“Todo dia ela faz tudo sempre igual....
Me sacode às seis horas da manhã
E sorri um sorriso pontual
e me beija com a boca de hortelã.”
Chico Buarque
A MISSÃO
Filipe Ferreira
O ponteiro fincou seis horas da manhã quando deram seis horas da manhã.
Tempo vem, manhã cinzenta, nublada, o espírito morto da cidade, Segunda-Feira.
Paulo recolhe suas tralhas do chão, os olhos juntados de ramela. Carlinhos
resmunga do outro canto do sofá que hoje não vai para a aula. Paulo não liga,
vai até o quarto, Maria Luiza ainda dorme o sonho dos anjos, um sorriso angelical
no rostinho de sua esposa. Paulo caminha até a cozinha, joga água no rosto,
abre a geladeira e encontra um pedaço de pão. Come o pão e ele desce rasgando,
então, para não se engasgar, Paulo bebe o restinho de cerveja que tinha deixado
na latinha, na noite anterior. Volta para a porta do quarto – Maria Luiza
não mudara de posição – encolhida, de camisola rendada, um capricho poético
da natureza. Sentia uma vontade louca de ir lá beijá-la, tocá-la, sentir aquele
corpo de veludo. Voltou à Carlinhos e mandou que o guri pulasse de uma vez
da cama. Depois de ter certeza que seu filho não voltaria a dormir, Paulo
ajeitou o cabelo no caco de espelho no corredor e ganhou a rua.
Porto Alegre, rua Assis Brasil, sete da manhã: Paulo chega
na obra. Vê Miguel.
— Mais uma
semana.
— Mais uma
semana.
— E hoje
que me revirei a noite inteira? Este calor do cacete. – Miguel resmunga,
coloca o capacete e o cinto.— Chegou meu irmão de Venâncio
Aires. Acabou com a cerveja e ainda passou a noite com meu ventilador. Meu
ventilador. – Frisou, ultrajado.
Paulo pega o capacete, encara a construção. Mais uma semana. Faltam
cinco horas para o almoço, seu estômago já está em protesto. Faltam dez horas
para voltar para casa – os pés já lhe doem.
— Tu anda
muito quieto, Paulo. É o clima?
— Clima
nada, minha mulher não me quer faz quase um mês.
— Vai ver
ela tem outro magro.
Paulo encara Miguel e não esboça reação sequer.
— Cala a
boca, Miguel. Ela não tem ninguém. Só tá meia mal. Só não me pergunta
o que que é.
— Tô te
dizendo, se ela tá te evitando, tu já era. É corno, e é dos manso.
— Mas a
gente tá casado fazem oito anos e nunca deu problema. Devo ter feito
alguma merda, Miguel. Tenho que descobrir o que é. Ela já
nem me deixa mais dormir na cama. Passa o dia inteiro na frente daquela televisão.
Diante do silêncio do comparsa, Paulo estende sua conversa:
— Nem devia
ter comprado aquela televisão. Cacete.
— Mas o
que tanto tem pra ver na TV? Me escuta, tem outro magro...
— Miguel,
vê se colabora. Se eu te digo que não tem ninguém, é porque não tem.
— Tá legal.
– Miguel se vira e pode-se ouvir seu resmungo – E é manso...
Paulo se iça no primeiro pavimento e sai empurrando um carrinho
cheio de tijolos.
Quando chega meio-dia, alguns abrem a marmiteira. Tens uns
que trazem sandüiches – com ovo e sem alface.
Paulo vai comer no boteco do Resende com Miguel.
— Ô, seu
Resende, vem até aqui.
Resende é um negro caolho. Apara a toalhinha branca sobre
o balcão e aproxima o
rosto: — Que que foi?
— A mulher
do Paulo não quer mais chegar perto dele. Qual é a tua opinião?
Paulo fica atento, o seu Resende é sabido nestes assuntos.
Tinha duas mulheres e
nove filhos. Pena ser tão lacônico – ao menos que o indagassem,
é claro.
— Tem outro
na jogada.
Assim que o oráculo emite seu parecer, Miguel deixa o ovo
frito de lado, engole o
pão: — Eu tô dizendo pra ele, seu Resende. Vai ver no senhor
ele acredita.
Resende volta ao trabalho.
Quando termina o expediente, horas mais tarde, Miguel se despede:
— Abre o
olho, gavião.
