O JOGUETE
Filipe Ferreira
Acordei de um sonho com ovelhas mecânicas e tinha nascido de parto normal. As coisas estavam ficando mais estranhas a medida que me apaixonava por Iriade e Iriade, por mim. Não que ela não estivesse programada para isso, mas eu não estava programado para nada.
Acordei deitado em um bolo de feno com um cavalo relinchando na porta do galpão, pronto para entrar. Sentia-me mole da surra da noite anterior e perdido, sem um tostão e sem ninguém no mundo.
Acordei em uma casa que não era a minha, abandonada, com os tiros de canhão pipocando lá fora. Assim como a maioria dos intelectuais que fumavam charuto nas reuniões de Domingo, eu havia deserdado e agora me portava como uma sombra.
Acordei finalmente pensando ter estado no futuro, na miséria e na guerra, coisas talvez não diferentes, esperem, e cinco minutos depois, durante o banho, havia me esquecido de todas elas. Penteei o cabelo com a mão, passei um gel nas axilas. Desdobrei a calça mais frisada que tinha, cinza, desci o paletó da guarda do armário e comi duas torradas.
Já eu, acordei cansada ao lado de um estranho barbado, cobri minha nudez com desatino, calcei os degraus do estúdio até o lavabo e me lavei como se livrasse de uma doença contagiosa. Minha cabeça latejava e ainda podia sentir o gosto azedo que fermentava em minha boca. Chamaram pelo nome Manuela do outro lado do galpão, mas me chamava Ariana. Entrei em um vestido longo de alças com destreza e peguei minha bolsa, saindo furtiva do apartamento.
Entrei no elevador com minha maleta de couro de jacaré e o elevador parou no quinto andar, quando entrou uma alemã com os cabelos escorridos pingando em seu vestido vermelho amarrotado. Me olhou com timidez e vergonha, baixou os olhos e um tranco a assustou. A luz começou a morrer e de meia-luz fomos para luz nenhuma no elevador. Estava tudo parado.
-Que merda.
Não me pronunciei, o que não impedia de achar aquilo um inconveniente. Ela então calou-se por durante um interminável minuto.
Foram-se mais dois, três minutos e a temperatura gradualmente subiu até um ponto onde minha testa gotejava e minha gravata tinha de ser alargada.
-Você não vai dizer alguma coisa? Tem alguma idéia para nos tirar daqui?
Comecei a ficar nervosa, tensa, mais por causa do silêncio e da indiferença do homem da pasta. Um desconhecido, como não poderia deixar de ser, em um prédio desconhecido.
-Alô? O senhor pode falar comigo por favor?
Nada ainda. Então algo tocou meu braço e um grunhido assustador atravessou aquela caixa negra que era o elevador. Não me contive e solucei, pedi que por favor o homem falasse comigo, mas tudo que ele fazia era segurar meu braço. Estou morta, pensei, sua mão me apertava com imprudência, era um louco, um assassino, vai abusar de mim, quero sair.
-Por favor, fale comigo!
Pegou meu outro braço e me deu uma sacudida, me soltou, recuei, recostei-me na parede e fui descendo, gelada, até o chão. Abraçei as pernas e joelhos e arregalei os olhos em um esforço inútil de enxergar alguma coisa.
Então ouvi vozes lá fora, gritei por ajuda, as vozes foram sumindo, os passos nos degraus, descendo, mas voltem, estou presa no elevador, não estou sozinha, este homem não fala comigo, agora nem mais sei se ele está aqui.
E a ponta de um pé tocou a ponta do meu. Logo a sua mão tocou o meu joelho e me encolhi mais e mais.
-Pare com isso, não é engraçado, fale comigo, estou com medo, quem é você?
A mão se aproximou mais e mais e pareceu tocar meu cabelo, não sei se era impressão, o caso é que fiquei estática, sentindo aquela respiração calma cada vez mais perto de mim, me cercando, insinuando-se, provocando-me.
-Por favor, por favor, fale comigo.
Já faziam uns dez minutos de falta de luz e os sons eram cada vez mais distantes.
-Está bem.
-O quê, o quê?
-Vou falar contigo então, o que quer saber?
-Deus do céu, como você me assustou! Por que diabos não falava?
-Não sou muito de falar.
-Cristo...
Acomodei-me no canto do elevador, depois de largar a pasta e enxugar a fronte.
-Sou o Murilo e você?
-Ariana. Mas por que você não falava? Eu pedia por favor...
Silêncio.
-Vai começar de novo com isto? Você mora neste prédio?
-Moro sim.
-E isto é frequente?
-As quedas de luz sim, ficar preso no elevador, não.
-E como vamos sair daqui?
...
-Qual o seu problema? Por que não responde?
-Estou pensando em como vamos sair daqui.
-E?
-E daí que vamos esperar a luz voltar. Você tem pressa?
-É claro. De qualquer maneira, você que parece ter mais pressa do que eu.
-Não se engane com uma gravata e uma pasta, não sou o que pareço ser.
