A doce e gentil atendente aproximou-se.
      Senhor, o seu vôo é o das 15 horas, correto?
    Sem dúvida. – Sorriu com resplandecência, um brilho súbito pulou da
obturação de platina.
         A moça sorriu de boa-fé, talvez a dentição cafona lhe causasse um certo humor de zombaria. O caso é que Rodrigues não era um homem belo. Se causava algo às mulheres, causava risadas. Nunca calorões.
      O vôo das 14 horas...
Rodrigues olhou a hora pairar no relógio do teto do aeroporto.
      Há um assento vago e como o vôo parte em poucos minutos...
Rodrigues podia voar à Austrália se quisesse, por conta do programa de milhas. Visto que seus sócios vazados tinham um escritório ostensivo em Curitiba, os vôos eram semanais. Agora podia esbanjar algum, com aquele dente de platina e aquele sorriso débil. Embarcou. Acomodou-se na poltrona que restava, ao lado de uma bela e sinuosa mulher e pensou em quem perdera aquele vôo – preso na trânsito – e com o vôo, aquela bela oportunidade. Virou-se para a mulher, de súbito, o avião devia estar recolhendo as rodas: “Com licença... imagino que seja...” Ela não lhe ouvia. Indicou a orelha com o dedo – Rodrigues não pôde deixar de reparar nos anéis multicor – ela dizia daquela maneira que nada podia dizer e nada podia ouvir dado que no seu labirinto podia ter até um minotauro. Rodrigues não era douto nas linguagens de sinais, poucas vezes ouvira falar em mímica. Ele mesmo nunca pronunciara esta palavra. Bem, o que importava é que estava voltando para casa e deixando Curitiba para trás e este itinerário lhe aprazia. Lembrou-se da bela e jovem atendente que disponibilizara o vôo devia ser nova no emprego, dado que as moças do aeroporto já o conheciam por doutor Rodrigues.
         Rodrigues tomou um gole de vermute. A surda-muda, porém bela, dava-se a leitura de periódicos. O sorriso de Rodrigues estava em sua boca, até que um tremor despertou os passageiros do vôo 947 e em seguida outro, mais forte. O sorriso se dissipava, a surda-muda emitia alguns grunhidos apavorados. Rodrigues olhou pela janela – turbulência? Um jato quente engoliu seu rosto e a dança abrasiva do fogo lhe devorou as entranhas em um momento. A redoma de fogo comprimiu-se para em seguida florescer com violência, os destroços cuspidos ao ares e tudo se desfez – nada mais voava, pedaços despencavam. Da terra firme, era um estupendo espetáculo. Da fachada do aeroporto – quando eu coloquei os pés para fora de meu táxi – pude ver o show em toda sua extensão. Por um instante os carros pararam, outros chocaram-se – as pessoas, emudecidas, olhavam para a bola de fogo nascer no céu como se houvesse chegado o final dos tempos – quando eu a via, uma enorme espiral de pensamentos me tomava, tão completamente distantes daquele episódio que o faziam parecer somente um pedaço da minha vida. Ou devo dizer minha nova vida?
 
 

DENTRE OS MORTOS
Filipe Ferreira

 
 
 
         Voltei para dentro do táxi e pedi que o homem me levasse até o Parque Municipal da Grajaúna. De lá, poderia caminhar alguns quilômetros e chegar antes de anoitecer à casa de Ivan Waskovski, este maldito filho de imigrantes que veio construir sua fortuna com o trabalho suado de nosso povo burro e comprar o passe da protagonistas de todos os meus sonhos, a senhorita Mirele.