Paulo não pode acreditar. Pega o ônibus. Passa o tempo todo
sentindo aqueles
cheiros de perfume feminino, mesclados, lhe chamando, alguns
ternos, outros selvagens. Como se diverte pegando o ônibus. Toda aquela fauna
com os mais variados aromas. Como gostaria que uma delas, podia ser aquela
morena, baixote, lhe desse atenção. A levaria para um motel qualquer, Maria
Luíza ia ver só.
Chega em casa e Maria Luíza está na frente da TV.
— Mulher...
o que tem de tão bom aí?
— A novela.
Quer ver?
— Vou tomar
um banho. Cadê o guri?
— No vizinho.
Paulo resmungou qualquer coisa e foi-se.
O relógio dizia: 6 horas da manhã. Paulo vira aquele ponteiro
piscar durante horas.
Suas olheiras disseminadas pelo rosto seco, marcado. Maria
Luíza, aquela menina inocente, sua mãe dizia “cuide bem dela, é meu diamante”.
“Paulinho, hein, pegando a menina para criar...”. “Devia arranjar alguém da
sua idade...sem-vergonha”. Paulo escoou do sofá e foi até a porta do quarto.
Maria Luíza dormia, esplêndida, aquela sua juventude casta que insistira em
profanar. Maldito Paulo Moisés.
Paulo chegou-se na porta da cozinha. Se tivesse o dinheiro necessário,
podia virar um bêbado. Ia borboletear, trocar as pernas, despencando construção
abaixo, atropeçando no céu. Maria Luíza não podia desistir depois de todos
estes anos. Depois de um filho, de juntos, passarem pela necessidade e por
alguns momentos felizes. Não podia ser verdade.
Paulo chegou na construção e lavou a cara na torneira. Miguel surgiu
às suas costas.
— E aí,
Paulo, como foi ontem?
— Como assim?
Foi como todos outros os dias.
— Ela te
deu trela?
— Ficou
vendo a TV. Novela das seis, depois a da sete. Minha chance vai
diminuindo. Quando chega a novela das oito, “saí pra lá,
ô traste!”.
— Ela fala
assim contigo?
— Não...
fica bem quieta. Só me convida pra ver TV.
— E por
que tu não vai ver?
— Pra quê?
Ficar vendo aquela gente abonada pra lá e pra cá?
— Pensei
que todo mundo gostasse de novela.
— Tu gosta?
— Eu vejo,
quando não tem jogo nenhum.
— Paulo,
Miguel, vocês vão ficar de fofoca o dia todo? – Gritou seu Aldaír, o
supervisor da obra. Era como todos os supervisores de obra:
gordo, escroto, sabia muito bem gritar.
— Daqui a pouco ele senta aquela bunda gorda e nos esquece. – Miguel,
entre os dentes.
E Paulo escalou a construção.
— Seu Resende...
vem aqui um pouco. — Miguel chamou.
O velho serviu a última ala-minuta do dia e virou-se para
a dupla, um tanto
amargurada.
— O senhor
vê novela?
Resende pensou um pouco. O ovo da Globo tilintava na TV
suspensa às suas costas.
— Qual delas?
– Respondeu, gutural, sério, um pouco abalado.
— Qualquer
uma! – Miguel sacudiu os braços, esqueceu os talheres brandindo nas
mãos, arroz e feijão alçando vôo.
— Vejo a
das oito. – E o homem olhou os dois como se esperasse uma aprovação.
— Muito
bem... – Miguel deu uma garfada, agora falava de boca cheia. — Se
lembra da mulher do Paulo?
— Não. Tu
é casado? – Resende, curioso, grave.
— Sim.
— A questão
é, seu Resende, que a mulher do Paulo tem deixado ele de lado. Ela
prefere ficar vendo TV.
Resende sorriu como se tivesse feito uma descoberta supreendente: associara
toda a conversa que se passara: novelas! Redargüiu: — Mas a novela das oito
tá realmente boa.
— A questão
é, seu Resende, o que o Paulo deve fazer?
Resende fechou os olhos por alguns instantes. Estava velho,
sôfrego, filhos demais
para seu bolso e por fim, o pau já não levantava fazia anos.
