À DERIVA
Filipe FerreiraUm braço luminoso, cheio de veias que drenavam a mais pura energia, abraçou o céu por instantes. Os olhos machucaram-se, as nuvens cingiam uma imensidão escura e pavorosa. Os estrondos guturais eram a palavra divina que viera para lavar o mundo do pecado dos homens. Abriam-se fendas na água, estouros, o céu drenava o mar com fúria, as ondas acavalhavam-se umas sobre as outras até que a derradeira alavanca d’água quebrou o bote do pescador em dois e o velho Jorge foi arremessado de ponta cabeça contra a maré bravia. Lutou o que pôde e findou-se sua vitalidade, engoliu um, depois dois goles da água salgada e gelada e assim a morte continuou saciando sua sede no Atlântico. Seu corpo foi afundando em meio à escuridão à qual o céu contemplava alguma trégua com seu lampejo feroz. Sentia os cardumes fugindo-lhe por entre as pernas e braços, pequenos e dóceis peixes que navegavam a esmo – uma escama roçou seu rosto e o que parecia um pequeno peixe – deixou entrever-se na cauda que não mais parava de afagá-lo – tornou-se uma longa e sinuosa nadadeira escamosa. Um chumaço que pareciam algas sedosas arrastou-se por seu peito e neste instante mais um clarão concedeu-lhe, talvez pela última vez, o dom de enxergar. Um borbulho longíncuo e pavoroso prensava seus tímpanos, sentia seu corpo leve, afundando no mar sem fim – seus olhos se abriram e do negro e indefinido abismo postou-se em movimentos dóceis e fugidios um vulto que pulou de encontro ao seu rosto – gritou e seu timbre foi engolido e transformado pelas colunas intermináveis de oceano que o prensavam – uma face exangüe, rodeada de intermináveis mechas titubeantes, diria algas, definiu-se assim que duas fendas fantasmagóricas abriram-se no rosto enigma e revelaram dois olhos carmesim cheios de uma assustadora curiosidade. Seus narizes quase podiam tocar-se: Jorge teria morrido naquele exato momento, de puro pavor, se um beijo salvador não tivesse lhe secado os pulmões com a mais doce mágica – um gosto açucarado de anil provindo daqueles lábios azuis, gélidos, entorpecentes. Foi um breve instante, a um passo da morte e da insanidade, em que Jorge tombou de paixão pela criatura mais mitológica com que jamais sonhara – suas roupas foram perdendo-se como trapos e assim, dançando livre pelas águas, pôde unir-se em intercurso com Kaana, sua futura esposa.
Jorge, quando recuperou-se, foi morar em um armazém no porto afim de propiciar à Kaana um ambiente confortável onde pudesse ser feliz. Kaana passara tanto tempo nas águas que sua pele nunca mais deixaria de ser gélida como a de um cadáver – seus olhos vermelhos nunca deixariam de apavorar Jorge a cada olhar – arrepios ternos lhe tomavam, sentimentos até então desconhecidos. E não havia gosto que equivalesse ao daqueles lábios azuis – tal néctar que brotava daquelas entranhas! Kaana não conseguia livrar-se do sorriso infantil na boca, afinal era uma agradável surpresa a indumentária com que nasciam os quadrúpedes. Toda noite o casal tomava banhos na negra imensidão das águas, fazendo amor em meio às correntes e cardumes, ambos em casa, tanto a sereia como o pescador. Sua paixão aquilatava-se a cada braçada, cada ondulação que mantia Kaana em seu mais perfeito eqüilíbrio.Mas Jorge não podia mais ser o predador das águas – lágrimas salgadas brotavam na pele túmida de Kaana ao ver o assassínio de seus antigos convivas. Assim sendo, Jorge foi trabalhar de carregador, no próprio porto, durante a manhã e tarde, e Kaana começou a freqüentar um curso de impostação da voz.Dois anos depois chegou Jano, o primeiro filho do casal. Era um bebê saudável, dotado das duas pernas, embora escamoso e como todos diziam: “tem os olhos da mãe”. Jorge continuava operando uma empilhadeira, na labuta digna encontrava a mais perfeita paz – e Kaana começara a se apresentar com um grupo vocal.Um dia aportou no cais uma embarcação tripulada por um bando de nômades aventureiros. Um deles se chamava Tibério e ao avistar de estibordo uma bela espécie banhando-se nas águas do Guaíba, jogou-se nas águas e foi cortejar tão bela fêmea. Como um arguto e galante capitão tomou com audácia a mão de Kaana e ela, espantada com tamanha desenvoltura, esqueceu para trás Jorge e Jano – nadou lado a lado, de volta ao Nau Figueroa, com Tibério, que lhe prometia a fundação de uma cidade peninsular povoado pela mestiçagem de seu amor.Conta a lenda, ainda, que Jorge de tão ardorosa paixão, jogou-se ao mar e, bradando aos ventos o nome de Kaana, cruzou o oceano à sua procura. E como não findava sua busca, continuou nadando, nadando... e assim seguiu, por toda eternidade.Jano tornou-se um orfão rejeitado e perdido pelas ruas de Porto Alegre, viveu nas sombras o resto de sua existência, sobre o asfalto morno das ruas – visto que desaprendera completamente a nadar.Sobre Kaana, deixe-se expresso que o capitão Tibério, vendo os encargos de tão laboriosa missão prestes a ser empreendida, abandonou-a à sua sorte, no meio do mar, para que não precisasse conquistar uma terra com seu nome e povoá-la de seus rebentos. Kaana perdeu-se, assim, no Atlântico, sem nunca saber voltar, as correntes lhe enganando e para as nuvens que tinham a panorâmica ao seu gosto, podiam perceber os dois corpos que vagavam desiludidos pelo mar, cada qual rumando em sua direção – embora nunca se cruzando.