         Mas agora era tarde para sonhar com Mirele através do desejo puro e solene de outrora – apenas a desejava tão ardentemente que pulsavam-me os músculos de todo o corpo, uma febre infantil me dominava – não podia mais ser um cavalheiro diante das barbáries que juntos faríamos na cama na seqüência, como animais, nada mais que isso. Nos amávamos de maneira grotesca, inumana, mas com um sentimento tão forte que me levaria à inconseqüência. Pois bem, o senhor consumidor de charutos Havana doutor ilustríssimo Ivan Waskovski não lhe daria o divórcio sem que pudesse privá-la de ver o filho abrindo para os olhos do povo seu problema alcóolico? Faria-a morder as rédeas com fúria, debatendo-se enquanto seu coração possui a mim, para não sofrer tais constrangimentos públicos que além de macular sua figura, tirar-lhe o emprego e o que restava de dignidade, lhe tirar o pequeno Vladimir, que nem idade tinha para saber o que significa “beber”? “Mirele” – eu havia dito na véspera - “Me vou de volta para Porto Alegre e te prometo que não retorno sem uma definição de como vamos agir para que possamos nos amar sem nenhum entrave.” Eu não chegara ao avião. Seus beijos molhados e o trânsito selvagem me haviam tirado do páreo da morte. Ou melhor – como se nada sobrasse – apenas cinzas – nada sobrava de meu corpo social – estou morto. No Brasil, na sua cidade ou na minha, diante da imperícia, do descuido e da fatalidade do destino, estou oficialmente morto.
         Caminhei cauteloso por entre as florescências e árvores do pátio de Ivan. Contornei a casa pela ladeira, segurando-me nas raízes, passei ao lado de sua piscina esquecida e bati com os punhos na porta de vidro. Havia pensado em Ivan aproximando-se. Havia pensado em Mirele aproximando-se. Mas Vladimir aproximou-se. Estava dentro de um pijama de urso, tinha um boneco de pano na mão – reconheceu-me daquela tarde no parque – como um amigo. Foi até a porta e abriu-me, surpreso. Contente por rever velhos amigos. “Onde está sua mãe? Onde está seu pai?”. Na sala de estar.
O homem mordia um charuto, indiferente, as faces voltadas para sua a janela. Mirele, ao longo do divã pernóstico do centro da sala assistia televisão, um ar morto, cansado. Pedi que o garoto fosse buscar seu telescópio no quarto – sabia na ocasião do natal sobre o telescópio – e quando ele bateu em retirada, contente, tranquei a porta às minhas costas e o isolei do que estava para acontecer.
Caminhei para dentro da sala. Mirele foi a primeira a perceber-me, incógnita, os olhos saltaram... Ivan já me vira em algumas ocasiões – principalmente no jantar de Renato Flores, há meio ano atrás. Alguns instantes de surpresa depois, Ivan sentiu algo e virou-se de seu trono – joguei meu punho contra sua boca, donde evadiu-se seu charuto. Sem reação – Ivan era um homem grande, porém solene – ele despencou para o lado e foi preciso outro safanão para que entrasse em combate. Como já partira do elemento surpresa, pude torcer seu braço e imobilizá-lo contra o encosto da cadeira de modo a bater sua face contra esta. Ivan amoleceu, resmungou qualquer coisa e desacordou.
— Daniel... – Mirele quase perdera as forças só imaginando o que aconteceria dali para frente. Me abraçou como se fosse seu herói, pronto a colocar fim à sua vida “miserável” de mulher “etiquetada”. Foi uma escrava das propriedades e da própria sociedade por tanto tempo que esqueceu como é o amar e viver em toda plenitude. A não ser quando estava bêbada, completamente, tropeçando pelos corredores da casa, caluniando o marido e os serviçais.
      Vim acabar com isso.
Ivan cometera muitos pecados ao longo de sua vida, muitos erros inapeláveis e
ocultos, tropeços e incongruências cimentadas com dinheiro. Havia apenas, de meu conhecimento, um erro que o levaria à derrocada, um erro básico e do qual não poderia fugir: a paixão por Mirele. Como fugir de algo assim? Subornar sua consciência não era uma opção, o coração não aceitava desculpas e presentes como prostitutas de luxo, viagens e outros caprichos, não, seu coração só desejava Mirele. Assim como o meu. Nenhum de nós pode fugir deste desígnio embora neste instante a maré esteja ao meu gosto. Não tenho nada a oferecer de concreto embora em mim ela enxergue a liberdade.
