram a localização das mesas de carteado. Uma suave melodia ecoa nos confins das caixas de som, mas ao contrário de tantos outros antros de estilo parecido, não é música sertaneja – ou sequer lembra o ritmo – e sim, New Age.- Segunda diferença. – Sussurra Mário para si mesmo. – Devem estar drogados...“Já fui a bares antes. Muitos bares. Porto Alegre, São Paulo, Rio...até mesmo aqui, em Tubarão. Achava que era bobagem do Tavares. Uma das brincadeiras dele, sei lá. Realmente, o lugar era uma espelunca. Realmente, as pessoas que eu procurava a noite estavam lá. Realmente, por mais que fosse o fim do mundo, tinha algo lá que não coincidia, que não fechava. Estava tentando descobrir o que era, mas todos pararam com seus afazeres e nos olharam como se fossem nos queimar na fogueira da inquisição...e isso tira a concentração de qualquer um...”O silêncio se instala no lugar. Até mesmo a música New Age cessa. Todos os presentes, e não são poucos, se voltam para os recém chegados. Mário olha para Tavares e – após descobrir que o mesmo também estava estático – chama o amigo para a realidade com um cutucão.- Pessoal! – Fala Tavares, em voz exaltada. – Esse é o meu amigo e colega de serviço...Mário.“Sufocante. Parecia que aqueles homens pulariam em nossas cabeças a qualquer instante. Onde estavam os votos de boa noite ou os comentários sobre o frio? Na certa, no fundo de algum copo...ou no fundo do poço.”O barmam contorna o balcão e, ao caminhar até os dois, recepciona-os em voz pausada:- Bem vindos ao Indiferença.A euforia é geral. De um segundo para o outro, os boêmios deixam pra trás o clima funestro e exibem largos sorrisos de boas vindas. Tavares acena e pede uma cerveja aos ouvidos atentos do barmam. A música retorna às caixas e os jogos continuam. Tudo recomeça como se os cinco minutos que passaram nunca tivessem existido. A cerveja é aberta num estampido e servida em dois copos inclinados, para evitar o acúmulo de espuma.- Tavares...eu não posso beber.- Tudo bem, eu bebo os dois. – Responde Tavares já aliviado. – E aí, o que achou do bar?- Bem, fora a música New Age e esse monte de gente, é igual a todos os outros em que já tive. Até os pôsteres de mulher pelada são os mesmos.- Não esquenta, tu vai notar a diferença.- Porque tem tanta gente aqui? Vai ter bingão?- Vou te dar uma dica: se tu quiser alguma coisa em Tubarão, qualquer coisa, esse pessoal dá um jeito.- Como assim?“Foi nesse ponto que as coisas ficaram interessantes. Tavares apontava um e dizia onde o dito cujo trabalhava e o que ele poderia conseguir. Documentos, remédios, carros, armas, materiais de construção, lavagem de dinheiro...até mesmo mulheres. Se você tinha uma multa de trânsito, Elvis The Pélvis apagava ela dos arquivos...”- Porque ele tem esse apelido?- Além daquelas costeletas loiras e ensebadas, note que ele tá fazendo biquinho com a boca. Sabe porque?- Tá assobiando?- “Hound Dog”. Quando não tá falando besteira, tá assobiando isso. É um atentado ao clássico.- Se ele é tão doido por Elvis assim, porque não pinta o cabelo de preto?- Já perguntaram isso uma vez. Ele disse que mataria a mãe se Elvis Presley pedisse, mas que mataria o Elvis se o mesmo pedisse à ele pra pintar o cabelo.Mário cai na gargalhada. Ao que parece, sua insegurança em relação ao lugar sumiu por completo. Tavares também ri muito. Seus copos já vazios, denotam a premissa de uma noite de muito álcool e lúpulo. Mário analisa outras pessoas ali presentes e percebe que todas, sem exceção, estão consumindo mais bebida alcoólica do que seus corpos supostamente podem suportar. Os temas das conversas variam, ora são os jogos de futebol, ora são as mulheres das suas vidas, porém, o que prevalece mesmo, são as trocas de favores.“Naquela noite me apelidaram de “Mar”. Era costume deles colocar apelidos em todos. Se o fulano tivesse algum defeito ou fosse parecido com um animal qualquer, apelido nele. Se não preenchia em desses requisitos, era agraciado com o diminutivo do próprio nome, o que aconteceu no meu caso. Lembro que jogamos Tranca até o sol raiar e até consegui uns trocados para o fim de semana. Tive de levar o Tavares nas costas e praguejei um bocado, pois continuava frio a dar com pau. Se era minha primeira vez, quem diabos levava ele pra casa antes?”