Desejos De Uma Vida
Édnei Pedroso

 
Desejo. Esta palavra se faz presente de minuto a minuto na vida do homem. Mais do que aspiração, ambição, apetite, anseio ou cobiça, desejar faz parte da existência e da condição humana.
Quando nasci, o mundo virou de ponta cabeça. O preto virou branco. O quente virou frio. A água virou ar, queimando meus pulmões novos e o tabefe daquele homem de branco no meu traseiro foi o fim da picada. Meu primeiro desejo foi voltar para o meu universo particular e como não havia nenhum gênio nas proximidades, isso não aconteceu. Meu segundo desejo foi o de ser abraçado, pois estava frio e o calor humano é sempre importante nestas horas, principalmente o primeiro. Tive de me contentar com um cobertor azul esquisito. Quando descobri que tinha estômago, desejei algo para comer. Ao menos nesse ponto, as enfermeiras foram fenomenais e, de quebra, meu segundo desejo também foi realizado, pois fui levado aos braços de minha mãe.
Tinha três anos quando passeava com meus pais e passamos por uma loja de brinquedos. Ao ver aquele carrinho de rodas grandes, tive o meu primeiro desejo material. Eu queria aquele carro e chorei muito para ganhá-lo, mas consegui. Ele era meu. Ninguém brincava ou sequer chegava perto, mas a fascinação só durou o tempo de surgir um novo desejo: Commandos em Ação, com armas em miniaturas e creme de camuflagem de verdade.
Os desejos afloraram de vez quando comecei a estudar. Desejei materiais escolares coloridos. Desejei fazer amigos, esperar pelo recreio, conhecer aquela garota dentuça que sentava na janela. No fim do primeiro ano, desejei que as férias fossem eternas e, no fim delas, desejei que se iniciassem logo as aulas. Desejei que todas as aulas fossem de Educação Física, que me escolhessem para jogar futebol, mesmo que eu sempre tenha sido um fracasso com uma bola nos pés. Quando vi a menina do ano passado, desejei dizer à ela o quanto eu a amava, mesmo que eu não soubesse bulhufas sobre o amor ou fosse muito pirralho para tanto. Ao formar o grupo de amigos de fé, irmãos, camaradas, desejei brincar, pular, correr e me divertir com eles. Desejei que os dias demorassem a passar, que os almoços não existissem e que minha mãe não fosse tão chata nestas horas.
Ao chegar na adolescência, tive os desejos mais estranhos e estúpidos que já tivera até ali. Desejei fugir de casa, gritar com meus pais. Desejei roupas da hora, que saíam de moda a cada comercial novo. Desejei que tudo fosse para o inferno, que tudo fosse perfeito conforme a minha vontade. Desejei usar drogas, só pra ver como é que era. Meu corpo estava mudando e, com isso, veio minha primeira barba. Deus, como eu desejei um barbeador. Meus instintos animais estavam a flor da pele e era só uma garota bonita passar que eu desejava calças mais largas para não passar vergonha. Eu desejava ela. Eu desejava tê-la. Eu desejava vê-la nua ou de um ângulo mais obsceno. Qualquer mulher de pernas torneadas era motivo de fissura. Foi quando surgiram os primeiros romances e eu me contentava apenas em desejar um olhar ou um sorriso. Desejava que ela viesse na minha direção e me perguntasse as horas. Era um sonho dourado. Algo para me contentar até o dia seguinte. Desejei muito convidá-la para sair, mas nunca tive um bom papo para isso. Durante este período, a coragem foi um desejo incessante. Desejei ter coragem de mudar, de dar opiniões nas horas em que considerava certas, de enfrentar o valentão da turma, de encarar um body-jump, de entregar flores no aniversário da musa do colégio, de vandalizar as ruas, ou seja, desejei não ser eu mesmo muitas e muitas vezes. Quando o meu melhor amigo foi morto em um assalto, desejei vingança. Desejei que ele recussitasse. Desejei que a violência tivesse fim ou que não fosse tão banal. Desejei, pela segunda vez, não Ter nascido nesse mundo cão.