Precisava passar algum conhecimento, tinha de ser sóbrio. Fez aquela olhar
com o qual matava todas ninfetas da Vila Cruzeiro em idos de sessenta e proferiu:
— Tu devia
conversar com ela sobre isso.
Paulo não ergüeu a cabeça. Já andara pensando em uma conversa
franca. Ia ter
coragem. por que não?
Bateu a porta e Maria Luíza estava vendo TV.
— Como é
que foi o dia? Ficou vendo televisão? Só?
— Sim, quer
ver também?
Paulo respirou fundo. Se tivesse outro era melhor. Podia
meter o pé no peito do
calhorda, rachar-lhe algumas costelas. Depois saía de casa,
pegava a primeira baranga que surgisse, a traçava de maneira desajeitada,
como uma obrigação: “vai com calma, homem! Tá me machucando!”
Paulo sentou-se, cruzou os braços.
— Tu tá
fedendo, Paulo, podia tomar um banho primeiro.
Paulo encarou-a. Ela ficou estática, tinha aquela respiração
quente no ombro, como
um animal doido, no cio, embriagado por aquele cheiro de...
Tentou aproximar-se.
— Eu já
disse que tu tá fedendo, vai para o chuveiro.
Paulo encimesmou-se, recolheu-se. Ia vasculhar a casa, o
danado estava esperando
sua chuveirada para deitar o cabelo. Um mestiço qualquer
do Assunção, que ela conhecera no mercadinho. Paulo recolheu-se, foi passando
os olhos pelos poucos móveis. Um baú: podia ser um mestiço anão. Diabo, cheirou-se:
como fedia, precisava parar com estes pensamentos.
Seis horas da manhã. Paulo acordou de sobressalto, suado, tivera um
sonho hediondo: cães disformes o perseguiam pela ribalta. Mordiam seus calcanhares,
nunca imaginara que tinha uma carne tão apetitosa. Estava alarmado, pulou
do sofá e Carlinhos quase caiu junto. Plantou-se na frente do quarto, transpirando:
Maria Luíza tinha as ancas jogadas para trás, o traseiro levemente empinado,
a camisola começara a levantar na altura da coxa. Foi aproximando-se, como
um lobo-guará pronto para acasalar, salivava, baixou as cuecas até os pés
e foi chegando-se. Maria Luíza sussurou algo desconexo, aprumou-se, ajeitando-se
da posição que começara a ficar desconfortável. Não protestou: eram seis da
manhã e não havia forças para uma dissidência.
— E aí,
como foi? — Indagou Miguel.
— Trepamos.
Não tem mais ninguém naquele corpinho. Só eu. – Estava
visualmente restabelecido, embora as palavras lhe saíssem
trêmulas.
Estava comprindo suas obrigações conjugais, a conjunção carnal estritamente
burocrática. Nada de prazer, apenas um arremedo, uma bandeira de paz e ao
mesmo tempo indiferença. Coloca este pau aí e esquece a vida. Vou fingir que
estou dormindo: que não foi contra minha vontade.
Vadia! Vou rasgar, isso, boa palavra. Passando vergonha na frente dos
amigos. Então diz de uma vez o que que há! Piranha, um silêncio que molesta!
Paulo perdeu o equilíbrio – seu corpo vacilou para frente – pôde ver o chão
à quatro andares, Aldair examinava tudo lá de baixo. Pairou, o pé esquerdo
girou e o direito voltou a base de seu eixo. O martelo escapuliu do cinto
e despencou. Vadia desonesta. Vou matar o filha da mãe. Deixa eu sair daqui.
Quando fechou o dia, Paulo foi-se escapando pela Assis Brasil. Parou
na sinaleira, sozinha, mordia os lábios, o bolso cheio de pregos. O telefone
tocava ao seu lado. Daqui a pouco o ônibus chegava e... o telefone insistia.
Olhou para o lado e o telefone público tocava.
— Alô?
— Alô, quem
fala?
— Aqui é
Paulo. — Parou, pensou.— Mas este aqui é um telefone público!
— Eu sei,
mas era contigo mesmo que eu queria falar, meu irmão.
— Mas quem
é que tá falando?
Era Deus.
— Tudo bem, mas me conta ô meu senhor, é sobre Maria Luíza?
— Maria
Luíza? – Repetiu Deus.
— Minha
esposa!
— Ah, claro.
É sobre ela.