* * * * * * * * * * *As ruas de Tubarão continuam gélidas. Mesmo com uma discreta e rápida aparição do sol durante a tarde, a fumaça na boca dos pedestres promete uma madrugada glacial aos tubaronenses. Duas semanas se passaram desde que Mário pisou no bar pela primeira vez. Muitas vezes vieram após aquela. Dia sim e dia não, jogos e mais jogos eram travados. Como Tavares era seu parceiro de jogo, ambos sempre tinham um desafiante. A quinta regra era a de não recusar desafios nas cartas. Se não tinha dinheiro para cobrir a aposta, o bar cobria pra você. Se a quantia fosse grande, o empréstimo poderia ser pago em parcelas, o que fazia muitos freqüentadores apostarem o que não tinham. Na teoria, a pessoa tinha de pagar a tal dívida no prazo, mas como se tratava sempre de um freqüentador assíduo – e o barmam fazia questão de lembrar que o bar era para diversão, e não para agiotas – na prática, esse dinheiro nunca era cobrado. Mesmo com essa política, era difícil encontrar algum “velhaco”...pois todos pagavam. Eram uma comunidade, e Mário fazia parte dela. A idéia de que em cada lugar importante de Tubarão tinha alguém disposto a ajudá-lo, lhe trazia uma satisfação da qual não experimentara a anos.“Todas aquelas figuras de apelidos exóticos tinham sua utilidade.”O marcador mostra o contratempo: a gasolina está à míngua. Mário andava tão absorto em pensamentos, que esquecera por completo de que o carro também tem suas necessidades. Por sorte, o veículo consegue chegar ao posto de gasolina mais próximo e quem o recepciona na bomba é RedBull, um dos novos amigos que conhecera no bar.“Toninho RedBull pensava que esse apelido fora dado por ser ele um cara genioso e bom de briga – algo no estilo Pittbull – já que era marca de uma bebida energética. Mal sabia ele que se tratava do “slogan” de uma propaganda que dizia “RedBull te dá asas!”, referência clara ao estado pútrido de suas axilas. Aquilo confirmava uma teoria que eu tinha a tempos: A pessoa que cheira mal, não sabe disso. Se você conhece alguém assim, faça o teste que é tiro certo...”- Meu amigo Mar...o que manda? Tá frio, mermão...Um aperto de mãos é dado...- Então é aqui que tu trabalha...- É...alguém tem que fazer isso lá em casa, né?- É verdade. Impressão minha ou subiu o preço da gasolina?- Faz uma semana.- Que absurdo...ops!“Verifiquei a carteira e ela estava vazia. Havia depositado o último níquel e o único cheque do talão era para o mercado. Fiquei meio sem jeito, mas expliquei minha situação para RedBull e eis a resposta:”- Que isso cara, é do bar, é da casa. Vou encher o tanque e fica elas por elas...aliás, foi até bom tu aparecer hoje...- Porque???- Seguinte, chegou um caminhão de combustível ontem a tarde, mas só tava previsto meio caminhão. Os telhas deixaram aí porque não tinha onde colocar. Fizeram um rolo do caralho e o pessoal daqui tá fazendo a maior festa...- E daí???- Daí que tem uma pilha de galão de cinco litros lá atrás. A galera tá enchendo os latão de gasosa e levando pra casa. O MacGiver e o Elvis já passaram por aqui. Porque tu não leva uns???- Não sei...não dá bode?- Que nada. Se der, vai ser pro pessoal do posto. Se quiser, eu vou pegar uns galão, não leva meio minuto.- Bem... – Mário olha para os lados e não enxerga ninguém que possa flagrá-los. – Como diz o ditado, dado vai até injeção na testa.- Esse é o cara...só um instante.RedBull sai correndo. Como ele havia dito, não demorou meio minuto e cinco galões já estavam sendo cheios. Um sorriso de cumplicidade surge na boca de Mário, que sabe que está fazendo algo de errado, mas se deixa levar pela molecagem. Porta-malas cheio e os pneus cantam.