----- Original Message -----

From: Stanley H. Atkins

To: C. Waters

CC: N.Y. Times

Sent: Thursday, September 11, 2001

Subject: Carnationbud
Filipe Ferreira

Escrevo com fúria agora, este é meu grito de vida, minha corrida desatinada pelo vale das sombras, em busca de um rosto, de um passado, de uma história a ser contada. Escrevo com raiva, quero dilacerar a veia da solidão, da morte, do esquecimento, quero rasgar o córrego que me divide da felicidade, gostaria de resistir, gostaria de manter-me de pé a despeito da devassidão, das drogas, da mesquinharia, do irmão que matei e de outro que alejei, das pessoas que subornei e de outras tantas que deixei putreficar nos esgotos da pobreza!

Escrevo com as mágoas relutantes nas mãos, as faces voltadas para os céus, as lágrimas brotando de dor, o fogo quer comer minhas entranhas mas escrevo com esperança. Se a vida não me deu sentido ao nascer, não me dará sentido a morrer, nada me será desvendado, o céu não me será oferecido e serei uma esfíge como todas outras silenciosas em um pátio verdejante.

Escrevo para Pietra e todas outras musas que encheram minhas noites de coqueluche e ereção contínua prolongada, a febre queimando a pele mas principalmente Pietra que enxerga e minha a beleza que não há, ou que já perdi, em um passado longínquo. Escrevo para Anastacia sangue do meu sangue, do ventre de Pietra, de todo ouro que pode um berço adornar, de todos cuidados que pode uma criança receber, o bastante para deformá-la e fazer dela um monstro assim como eu.

Escrevo do que me lembro e me lembro do dia anterior, da batalha judicial, do primeiro dia útil da semana e o suicídio de meu pai e do primeiro dia do mês e uma incursão aos subúrbios e a jovem Carol e me lembro do ano começando, a roupa branca manchada de sangue e sabe, eu mereço tudo isso, dois anos atrás, Pietra parindo e mesmo antes disso, Pietra abortando e a primeira vez em que fui acusado de um crime e a segunda vez que fui algemado e Bob que diz: "você não merece nada, você não merece vida, não merece o ar que respira" e Bob pára de respirar e sobra mais ar para mim, mas veja minha situação, ninguém mais consegue temer-me, sou uma criatura dócil que gostaria de te apadrinhar e quando há dez anos atrás, matei pela segunda vez, desta vez conscientemente, percebi que engano-me cada vez que observo este reflexo tétrico no espelho e me acho assim, parecido com um Max Schreck em pleno Orlock, minhas garras destoando, uma apetite voraz por sangue e os olhos loucos enquanto fodo com tudo e todos a minha volta, jogo meu peso sobre a cama e esmago a consciência e a dignidade das mulheres, volto rastejando para minha pequena Shangrila onde faço titeragem com os membros do clã. Então viro um adulto copulando e agredindo aos próximos pela primeira vez, meu trabalho rende seus frutos e compro um carro, modesto. Páro de usar calças largas e abandono o suspensório, me olho no espelho e as roupas de meu pai estão largas, muito largas, talvez eu não seja digno delas, minha mãe vem até mim, afaga meu cabelo, diz que sou o melhor filho do mundo e apaga a luz com ternura e levanto da cama mais uma última vez e olhar a estrela e sonhar com mundo distante. Viro os olhos mais uma vez e os objetos pendem sobre minha cabeça, não os alcanço mas os quero muito, por isso grito, por isso choro e assim consigo o que é de meu intento, mastigo-os, quebro-os, jogo-os os fora, estou com fome, eu acho, então grito e choro e de repente estou em silêncio e o ribombar ecoante de uma redoma me deixa zonzo e protegido.

Abro os olhos mais uma vez. Troco as pernas de lugar, tudo estoura, tudo explode, tudo se dissolve as minhas voltas, mas escrevo com fúria, meus olhos ardem, minha pele começa a sufocar e repuxar, mas preciso terminar...

Um estranho (ou apenas agora irreconhecível) passa chamuscando por mim. Bate por fim contra um bloco de concreto e cai na borda do vão feito por uma viga. Se retorce um pouco na exata medida de minha visão, abre a boca como se quisesse gritar e sua essência volta por dentro de sua garganta e estufa seu peito – ele rola para o vão e seus pés dão uma volta no ar antes de seu corpo desaparecer no abismo.

Uma estranha (ou apenas agora irreconhecível) arrasta-se pelo chão sem ambas as pernas, em seu traje social marfim empoado de sangue e moído pelas chamas, grita por socorro – não enxergo seus globos oculares – sim, com certeza – ela não mais os tem, escorre um líquido viscoso de seus orifícios e por um momento acredito ela estar chamando por meu nome. Tento me concentrar ao longo daqueles rugidos infernais e daquele som crepuscular: Staaaanleeey... Staaaaaaaaanleeeeeeey, me ajude, p-o-o-o-o-o-r f-a-a-a-a-v-o-o-o-r. Pego meu Robert Luis Stevenson de cima da mesa, já estranhamente retorcido pelo calor e o arremesso para que ela se cale.