      O que vai fazer? – Ela soluçava, sem tirar o rosto do meu casaco.
      Vim para matá-lo. Perdi o avião e vim aqui para matá-lo, Mirele. Vi o avião
perdido decolar e explodir no ar... comigo dentro. Com minha identidade dentro. O que me faz um homem anônimo.
         — O que aconteceu com o avião? – desta vez me olhou, um pouco desestabilizada. Os longos cabelos platinados mantinham uma estranha estática e não queriam abandonar meu casaco.
      Não me pergunte. Leia nos noticiários amanhã.
      O que importa é que está livre... – Ela pegou rápido o espírito.
      Todas as coisas que imaginei fazer mas que a justiça me impedia. Como
livrá-la deste crápula...
         Seu lindo rosto rosado tornou-se pálido. Percebia a diferença entre nossos devaneios amorosos de depois do sexo sobre assassinato e o fato consolidado. Ou quase. Percebia uma pontada de terror em seus olhos azulados. Estes olhos que figuravam vermelhos em minha imaginação.
      Você vai matá-lo?
      Eu já disse que estou aqui para isso.
Agora, Mirele levou as mãos ao rosto – pensamentos do quilate de “e Vladimir?”
sobrevoaram sua consciência. Percebi que algo precisava ser feito.
      Você me ama, Mirele?
      Sim, eu amo. – Encarou-me, um pouco da força estabelecida.
      Sabe que isso pode acabar com nossos problemas?
      Mas como, Daniel, como faremos tal coisa? Estou aqui em casa... podem me
incriminar. Você teve alguma idéia sobre o que fazer?
      Tive uma idéia, a caminho daqui.
      Conte-me, depressa.
      Pois bem: mato-o. Como? Não sei. Você chama a polícia, diz que foi
assaltada, agredida... que Ivan reagiu ao bandido e teve sua lição... É simples. Torna-se uma viúva...
      Mas estarei intacta?
      Como?
      Aos policiais chegarem. Como escapei?
      Fostes violentada. – Dirigi um olhar decidido, completo de más intenções.
      Não tenho certeza, Daniel.
      Precisa ter. É perfeito. Ninguém poderá desconfiar de mim pois estarei
morto no acidente de horas atrás.
      Caso contrário seria o primeiro suspeito... – Ela disse, entre dentes.
      Sei disso. Mas mortos não andam por aí assassinando maridos.
Ela teve um lampejo de aprovação. Eu nunca imaginara que seria tão difícil
convencê-la de algo que desejara tão impunemente durante todos nossos encontros.
      Está certo, Daniel... Por nós.
      Tudo bem. Será duro para você mas em breve estaremos livres...
Não terminei de selar o monstruoso pacto e Ivan pulou sobre minhas costas
como um enorme felino, as unhas cravando-se em meus ombros, um rugido infernal ecoando por todos os lados.
      Assassinos! – Gritava, e em meu desatinado acuo percebi que Ivan
despertara muito antes. Ouvira sabe-se lá que trechos de nossa conversa. O fato é que debruçava-se sobre mim, usando agora uma das mãos para golpear-me de maneira um tanto desajeitada, mas com punhos enormes. Despenquei no chão lustrado, Mirele entrou em tal estado de pavor que refugiou-se de encontro à estante de livros, assistindo ao combate do marido e do amante.