“Comecei a gostar da coisa. Sabia que estava devendo um favor à RedBull, mas não me preocupei. Seja o que for que ele me pedisse, devia estar ao meu alcance...logo, por que não??? ”* * * * * * * * * * *A noite estava fria. Fria demais para os que moram nas ruas, que estavam passando a pior noite de suas vidas. Mesmo no conforto do lar, as pessoas encontram dificuldades em se adaptarem ao frio intenso que castiga Tubarão.No bar, as coisas não são diferentes. Seus freqüentadores se aquecem como podem enquanto o Indiferença – meio vazio devido ao frio – é palco de uma acirrada disputa de Tranca. Embora não seja um “expert” neste jogo, as cartas estavam para Mário. Os oito curingas do jogo estão em suas trincas e qualquer carta que aterriza no lixo, ele abocanha. A torcida delira e se empurra para ver o jogo. Mais de vinte homens brigando como crianças o fazem na frente da TV. O bolo já está em duzentos reais e não tem perspectiva de baixar...- O outro três???? Assim não dá pra jogar. O cara tá possuído... – Reclama Rubão Pé de Feijão, um homem enorme e cheio de cicatrizes pelo rosto.“Perguntei uma vez quem fez aquilo no Rubão. Disseram que, seja quem for, não existe mais. Na hora eu gelei, afinal, o cara era grande pacas e, quem quer que fosse, deveria ser maior. Pior que esse pensamento, era o da brincadeira do “não existe mais”. Sabia que se tratava de uma brincadeira, mas isso plantou uma péssima dúvida na minha cabeça: Será que havia ali alguém capaz de matar???? Eram tantas pessoas diferentes que essa hipótese não era de toda improvável. Foi daquele comentário em diante que uma sensação ruim se abateu sobre mim.”- Foi mal Rubão...bati! – Brinca Tavares, baixando as cartas.- A sorte está conosco hoje. – Conclui Mário, já não tão empolgado quanto seu parceiro.“No íntimo, algo estava me alertando e aquele sentimento de que alguma coisa de muito ruim estava acontecendo insistia em me alfinetar. Elvis The Pélvis e MacGiver, duas figuras tarimbadas do bar, não apareceram a noite toda e isso era meio suspeito. Todos aqueles rostos sorridentes e embriagados, naquela noite, não me diziam nada...Deus, como eu queria estar errado...”* * * * * * * * * * *Sábado, três e pouca da tarde...Mário é britânico quando o assunto é sua casa. Móveis, eletroeletrônicos, utensílios, tudo é encaixado nos mínimos detalhes e nenhum espaço é desperdiçado por menor que seja. Suas roupas, bem como seus objetos pessoais, são guardados em ordem milimétrica. Mesmo sendo um boêmio e trabalhando como um operário japonês, Mário encontra tempo para manter as coisas como gosta, porém, o brinco de sua casa não espelha mais o dono como outrora o fazia. Graças ao bar, Mário não tem dormido direito durante a semana, logo, desconta as horas perdidas dormido aos Sábados. O frio e o cansaço das noites de Sexta, fazem Mário dormir com as roupas que chega em casa, e até mesmo os sapatos já não estão ajeitados como mandava seu perfeccionismo. No momento, ele se encontra no mundo dos sonhos e suas feições não são das mais amigáveis...Um pesadelo o atormenta. Um lugar frio, escuro...Mário caminha incógnito e em seu rosto, uma lama fedorenta que faz seu nariz arder. Ele corre desorientado e encontra um pequeno lago à sua frente, mas hesita em se lavar, pois está frio. Tomando coragem, ele se curva para se limpar e vê seu reflexo sujo na água. Algo lhe atinge a cabeça violentamente – milhares de fagulhas de dor penetram no corpo de Mário – e o oxigênio dá lugar ao composto água. Ele sente seus ossos e juntas congelarem enquanto se debate inutilmente sob a superfície. Seu pavor aumenta à medida em que a água invade seus pulmões e, mesmo com o barulho dos seus movimentos, uma música assobiada ao longe chega aos seus ouvidos......era “Hound Dog” de Elvis Presley.Mário acorda em frenesi quase que, ao mesmo tempo, em que o telefone toca. “Foi só um pesadelo.” Aliviado por constatar isto, ele atende o irritante aparelho e a primeira voz que ouve no dia é a de um impaciente e gritante General:- Acharam o Charles!O InfernoUma Terça-feira mais negra chegava para Mário. Seu olhar estava fixo na cadeira de candidatos à vaga de Office-Boy. Já fizera muitas entrevistas de emprego antes, já que o departamento de pessoal da imobiliária daquela região era ali, porém, a missão de Mário será mais penosa hoje, pois terá de escolher um substituto para Charles, que falecera na madrugada de Sexta para Sábado.