— Então,
tem outro na parada?
— Não, não
tem.
— Mas me
conta qual é o problema, senhor, ela mudou de vinho pra suco de uva...
— É realmente
um grande obstáculo, meu irmão...
— Eu queria
saber o que fazer. Sabe, senhor, amo muito esta mulher. Ela é mãe do
meu guri.
— Só tem
uma maneira de tu resolver isso, meu irmão.
— Pois então
fala de uma vez...
— Tu precisa
fazer o seguinte: ir até a Rua Jacuí, 668 e buscar um pacote. Feito
isso, vaí até a rua Aparecida 35 e entrega o pacote.
— Mas...mas... que pacote? pego com quem? entrego para quem? — e chegou
no ápice — Como isso vai me resolver com a Maria Luíza?
— Escute,
meu irmão: esta é sua missão e tu tem que preservar ela... faz como eu te
digo e tu terás o perdão.
— Mas só
quero a Maria Luíza, meu chapa!
— Pois terá
o perdão dela! – Deus sobressaltou-se, o tempo era pouco e tinha tantos
assuntos importantes para resolver. Depois de ofegar um
pouco, desligou.
— Alô, Deus?
— Mas era tarde demais.
De qualquer maneira, tinha sua missão.
Paulo Moisés nem ao menos ligou para casa dizendo que ia
se atrasar. Ninguém ia
sentir sua falta. A não ser que houvesse uma queda de energia
elétrica. Pois bem, pensou Paulo, Rua Jacuí, 668. Pegou o Serraria, atrolhado
de gente, aquele cheiro de sovaco, acotovelando-se, meninas de quatorze anos
cujos bebês batiam com as moleiras gentilmente nos aparos dos bancos.
Desceu e plantou-se na rua Jacuí com aquele ar destemido - não sentia
aquele clamor heróico desde que... sim, desde que desvirginara Maria Luíza.
Na grama macia e úmida, atrás da Igreja. Pensando bem, Deus sempre estivera
observando de perto aquela relação.
Subiu os degraus da modesta casa no número 668 e estalou o dedo contra
a campainha. A porta se abriu e surgiu uma menina ruiva e embriagada apoiando-se
nas paredes. “Vim buscar um pacote.”
A menina observava, as vezes sorria, voltava a ficar carrancuda, sem
forças, uma garrafa de cerveja escapava da mão. “Entra aí.”
Paulo foi percorrendo um corredor estreito. Na sala havia uma mulher
gorda, enfastiada sobre um divã de couro velho. No outro extremo, um homem
com feições de índio, recostado na parede, observando através do vão da janela.
Paulo parou na entrada da sala, havia um aroma de incenso no ar.
O índio virou os olhos suavemente e maneou levemente a cabeça, em cumprimento.
Paulo desferiu um sonoro “E aí?”. A ruiva passou por ele e puxou seu braço.
Atravessaram a sala e chegaram a um pequeno quarto bagunçado: o colchão estava
atravessado sobre a cama rebaixada. Roupas, inclusive as íntimas, espalhadas
pelo chão. A garota fechou a porta e soltou a garrafa no chão. Tinha uns grandes
olhos redondos que lhe davam uma expressão infantil. Usava uma camiseta branca
encolhida com os dizeres “baby boom”.
Paulo não sabia o que estava acontecendo. Só sentia este calor, que
se acirrava na medida em que a garota não usava sutiã e tinha os pés descalços.
Melhor nem citar a bermuda de jeans desfiada. Ela foi abaixando-se em direção
à cama e postou-se de quatro, arqueou o traseiro para trás – a espinha de
Paulo foi castigada por um sopro que desestabiliza – a garota enfiou a mão
sob a cama e puxou uma caixa velha de sapatos.
Sentou-se no chão com as pernas cruzadas, finalmente falou: “você bebe
cerveja?”
-
Claro.
-
Pegue a garrafa.
Paulo pegou. Foi aproximando-se
-
Sente-se aí, como é o seu nome?
-
Paulo.
-
Sério? Meu pai também se chama Paulo.
Devia ser o índio na sala, pensou Paulo – era uma maldita
família.
-
Escuta...
Ela não conseguia fixar seus olhos em Paulo. Uma espécie
de transe a possuíra.
Começara a pegar um embrulho no interior da caixa.