         Embrenhamo-nos de maneira animal na luta de modo que, com aquele corpo pesado sobre mim, comecei a extingüir-me. Precisava de um pouco de distância e estaria em condições de usar um pouco da minha habilidade, que em ausência da força, me dava chances de não ser aniquilado por um Ivan humilhado, em uma espécie de transe assassina. O chão era escorregadio e assim escapuli por entre seus braços como uma cobra, sentando-me no chão e tentando agarrá-lo com as pernas, enquanto mantinha-o afastado a base de socos. Ivan ensaiou levantar-se e neste momento consegui fazer aquele corpo pesado desabar de volta ao meu jugo, na tentativa última de tirá-lo do páreo. Se aquele gigante (cada vez mais agigantava-se sobre mim, a possibilidade de sucumbir aumentava, era a revolta da traição – eis que não há nada mais possante) conseguisse pôr-se de pé enquanto eu permanecia no chão estaria definitivamente morto na seqüência. Com Ivan de quatro à minha frente, engatei as pernas em seu pescoço e aproximei-o, deslizando sua cabeça até à altura de minhas coxas – pronto – apoiei-me no chão e com um movimento brusco da tesoura formada por minhas pernas desloquei alguma coisa em seu pescoço. A resistência cessou instantaneamente, sua cabeça pendeu flácida e larguei o peso morto.
         Mirele permanecia estática, agora chorosa, naquele momento de arrependimento que poderia a partir dali sumir ou impregnar todo o resto de sua existência. Fui abraçá-la. Disse que agora que o pior havia sido sanado, precisávamos cuidar do resto.
      Você vai me possui agora?
Ela abriu a fronte e desnudou o peito – desta vez nossas fantasias pulariam
uma etapa importante. Era com uma doentia sensação de prazer que falávamos sobre a inexistência de Ivan quando fazíamos amor. E o fazíamos de tal maneira como imaginávamos os dementes e psicopatas fazerem – todo o tipo de fetiche estava incluído nisso. Normalmente Mirele se embriagava, mas agora estava sóbria e isso lhe causava um ar previdente que quase estragava a cópula. Então nos abraçamos por uma última vez de uma maneira afetuosa e em seguida seguimos o nosso ritual masoquista que incluía pancadas e escoriações. Fomos ao chão duro e logo estávamos completamente nus, tão absortos naquele êxtase novo que Mirele encostou os quadris no corpo morto do marido e sem ao menos perceber, ele virou parte da cena, embora eu não conseguisse olhar aqueles seus olhos – completamente esbugalhados, virados em nossa direção – sem ter calafrios e imaginar que havia um público interessado no espetáculo grotesco. Espanquei-a com dedicação – Mirele gritava, alucinada, cada vez mais alto – perdera todas os escrúpulos ao longo da noite e agora estava completamente entregue à irreversibilidade da situação.
         Então estagnamos: Mirele levantou com esforço e ligou para a polícia e faz o chamado com tal veracidade que tive o ímpeto de fugir naquele mesmo instante, alarmado. Gritava e chorava ajuda, rápido, meu marido está caído no chão, uma ambulância...pelo amor de Deus! Manteram-na na linha e percebi que a polícia já devia estar se aprontando para tomar o caminho da casa. Os detalhes pormenores, assim, não puderam ser resolvidos, mandei-lhe um beijo e tratei de pular a janela, fugindo como um verdadeiro larápio – sem levar nenhum bem comigo – deixando a cargo de Mirele a imaginação sobre o ladrão ter se evadido amedrontado após causar tal dano ao marido, sem levar nada, ou o ladrão ter levado uma quantidade de dinheiro que Ivan guardava no cofre? Ficava a seu encargo. Eu não sabia para onde fugir, mas fui pelo caminho que viera, em direção ao parque.