“ Encontraram o corpo do Charles boiando no Rio Tubarão. Disseram que bebeu além da conta e perambulou pela beira do rio até escorregar, rolar barranco abaixo e bater a cabeça em uma pedra. A água fria e a temperatura negativa da madrugada mataram o pobre guri de hipotemia. Assim que colocaram isso no jornal do almoço, o General tratou de me ligar à tarde para me contar a tragédia e, pra variar, mandar eu pôr um anúncio na rádio para a vaga de Office-Boy que ficou aberta. Lembro das palavras do General como se fosse ontem: “A vida não pára!”O enterro na Segunda foi ainda pior. Charles tinha uma família imensa que lotou o Cemitério Municipal. Denise não parava de chorar e o Tavares não soltou nenhuma piada sem graça. Nem sinal do General, pois estava gritando não-sei-o-quê com algum desafortunado em outro escritório. Luto de três dias? Nem pensar.”Um comprimido sai da embalagem e é consumido por Mário.Muitas entrevistas depois, Tavares entra na sala.- Como tu tá Mar, melhorou?- Como diz o General, a vida não pára, certo?- O General é um filho da puta. Nem foi no enterro do garoto.- Pode ser, pode ser...- Bem, vim saber se tu vai no bar hoje.- Não, hoje eu não vou.- O Bolão desafiou.- Eu sei, mas eu não vou. Não tô com cabeça pra jogo.- Claro, claro, mas a quinta regra...- Tavares...eu não vou ir. Um amigo morreu e eu não tô afim. Hoje não.- Olha Mar, eu sei que o Charles trabalhava com a gente e eu também gostava muito dele, mas tu aceitou as regras quando eu...- Foda-se as regras. O que tu vai fazer, atirar em mim? – Grita Mário, fora de si.“Tavares tentou argumentar algo, mas não escutei. Aquela mania dele de querer convencer as pessoas tinha esgotado a minha paciência. Se não tivesse me provocado – tivesse apelado menos e sido um pouquinho mais esperto – as coisas poderiam ter um desfecho bem diferente...”* * * * * * * * * * *Mário dirige sem rumo certo. Seu carro já viu – num por do sol – o que vira em quase todos os dois anos de sua existência. Poeira, vento, mato, água, barro...Sua cabeça rodava como uma hélice e o ódio pelo coração de pedra de seu patrão e pela insensatez do seu colega de serviço lhe consumiam a alma. Quatro anos de opressão e trabalho não reconhecido estavam prestes a estourar. A morte de Charles não melhorou em nada esse panorama, pelo contrário, foi o estopim.“Eu nunca tinha estourado com ninguém antes e parecia uma boa hora para se fazer isso...”O volante faz uma curva abrupta e Mário parte para um acerto de contas. “Hoje, o General vai ver com quantas porradas se faz uma constelação...”O carro pára num cavalo-de-pau, em frente a casa de Juscelino, o General. Mário está disposto a mostrar modos ao seu patrão casca grossa, nem que tenha que usar de métodos não ortodoxos na frente da mulher dele para fazei-lo pedir desculpas por desrespeitar tanto a vida de um funcionário. Ele estala os dedos e vislumbra o casarão imponente...e sem luzes. “Se não tem ninguém em casa, porque o portão e a porta da frente estão entreabertos?”“Cheguei lá com uma vontade muito grande de arrebentar meu chefe. Não tinha tomado minha medicação e meus nervos tinham que extravasar em alguém. Porque não nele? O cara tinha me tratado como lixo por quatro anos e nunca reconheceu o meu trabalho. Tá certo que a Denise é um mulherão, mas foi eu que coloquei a menina lá...e nem isso ele reconheceu. Quando entrei no quintal, um calafrio percorreu a minha espinha e a coragem esvaiu-se quase que por completo. Eu estava entrando dentro do terreno de alguém. Em qualquer livro de direito, isto é invasão à domicílio e é crime. Pensei em apertar a campanhia antes, mas o ar suspeito da casa e minha intuição não permitiram um aviso prévio.”Mário adentra a casa em trevas. Imediatamente, um forte cheiro de gasolina invade suas narinas, fazendo