-
Escute, tenho um namorado. – Ela disse, e sorriu um pouco.
Paulo estava acocado no chão, estático.
-
Ele é bem mais velho que eu.
O que afinal Paulo tinha a ver com toda esta história? O
que Deus estava tentando
lhe ensinar naquele dia fatídico?
- E ele quer fazer aquilo... você sabe, comigo. Mas eu nunca fiz, você
sabe, aquilo... Gostaria que alguém me ensinasse.
Paulo perdeu um pouco o equilíbrio, como aquela vertigem que seguidamente
o atacava na construção.
-
Tu tem que me ensinar.
Passara a vida inteira esperando por um momento como aquele.
Maria Luíza, aos
seus quinze anos, era aquela garota, com a diferença que
fora ele, Paulo, ninguém mais, que primeiro tocara suas partes íntimas.
Mas o caso é que, independente do conteúdo do pacote que já esperava
nas mãos da garota ruiva, não podia desvirtuar sua missão.
-
Não posso fazer isso. Pode me entregar o pacote?
-
Posso. – Lhe passou o pacote, um sorriso afetado. Soluçou.
-
Sabe o que tem dentro?
-
Dois pacotes de rapé.
-
Rapé? – Paulo espantou-se – o que há de tão importante em
rapé?
A garota se encolhera, pediu a garrafa.
Tratou de escapulir agora que tinha o pacote. Cruzou a porta,
a sala, o corredor
e ganhou a rua, ofegante. Então tratou de chegar na Rua
Aparecida. O número 35 era a Quinta DP. O primeiro policial que cruzou em
seu caminho foi abordado:
-
Eu trouxe o pacote.
O homem o olhava com franca curiosidade.
-
Deixa eu ver.
Paulo entregou-lhe a trouxa, que foi aberta. Em seu interior,
dois embrulhos
estofados de pó branco.
-
Tá louco... – foram as últimas palavras do policial antes
que algemasse Paulo e o
jogasse em um cubículo fétido.
Paulo acordou, dolorido. Deviam ser seis horas da manhã agora. Lembrava-se
pouco da noite anterior. Levantou e pensou em ir até a porta do quarto de
Maria Luíza mas bateu de cara nas grades. Uma semana transformara-se em dois
dias: e a construção estaria pronta e poderia receber a sua grana. Aí poderia
comprar uma coisinha para agradar Maria Luíza e quem sabe ela desistia da
televisão. Devia ter conversado a respeito.
Naquele dia ainda foi transferido para o presídio central. Pediu que
alguém entrasse em contato com sua esposa, cujo apartamento não tinha telefone,
mas ninguém lhe dava muita atenção naquele lugar.
-
Paulo Moisés Silva? – Indagou o carcereiro para o farrapo.
-
Eu mesmo.
-
Tem um telefone pra ti, me segue. – Abriu a grade e Paulo
saiu, torto, às suas
costas. Atendeu o orelhão.
-
Alô? – Pigarreou um pouco, molestado.
-
Paulo?
-
Eu.
-
Sabe quem está falando?
-
Não.
-
É Deus. Estou muito feliz por ti, irmão.
-
Como assim? Eu tô na cadeia, velhinho, por tua causa!
-
Verdade.
-
O que tu quer agora, pedaço de merda?
-
Queria perguntar como tu tens passado, irmão.
-
De mal a pior. Me conta da Maria Luíza.
-
Quer saber o que ela está fazendo neste exato momento?
-
Quero.
-
Está assistindo televisão. Quer saber o que mais?
-
O que mais?
-
Não está sozinha.
-
Está com o meu guri.
-
Teu guri tá na casa da vizinha.
-
Mas então quem tá com ela?
-
O cabo Siqueira, tá na semana de folga, foi visitá-la agora
que tu tá aí.
-
Quem é ele?
-
O cabo Siqueira é um gurizão de vinte anos que visita tua
mulher.
-
Eu sabia que tinha outro magro!
-
E já faz tempo.
-
Quer uma dica, Paulo?
-
Quero.
-
Esquece esta Maria Luíza. Não passa de uma piranha. Depois
de oito anos e um
filho teu, não se deu nem ao trabalho de te visitar na cadeia.
-
Mas ela nem sabe que eu tô aqui! Tu faria o favor de contar
para ela?
Mas Deus já tinha desligado.