         Quando enfim chegara perto do centro da cidade – não tive oportunidade de ouvir sirenes – fui em busca de um motel, de preferência o pior que encontrasse – para refugiar-me enquanto o frisson estava no ápice. Não sabia muito bem o que fazer naquela situação e precisava de algum tempo absorto para decidir o rumo das coisas. O importante é que a pedra estava removida do caminho e de que eu era um tremendo idiota e estava completamente arruinado. Sim, de repente me senti constrangido por minha própria ignorância. O suor começou a brotar, uma súbita tontura prenunciou as dores de saber que eu deixara para trás o grandioso erro de um criminoso de primeira viagem. Inábil, amador, imperdoável... Ou fazia algo a respeito ou estava sumariamente condenado... Pensava naquela pequena figura frágil e seu telescópio, trancafiado na metade norte da mansão, sabendo perfeitamente quem estivera dentro de sua casa na noite em que o presumido ladrão matou seu pai. Mirele ignorara o fato de como eu entrara na casa, mesmo não ligando para o fato do filho estar em casa – e mesmo assim tendo sua consciência avisada sobre sua existência na hora decisória de findar a vida de Ivan. “Vladimir”. Sim, pobre Vladimir, órfão de um pai... talvez um pai dedicado! e de uma mão desnaturada. Vladimir era a chave para a minha condenação, fruto da tarde no parque em que brincáramos como pai e filho. Mas agora eu não podia parar no centro da cidade sabendo que o garoto estava lá, com a verdade na ponta da língua, provavelmente em prantos por ter sido abandonado na casa vazia. E ao mesmo tempo não podia voltar e nem ao mesmo sabia como resolver o problema. Estava impotente: enfiei-me em um quarto de hotel e no dia seguinte tentei contatar Mirele por um telefone público. Foi a noite mais pavorosa de minha vida. Todos os fantasmas que imaginara ter sepultado voltaram. A mãe e o pai pobres e desajustados, a irmã que vendia o corpo, as mazelas em ser um advogado corrupto e por fim a morte dramática da ex-mulher embaixo de um ônibus. Pensando bem não havia mais motivos para tentar manter alguma dignidade. Tudo que precisava era da tórrida paixão de Mirele e do silêncio de Vladimir.
         — Me conte tudo. – O telefone isolado e mesmo assim eu estava elétrico, cuidando todos os lados.
      Daniel... Foi horrível...
      A polícia engoliu?
      Sim... Apenas o delegado estava um pouco incrédulo... Não sei o que pode
acontecer...
      Citaram meu nome?
      Ainda não.
      E Vladimir, como está?
      Vladimir... Ele está bem, embora não tenha dito uma palavra depois de, por
descuido, alguém permitir que ele enxergasse o pai na maca da ambulância. Foi horrível, Daniel, não sei por quanto tempo isso vai durar...
      Eles já ouviram você e Vladimir bastante?
      A mim sim, Vladimir permaneceu calado, embora ninguém tenha vindo falar
com ele.
      Mirele, precisamos nos ver, de imediato.
      Mas como?
      Vou até aí.
      Você quer colocar tudo a perder? Daqui a pouco, aquele
delegado de que falei, o tal de Fagundes, vai voltar para conversarmos...
      Mas você está sozinha agora?
      Sim.
      É o que importa. Estarei aí em breve.
E desliguei, me dirigindo, em uma loucura insensata, a casa de Mirele. Usei do
mesmo expediente da noite anterior para chegar à sua janela e assim Mirele me recebeu. Me abraçou, soluçava. Começou a metralhar palavras desconexas e frases que não acabavam, emocionalmente implodida, tudo que podia fazer agora era me apertar com tal intensidade que incomodava-me. Beijei-a com paixão e com aquele seu hálito que dizia que ela não mantera-se sóbria depois dos policiais. Assim que os viu pelas costas, tratou de embriagar-se.
      Como vai conversar com o delegado desta maneira, Mirele?
Ela desconversou. Então deixei de censurá-la e encaminhei o grande assunto do
dia:
      Vladimir me viu aqui ontem a noite. Ele abriu a porta para mim.
Ela emudeceu. Sua aparência agora já era deplorável, aparência de quem não
dormia, uma louca ansiedade nos olhos, a mesma roupa de ontem. Percebia a gravidade de ter o filho como testemunha. Seu próximo passo seria colocar na balança minha figura e a de seu filho. Eu sabia de antemão que neste caso perderia minha realeza de amante.
         — Preciso conversar com Vladimir. – Eu disse, não imaginando qual seria a reação a tal evidência de que eu era um perigo à saúde de seu filho. E mais que deixei transparecer uma urgência violenta no rosto – Mirele percebeu e neste instante bateram à porta.