seu estômago dar voltas e parar na sua garganta. Mesmo com um desagradável pesar, seus pés insistem em levá-lo além. Súbito, o silêncio sepulcral é quebrado por uma música estranhamente familiar...Uma música assobiada. Mário engole em seco quando vê um par de costeletas louras igualmente familiares, iluminadas por uma tocha que insiste em ziguezaguear. Um movimento brusco da tal tocha revela a presença de outro homem também conhecido. “Que diabos Elvis The Pélvis e RedBull estão fazendo aqui?” Graças à escuridão, os dois não percebem a presença de Mário, que se esgueira para o canto da sala. Além dos dois homens, Mário nota que há outras duas pessoas ali, amarradas uma a outra no centro da sala.“Era o General e a mulher. Mal conseguiam gemer, pois estavam amordaçados. A situação estava bizarra demais pro meu gosto e, quando resolvo sair pra chamar a polícia, sinto algo gelado no meu pescoço...”- Não se mexe Mar, não quero cortar o teu pescoço.” – Diz MacGiver, ameaçador. – Ei pessoal, olha quem eu achei aqui...“Naquele momento, minha vida não valia um mango furado. MacGiver estava com seu inseparável canivete de bolso – motivo pelo qual ganhou o apelido – na minha garganta.”- O que esse imbecil tá fazendo aqui??? – Ralha Elvis, enquanto despeja gasolina nas paredes da sala.MacGiver segura Mário pelo colarinho e arremessa o infeliz contra a parede, fazendo-o se prostrar de dor. Mário tenta falar algo, mas leva um soco no rosto que o desnorteia...- Chega! – Ordena Tavares, que surge da penumbra. Os olhos de Mário por pouco não saltam para fora das órbitas.- E aí Mário, veio ver de perto o que TU vai fazer?- Do que tu tá falando, seu merda!!!!- Ora Mar, todo mundo sabe que tu é um depressivo convicto...Depois de quatro anos de sermão, teus nervos não agüentaram mais e, quem diria, tu queimou a casa do General com ele e a pobre mulher dentro...Que coisa feia...“A ficha caiu no ato. Tudo o que acontecera até ali: o bar, os jogos, os amigos boêmios, os apelidos...tudo fazia parte de uma conspiração. Uma maldita conspiração. Pior que o sentimento de traição, era o fato de EU ser o bode expiatório da história; as latas de gasolina que usavam eram idênticas as que RedBull me dera no posto, latas estas que estavam na dispensa da minha casa, prontas pra me incriminar...”- Tudo isso por dinheiro????De cócoras e canivete em punho, MacGiver responde:- Me diz tu. É tu que vai queimar eles e se matar de remorso com um tiro na cabeça, he, he.“Se ele tivesse me dado um tiro, não teria feito maior estrago. Me restavam alguns minutos de vida e eu tinha que pensar em algo. Tinha um cara com um canivete no meu queixo, um maluco que achava que era Elvis, um gordo que disse ser meu amigo durante quatro anos só pra me ferrar depois, um casal amarrado dentro de uma casa encharcada de gasolina e uma tocha na mão de um cara fedorento pacas...Eu tinha que pensar em algo...”Mário ri. Gargalha como doido. Os quatro algozes ficam atônitos.- Qual é a graça, seu anormal? – Pergunta Tavares, irritado.- Tsc, tsc...se o RedBull soubesse... – Responde Mário, sem parar de rir.- Do que tu tá falando???? – Se aproxima RedBull.- Do teu apelido...ou tu ainda não sabe que o Elvis só te deu ele por causa do cheiro horroroso das tuas axilas... “RedBull te dá asas!”- Como é que é??!!! Grita RedBull alucinado, voltando-se para Elvis. Este tenta falar qualquer coisa, mas o temperamento de RedBull não deixa os lábios do fã do rei se explicarem. Enfia-lhe um murro neles. Tavares corre para aplacar a situação e Mário aplica uma joelhada na virilha de MacGiver, que cai agonizante. Num segundo, a noite vira dia, o frio vira calor...as trevas viram inferno. Tudo queima.