Resta pouco tempo agora e escrevo com fúria, escrevo com medo e desgosto. O chão sacode e ripas da madeira polida de nossa sala oficial estiram-se com o vigor mortis e derrubam e engolem nossos cadáveres e um incrível cheiro acre de queimado invade todos os vãos. Me concentro mais uma vez.

Daqui vejo, em meio a fumaça, a janela que dá direto no céu. É um caminho curto até lá. O avião que surge do nada, agiganta-se a frente do colosso e ruma imponente em seu estômago. Me sinto preso na ponta de um palito de fósforo gigantesco, que balança ao sabor do ar, me sinto quase em queda livre com esta visão infantil – o som e o vento são quase divinos enchendo meus ouvidos em uma turbulência que promete acabar com minha consciência. Daqui os vejo se abraçarem de forma fraternal – o pequeno gafanhoto é engolido pelo totem que o mastiga com vontade, rumina, range com seus dentes a nevralgia do aço, seu prato principal está quente, viscoso, um pouco duro. Arrota empoado de fogo e fica digerindo-o de maneira sôfrega, como se tivesse preferido se alimentar só das nuvens e dos pingos da chuva que compunham sua dieta fundamental e não dos gafanhotos que agora enchem os céus.

Estou no ventre de Moby Dick e sinto que ela vai afundar comigo dentro.

De onde quer que Pietra esteja, talvez ela esteja me vendo.

Não quero, não quero, mas a ardência me faz sucumbir e chorar e meu grito rouco delata que não choro de medo, que se foda a morte, que se foda mesmo, que se exploda e todos explodam comigo e que explodam com ela, choro da fumaça e choro do fogo, cacete, antes afogado no sangue que lava nossas ruas. Estes zumbis pútridos de meus sonhos capengam ao meu redor e somem ao meu redor e emitem ruídos indiscerníveis aos meus ouvidos e me assombram.

Há de sobrar mais tempo e mistérios nos escombros pois então (sempre há uma brecha, um pipoco, uma sobrevida para os abastados): Carnationbud...

Enviar.

Stanley agarra-se a mesa e ela começa a sumir. Tudo começa a descer lentamente, um rangido metálico enche o ar de fagulhas e o mijo do diabo varre o centro da sala derretendo tudo que se interpõe. O chão enverga e a cadeira a qual Stanley se segura começa a deslizar. A sua situação começa a ficar cada vez mais vertical até que um bloco de concreto compensa o outro lado do chão e sua gangorra infernal se estabiliza por alguns momentos. Stanley continua soldado a sua cadeira de couro com três níveis, forrada com penas de pato.

Uma lufada quente de ar entra pelo andar desvidraçado e assopra o rosto cheio de fuligem. Stanley gargalha de maneira histriônica e algumas labaredas lambem suas faces rosadas. Uma pancada e Stanley está em quedra-livre até sua cadeira pousar desajeitadamente no andar inferior. Se segura e continua lá, sorrindo com escárnio para a morte. Vamos ver se você é boa o bastante para me derrubar.

Um armário atravessa a fronte de Stanley e continua em queda, levando-lhe uma das pernas para o abismo. Stanley pára, grita de dor, ajeita-se na cadeira e tira a camisa para estancar o sangue. Sorri de novo, com um pouco de zombaria, para a morte. Sua puta-velha, você não sabe de onde eu venho. Uma flechada de um pedaço de metal entra pelas janelas e dirige-se em trajetória curva em direção a Stanley. Com um movimento aguçado, ele baixa a testa o bastante para que o detrito atravesse seu trono e provoque uma chuva bonita de plumas.

Stanley debruça-se no encosto da cadeira e olha para o vão ao seu lado – enxerga lá no infinito um abismo de chamas. Apruma-se, observa através das janelas e vê um dia claro e ensolarado lá fora, um dia que faria os pássaros cantarem. Olha de novo pra baixo e vê o inferno. Sua cadeira vacila e ele começa a descer de novo. Depois de uma rápida estadia na estação de metrô, sua cadeira se despedaça e Stanley continua a descer. Gira os braços no ar, contorce-se, e por fim desaba sobre uma corcunda de esterco fresquinho. Uma figura esquálida, vestida com um fraldão e uma coroa de espinhos, estende-lhe a mão e diz: Seja bem-vindo.

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----- Original Message -----

From: Stanley H. Atkins

To: Charlie Waters

Sent: Thursday, September 11, 2001