      O delegado Fagundes! – Ela disse, assustada, começou a circular.
      Vou subir... – Fazendo menção de ir em busca do quarto de Vladimir.
      Não! – Mas era tarde. Subi correndo e Mirele foi à porta, atordoada.
Tateei o corredor entrando em dois banheiros diferentes e uma espécie de escritório, até que encontrei a porta fechada de Vladimir. Ao entrar, deparei-me com ele, na cama, dormia. Dormia de modo singelo, agarrado a um urso feio de pelúcia, recolhido à posição fetal. Meus passos foram aproximando-me de seus corpinho frágil: o silêncio era o que vinha do resto da casa. Parei frente a cama e agarrei uma almofada verde do chão, com determinação. Estava pronto: loucura, chegara ao cume do antagonismo, não poderia ter Mirele me odiando... mas, de qualquer maneira, não podia ter Mirele me amando por detrás das grades. Fatalismo, procuraria outro lugar, outra mulher, mas ao mesmo tempo Mirele, com o pequeno Vladimir morto nos braços, clamaria aos céus meu nome e toda a verdade haveria de desagüar no distrito policial. Mas não podia fazê-lo! Sem o amor de Mirele nada mais teria sentido, muito menos os atos extremos que já havia trespassado, tudo perderia seu mérito e me tornaria apenas um homicida. De qualquer maneira, meus braços aproximavam aquela almofada de seu rosto, seria rápido, indolor para nós dois. Sua respiração batia na almofada agora, estavam próximos, sua resistência seria breve e em um instante este era todo pensamento que me tomava: parei, recuei e larguei a arma.
Ouvi passos rápidos que subiam as escadas. Mirele não agüentara a tensão e o ressoar de vários passos era a denúncia do delegado. Escondia-me, aflito, em algum lugar. Adentrei um armário na parede e de lá de dentro só vozes agora ia ouvir. Entraram correndo.
      O que houve, senhorita? – Veio a voz incógnita do delegado.
      Nada, queria ver se meu filho está bem.
O delegado ficou quieto. O silêncio reinou. Ele devia estar estranhando. Mirele
olhou com discrição para os lados e não me viu. Mas não poderia mais abandonar o quarto.
      Eu não gostaria de falar agora, senhor Fagundes.
      Tudo bem, mas preciso que me procure, você sabe onde. E leve seu filho. O
mais breve possível. Se pudesse, amanhã pela manhã.
      Tudo bem. Me desculpe mas agora estou sem condições para isso.
E assim dispensou o delegado. Deu uma última verificada, tomou o filho nos
braços e foi acompanhar o delegado na porta. Assim que este saiu, gritei às suas costas:
      Como pôde pensar que eu faria algo assim?
Mirele enrubesceu: — O que, faria o que? O que você ia fazer?
      Queria conversar com seu filho, Mirele! Está louca! Precisamos fugir daqui!
      Não! Não posso ausentar-me de maneira alguma. E se quer conversar com
Vladimir, agora é um bom momento.
         Vladimir despertou e pareceu me olhar com um interesse acentuado.
      Lembra-se dele? – Inquiriu Mirele.
Vladimir fez que sim com a cabeça.
      Quando você viu ele? – Veio ela de novo.
Esta ele não respondeu. Comecei a me desconcentrar, as mãos não paravam
quietas. Sua vozinha frágil então soltou-se: — Ontem.
         Por alguns momentos notava traços de rancor naquele “ontem” e isso perturbara-me deveras. Encarei mãe e filho com agitação.
      O que vamos fazer a respeito, Mirele?
      Vladimir, ele não esteve aqui ontem.
      Não seja tonta, mulher, ele não tem idade para aceitar uma sugestão assim.
Crianças só mentem quando lhes convém. Não pense que os policiais vão ser diplomáticos com ele. Ou oferecem balas e chocolates ou contam histórias de fantasmas que vão fazer seu mijo molhar a barra das calças. Em ambos os casos você sabe como termina a história.