“Os desgraçados tinham feito um bom trabalho. Colocaram gasolina onde podiam e onde não podiam e a casa virou um forno assassino...”O casal se desespera, pois suas vidas estão nas mãos de um franzino Mário, que se arma de dois galões de metal em meio as chamas. Tavares sua como um porco e grita coisas ininteligíveis, antes de apanhar feio com os galões de Mário e se curvar com as mãos na cabeça. Em sua ira, RedBull nem percebe que tudo queima a sua volta, enquanto quebra os poucos dentes que restam na boca de Elvis. MacGiver tenta se levantar, mas sua jaqueta de tactell pega fogo como papel e o faz rolar em um tapete de lã embebido em gasolina para apagar o fogo das costas. “Péssima idéia!” Pensa Mário, enquanto arrasta o casal apavorado para a porta da frente. Em um momento de esperteza, Mário – após constatar que o patrão e sua senhora estavam fora de perigo – quebra a maçaneta do lado de dentro com um dos galões e bate a porta violentamente, prendendo os intrusos na casa em chamas. As labaredas consomem as persianas das janelas e gritos de terror ecoam entre os estalidos.- Mário, seu desgraçado! Abre essa porta. – Grita Tavares, quebrando os punhos contra a resistente porta que não cede.- Eu pensei que tu era meu amigo...Tu queria me matar, cara.- Pelo amor de Deus, não é hora de filosofar, a gente vai fritar aqui. Isso é assassinato.- Foda-se. Melhor sorte da próxima vez.“Chamei os bombeiros pelo celular e desamarrei o casal. A mulher já tinha desmaiado e o General estava muito nervoso, ao ponto de querer engrossar comigo. Foi quando meu lado mau se sobressaiu e ameacei jogá-lo na casa se ele não me dissesse o que queria ouvir. Assustado por nunca ter levado um “não”, tentou desconversar e se enrolou todo, mas cerrei os punhos, novamente insinuando que o levaria a nocaute se não colaborasse. Vendo que não tinha mais saída, sentou-se em um galão e começou a se confessar. De toda aquela ladainha, consegui arrancar os motivos pelos quais eles armaram a arapuca. Tavares devia-lhe uma bolada. Uma quantia ofensiva, moldada em anos de empréstimos e juros altos. MacGiver e RedBull tiveram seus negócios arruinados quando o General surgiu na cidade como concorrente em suas respectivas áreas.”- Lembro-me vagamente dos dois... – Dizia o General.“Já Elvis The Pélvis falsificava documentos no DETRAN e o General descobriu isso ao acaso. Como isso consistia em crime, usou a informação para benefício próprio e chantageou o coitado até o mesmo perder a sanidade, que já não era de toda normal.Motivos fortes. Muitos inimigos. Contei ao General tudo o que acontecera até ali – cada pedacinho de detalhe – e este chorou como uma criança. Não é todo dia que descobrimos que somos um lixo tão indesejável que dezenas de pessoas conspiram nossa morte. Tavares bateria palmas, se não estivesse queimando naquele exato momento. Meu coração disparou quando me dei conta de que eles quase conseguiram o que queriam, mas as coisas não tinham terminado aí...O bar ainda existia. Se os outros se safassem, nada os impediria de se vingarem de mim ou de tentarem outro atentado contra o General...”“Naquela noite, eu não deixaria nada barato.”Pé na tábua e galões de gasolina no porta-malas. Mário passou em casa e se armou da prova que o incriminaria se as coisas tomassem outro rumo. O Bar Indiferença estava com os minutos contados, e todos que se encontrassem lá dentro, sentiriam na pele o que Tavares e os outros sentiram. “Se vou matar alguém, que sejam as pessoas certas.” O lugar que escolheram para arquitetar a mentira era perfeito. Longe de tudo e de todos. Caruru era pertinho em comparação ao bar. A estradinha de chão não dizia nada aos menos cautelosos, mas mostrava o caminho da perdição aos mais atentos. Mário trata de estacionar bem longe da clareira e seguir o restante a pé.“Peguei o atalho que Tavares me ensinara e cheguei silencioso na clareira. O que outrora era uma coleção de veículos, transformou-se em quatro carrinhos fuleiros. Notei que só estavam ali as pessoas que me interessavam, o que me aliviou muito, pois não teria como eu fazer distinção entre um e outro na hora certa.De repente, tudo ficou mudo e nem o farfalhar das folhas produziam som algum. Nos filmes, esse seria o momento em que o mocinho se prepara com o que há de mais moderno em armamento militar para invadir o QG do vilão. O grande clímax. Olhei para os galões que trouxera comigo e respirei fundo. Devagar, rondei o bar e todas as janelas e portas estavam fechadas. Espiei por uma das frestas e estavam lá, em uma rodinha no meio do bar, Rubão, Rato, Chico Bento, Coroinha, Jack, Lino, Pedreira e Robinson, o Barmam. Estavam exaltados e isso facilitou a escuta.”