Os estudos findaram com a falta de dinheiro. Desejei um emprego bem remunerado e consegui ser um assistente de obras. Desejei uma bolada, uma combinação perfeita da Mega-Sena, várias e várias garrafas d’água nos infindáveis dias quentes. Desejei que minhas mãos calejadas parassem de doer.
Conheci uma mulher de beleza simples e caráter cativante e desejei conhecê-la um pouco mais. Desejei, por fim, casar-me com ela e começamos a morar na mesma casa. Ah, como eram bons aqueles tempos. Desejei que cada minuto ao lado dela fosse uma vida inteira de felicidade plena. Desejei beijá-la a cada segundo, abraçá-la com tanto amor que nada pudesse nos separar. Desejei o paraíso. Desejei ser pai e tivemos duas filhas lindas. Desejei dar tudo do bom e do melhor para elas, mas o tal gênio não estava por perto. Passamos por trancos e barrancos e vieram as discussões. Desejei gritar, sair do sério, bater com a cabeça na parede, enfim, extravasar. Muitas vezes, fiz a maioria dessas coisas e desejei não ter feito, pois servia apenas para magoar a todos. Tivemos momentos bons e ruins durante a vida toda, mesmo tendo desejado apenas os bons. Nossas filhas cresceram e, como desejei, foram felizes em suas profissões, seus estudos e seus amores. Constituíram família e, quando desejei netos, fomos presenteados com dois. Desejei ser feliz e finalmente o era.   
O tempo passou e eu já não desejava mais com tanta intensidade. Estávamos velhos, muito velhos. Minha esposa adoeceu e desejei que ela voltasse para casa. Desejei que ela fosse aquela jovem forte novamente, que me impulsionava pra frente, mesmo quando eu insistia em dar marcha ré. Desejei ver aquele sorriso maravilhoso, aquele olhar vivo, mas isso não aconteceu e ela faleceu. Desejei que tudo não passasse de um maldito pesadelo e foi no que se transformou o que restava na minha vida. Pela primeira vez, desejei morrer, sumir do mapa, acompanhar o meu amor.
Os anos seguintes foram de desalento e custaram a passar, embora eu desejasse o contrário. Quando minhas filhas me colocaram em um asilo, desejei morrer pela segunda vez. Desejei um sentido para toda essa loucura que é a vida e não encontrei nenhum. Desejei muito poder me agarrar em alguém, encontrar um porto seguro que não estivesse vestido de branco. Desejei fazer amigos naquele pequeno mundo. Quando descobri que haviam tabuleiros de damas, desejei muito ter peças de xadrez. Ao servirem as sopas e papinhas, desejei um suculento filé, mesmo que meus dentes não agüentassem o tranco. Era estranho, pois cansei de desejar voltar à infância e, naquele momento, só sabia desejar um banheiro ou uma frauda geriátrica. Desejava controlar meu sistema digestivo, mas não conseguia. Comecei a ter acessos de frio lancinantes e desejei qualquer cobertor azul esquisito que estivesse disponível. Não desejava mais o calor humano, pois era difícil de se encontrar isso naquelas paredes brancas. As paredes. Passei a vida toda empilhando tijolos para construir paredes como aquelas e, naquela hora, elas me eram as únicas companheiras.
Nada me restava quando vi a luz no fim do túnel. Olhei para trás e vi que o que mais fiz durante a vida foi desejar. Desejei de tudo, desde pudim de leite até paz na Terra aos homens de boa vontade, mas o desejo que realmente importou foi o último que tive antes de morrer: desejei encontrar minha esposa, meus pais e meus amigos no fim da estrada. Ao vê-los acenando e sorrindo para mim e tendo minha amada novamente aos meus braços, não tive a menor dúvida...
...de que vale a pena viver.  
 
 
 
 
 
FIM.