         — Então me diga, Daniel! Me diga – e desandou a chorar – o que podemos fazer agora? Como você não pensou nisso antes?
      Me desculpe mas não faço isto todos finais de semana...
Neste exato momento Vladimir entrou na dança e agora chorava copiosamente.
      Deixe-me ficar com ele.
      O quê?
      Vou ficar com Vladimir enquanto isto não se resolver. Você diz que não
queria este tipo de pressão na criança e que ele foi passar os tempos na casa de sua irmã, no Rio.
         Mirele teve um lampejo: — Então mando-o mesmo para ficar com Marla.
         Paramos. Eu não conseguia decidir se era boa ou má idéia. No meio tempo em que analisávamos o caso, Vladimir resmungava que não queria ir para a casa da tia Marla. Mas estava decidido, Mirele iluminara-se com a idéia, tanto que, sorrindo, uma vontade aniquiladora de agarrá-la e cobri-la de beijos me tomou.
      Vou ligar para Marla.
O fez. Foi breve. O menino estaria embarcando no mesmo dia, com uma
urgência incomum. Mirele terminou de arrumar uma pequena malinha e disse-me, eu esperava no pé da escada:
      Fique aqui, escondido na casa, vou levá-lo ao aeroporto e volto em breve.
O desespero da criança aumentava, no colo de sua mãe, que não lhe
despreendia nenhuma atenção. Saíram. Observei, pela janela, ela entrar no carro e sumir ladeira abaixo pela trilha de pedra.
         Estava disposto a esperar, cuidadosamente perto das janelas, com todas as luzes apagadas assim que a noite caiu. Mirele não voltava faziam sete horas e o era impossível que não tivesse despachado o garoto durante este tempo. Começava a me cercar de dúvidas e uma pitada de medo de algo completamente desconhecido e o que mais me atemorizava: estar sozinha, definitivamente, naquela empreitada.
         Deram meia-noite e eu já perdera as esperanças. A casa estava silenciosa, imersa na escuridão. Eu caminhava ao lado de todas janelas, cheguei a procurar uma arma, mas Ivan não era um homem previdente neste caso. Tudo que pude fazer foi ficar de olho – o que não adiantava – no momento em que ruídos denunciaram algo misterioso acontecendo dentro da casa.
         Conhecia pouco o lugar – não como deveria – o necessário para estar no escuro e pronto para uma investida inimiga da qual eu ainda não podia precisar a natureza. Então me recolhi junto a janela, usando a luz da noite que adentrava a sala, para distingüir logo a frente a quantidade de movimento – estava entre as cortinas, certo da minha invisibilidade. Os ruídos logo se tornaram passos. E eram vários passos. Eu diria que três seres caminhavam, agora, dentro daquela casa. Os passos estavam mutados em ecos o que me impossibilitava de saber de onde vinham. Podiam estar vindo de lugares diferentes. Um, do andar de cima, outro, do corredor da cozinha, outro, do mesmo lugar por onde eu entrara na noite anterior. De qualquer maneira era quase certo que todos convergiam para a sala, meu covil.
         Era muito cedo para acusar Mirele de traição e breve podia ser muito tarde para saber toda a verdade. Mas como policiais não invadiam casas como larápios – para isso eles tinham mandatos e os usavam durante o dia, eu seus horários de expediente – a única opção era assassinos, algo do gênero, homens com um único propósito: acabar com a evidência mais palpável de que Mirele assistira com passividade a morte de Ivan. Acabar não, pois a evidência já estava acabada. Morto, eu já estava e partindo de minha inexistência, que diferença faria não respirar?