- Tão todos aqui? – Pergunta Robinson aos outros.- Quase todos. O Tavares já devia ter chegado com o trouxa do Mário. Os outros foram fazer o serviço. – Responde Pedreira, sujeito rude, de aspecto neandertal.- Serviço este que vai salvar nossas vidas. Espero que eles sejam competentes...- O Elvis e o MacGiver eu garanto. Os caras fizeram um bom trabalho no tal do Charles. Já o RedBull, eu não sei... – Fala Rato, com uniforme de PM.- Eu deveria ter ido. Matar não é coisa de criança. – Diz Rubão Pé de Feijão, estalando os dedos.- Tu não é o único que sabe matar por aqui. – Ralha Coroinha.“Por mais que seja estranho, não fiquei espantado com a revelação. Mais tarde descobri que Charles tinha escutado uma das conversas via telefone do Tavares por engano. O resto é história. O que me preocupou mesmo foi a presença do Rato na parada. Todos estão carecas de saber o que acontece quando se mata um policial. Mais do que puni-los, eu teria de ser perfeito... ”Mário já esperou demais e resolve agir. A gasolina é jogada devagar sobre a parede externa do bar. Um pequeno falatório sobre quem mata mais camufla o barulho dos passos de Mário e este conclui o serviço, dando a volta em todo o barraco. A confusão finda e Robinson pede um pouco de silêncio:- Vocês tão sentindo um cheiro de gasolina???O pé de Mário explode na porta e pega os homens desprevenidos. Todos se entreolham e nada entendem. Mário mostra as duas mãos enluvadas: na esquerda, um galão de gasolina deixando um rastro do líquido que vai até a rua. Na direita, a miniatura de isqueiro Zippo do Hotel Riviera, que Tavares trouxera de Las Vegas em suas férias do ano passado.“Não esquenta. Tu acha utilidade pra ele...” – Dissera Tavares, me dando o isqueirinho de presente. – “...aliás, tu acha utilidade pra tudo, né?” – Mal sabia ele que estava coberto de razão.”- Rato, nem pense nisso. – Avisa Mário enquanto Rato desiste da idéia de sacar o revolver.- O que tu quer de nós? – Pergunta Robinson na posição de líder.- Estava passando e...resolvi entrar pra bater um papo legal, mas quem eu queria encontrar, não está mais aqui. Então, gostaria que vocês dessem um recado pro Tavares, que Deus o tenha...“Existe uma palavra japonesa que era pronunciada toda vez que um kamikaze mirasse um navio aliado. Não sei porque, mas achei que seria apropriado gritar aquilo.”- BANZAI!!!!!!!!!!!!!!!Mário arremessa o galão nos homens e sai correndo pra fora do bar. Antes que os mesmos esbocem reação, um isqueiro aceso cai sobre a gasolina e mais um inferno é criado. Gritos apavorados e estalidos preenchem a mata e Mário vê o Indiferença sumir da face da Terra, tão rápido quanto entrou na sua vida...- Acho que já vi isso antes...* * * * * * * * * * *Um engodo. Nesta simples palavra se resumia o Bar Indiferença. As coisas poderiam ter sido diferentes se não tivessem encontrado o isqueiro importado – para a polícia – “prova irrefutável” de que o homem que fez aquilo foi hóspede de um hotel em Las Vegas.Observando os escombros, Mário se permite um pequeno sorriso, pois o General sonegava e extorquia dos que morreram naquela noite e isso ainda é crime. Mar negou socorro e matou oito homens a sangue frio – um deles, um policial – e isso também é crime. Ambos tem essa informação e sabem que será melhor para suas vidas se continuarem omitindo os fatos.“Cada um dos homens que matei tinha uma qualidade, por menor que seja. Alguns tinham até família. Se fiquei arrependido do que fiz? Talvez. Se faria tudo de novo? Bem, quando a situação for “eu ou eles”, vou queimar quantos bares forem necessários...”“Pois como diz o General...” Pensa Mário, tirando um envelope de comprimidos do bolso e queimando-o com um isqueiro.“...a vida não pára.”FIM