         Por alguns instantes só um dos invasores continuou sua espreita, ou outros cessaram. Os passos se aproximaram e a porta da sala – uma imensa porta de madeira de lei, pesadíssima – rangiu sôfrega e eu não estava mais sozinho. Os passos se aproximavam, cada vez mais ao meu lado – a luminância da lua nada ajudara até agora – e os passos pararam. Mas agora eu não precisava dos passos – podia ouvir sua respiração. Era longa, calma, fria. Era terrivelmente assustadora. Eu estava gelado e percebi que respirava ofegante. Percebi que minha respiração havia sido percebida. O jogo invertia-se e assim, os outros dois invasores também adentraram a sala, a passos largos. E em seguida, pararam.
         Agora éramos quatro na sala e se a idéia daqueles homens era me causar um tremendo mal-estar, tinham conseguido algo além. Mesmo que intentasse reagir ao que se seguiria, o tremor súbito daquela intriga me tirara previamente de combate. Eu não tinha direito a reagir – estava morto e os matadores contratados por Mirele Waskovski tinham a missão diplomática de oficializar o acontecimento. Acabar com aquele incômodo passado e com a idéia do filho acossado. E eu nunca havia me sentido tão inerme como agora. Amava minha algoz – de situação – com uma naturalidade animal e a desejava tanto ao invés da morte! Havia tornado-me uma escória do mais baixo escalão – sabia, já o era – para satisfazer nossos desejos secretos e pactuar uma união perfeita e milionária.
         Tudo que precisava agora era desabafar.
         — Quem são vocês? – Acabei então com aquilo, manifestava-me contra as forças ocultas.
         Tardou a responderem, mas por fim pude respirar com mais tranqüilidade – mesmo sem motivo:
      Aí está...
      Acendam a luz por favor, gostaria de ver seus rostos antes de me matarem.
      Vamos ter que fazer isto de qualquer maneira, como espera que o
acertemos?
Era tudo como eu imaginava. Mirele, a caminho do aeroporto... Com seus
milhões em cheques e cartões de crédito, a sobriedade, o filho acuado. Vai então colocar fim a prova de que pôde impedir um assassinato. Por comodidade vai encontrar outro amante, agora que tem uma fortuna não precisa do resto.
         Então as luzes se acendem. São três homens ordinários, dois brancos e um mestiço, em calças jeans e camisetas surradas.
      Quanto eu valho?
      O quê? – O mais alto, com uma arma na mão, pronto para realizar o serviço
com rapidez, apontava direto em minha testa.
      Quando vocês receberam para fazer este serviço?
      O que te interessa? – A primeira vez que o mestiço falava. Reconheci a voz
no mesmo instante. O delegado que não recordo o nome – não é novidade que o salário de delegado – mesmo sendo alto – não faça um escroto ambicionar uns quinhentos mil reais a mais em sua conta. Mas não quis tocar no assunto.
         — Gostaria de saber meu preço antes de morrer. É humano, vocês não podem me negar algo assim.
      Trezentos mil.
Pensei e cheguei a sorrir: — Muito bem, novecentos... Nada mal para um
homem que já está morto.
      Trezentos. Cem mil para cada um.— Voltou-se o mestiço, enfurecido.
      Só isso! – Sobressaltei-me. – É uma vergonha.
A esta altura todos já apontavam para mim e o que os impedia era a
possibilidade de uma negociação. Mas como se sabe, eu não tinha condição nenhuma de comprar a minha vida. Não juntara, ao longo da vida, dinheiro suficiente que me valesse. O mestiço sacudiu os ombros, então se aproximou um pouco. Ergüeu bem a arma em direção ao meu rosto e perguntou, em tom inocente, quase sobrenatural:
      Mais alguma coisa?
      Entre vocês há algum amante de Mirele?
Reviraram as cabeças em não. Mirele era uma santa – podia morrer por suas
mãos, desde que a traição carnal não houvesse se concretizado. Neste instante a perdoei: tudo que é – uma garota amedrontada que desconhece o amor e tem o álcool ao invés do sexo. Como eu só tinha ao último como refúgio, lamentava o meu abandono.
         O delegado firmou bem a arma, seu olho esquerdo se fechou de maneira caricata e ele atirou.