-Como assim?
-Não sou um advogado, um vendedor ou administrador.
-Eu não pensei que fosse...
-Mas cogitou que eu estaria com pressa.
-Pareceu.
-E estava com pressa.
-Não está mais?
-Já estava atrasado antes.
...
-E você? Nunca a vi aqui.
-Não moro aqui.
-Sim, sim. Em que apartamento estava?
-Não é da sua conta.
-Estava trabalhando?
-Como ousa insinuar isto?
-Eu sei que estava.
-Cristo. Você é um idiota completo, sabia?
-Devo considerar isto um elogio? Um idiota completo pode ser um idiota, mas é completo.
-Não acredito em você...E você, onde estava indo?
-Na audiência do meu divórcio. Você não é casada, certo?
-Por que diz isto com tanta certeza?
-Por que acho que não é. Simples.
-E o que o leva a pensar que não sou?
-Uma mulher com o vestido, muito curto, amarrotado, saindo de um apartamento que não é o seu, de manhã cedo, com pressa e cabelo molhado é uma prostituta.
-Vá para o inferno!
-Não concorda?
-Vá para o inferno! Agora quero que cale esta maldita boca e não abra mais.
...
Então as vozes se pronunciam mais uma vez e um feixe de lanterna atravessa o teto do elevador. A garota se joga contra a porta e grita que está ali, que precisa de ajuda, mas então as vozes voltam a sumir e ela se ajeita novamente em sua posição, conformada. Sussura mais uma vez "maldito" e talvez esteja chorando. Uma prostituta decente, talvez, como minha ex-esposa jamais seria: Decente.
Tenho raiva, tenho medo, estou aflita, acuada, agredida aqui neste canto e uma manhã de Segunda-feira, como se o mundo não mais existisse lá fora, em uma jaula, uma prisão horrenda com a escória do mundo, um homem amargo, estúpido, revoltado, uma bomba-relógio. Preciso me concentrar, me acalmar, ficar em silêncio, ignorar este tacanha, esperar.
-Por que você não pensa em uma maneira de nos tirar daqui, seu idiota?
...
-Já faz uns quinze minutos que estamos aqui e ninguém vem nos ajudar, que espécie de prédio é este?
...
-Você pode falar comigo agora?
...
-Cristo. Diga alguma coisa, pode até me xingar de novo.
...
-Por favor!
-Está bem.
-Ah, que situação embaraçosa, por que você não se porta como gente?
-O que espera que eu faça?
-Fale comigo, não me ofenda, pare com estes jogos infantis, me trate direito!
-Tudo bem. Vou te dizer o que vi quando você entrou no elevador, certo?
-Como assim?
-Como você é.
-...certo.
-Você é loira natural, deve ter nascido com os cabelos branquinhos, sua pele é mais clara que o leite, você não usa maquilagem nela pois sua pele é sensível demais e fica irritada.
-É sim, mais ou menos isso. Mas por que está falando estas coisas?
-Estamos conversando, não estamos?
-Sim.
-Pois então. Bem, você tem olhos verdes, bem claros, uma coroa marcada no olho, como se fosse uma névoa bem definida, quase uma catarata.
-O oftalmologista disse que é falta de pigmentação.
-Fica bonito assim, você não devia se preocupar.
-Mas faz meu olho ficar muito sensível, tenho de estar sempre de óculos escuros.
-Vamos falar agora sobre o seu corpo.
-Não, você está indo longe demais.
-Tudo bem.
...
-Tá certo, fale do meu corpo então!
-Tem ombros largos, o que não é muito comum nas mulheres, mas que supõe uma ossatura definida por exercícios contínuos durante a infância.
-Eu fazia ginástica olímpica quando era pequena. Até os onze anos.
-Pois é. Isto te proporcionou uma estatura invejável, um pescoço bem torneado e um busto rígido mas pequeno, o que significa seios de boa circunferência mas não muito volumosos.
-Por que está falando estas coisas todas?
-Porque me dá prazer. E se me disser que você não gosta de ouvir sobre seu corpo, eu páro agora.
-Não, não.
-Sua barriga já foi mais tímida, adentrando as costelas, mas agora há um volumezinho sensual no início da cintura, o que me diz que ou você parou com as ginásticas, teoria que já se perde quando eu falar de suas pernas, ou você tem bebido além da conta.
-Você é bom nisso.
-Sou sim.
-Como eu dizia, as pernas longas, as batatas volumosas, um joelho com os nervos a mostra, deve ter um pé pequeno e fino, te diz respeito a herança genética de teus ancestrais e te deixa com complexo de castração. Mas isto é positivo. Com coxas polpudas como estas...
-O que está fazendo?
-Experimentando um pouco as minhas teorias...
-Tire esta mão daí antes que eu lhe dê um tapa.
-Não se preocupe. Não estou fazendo isto porque achava que você era uma prostituta. Sei que é uma mulher solitária, não exatamente bonita, mas desejável, e que aprecia agora o nosso encontro casual.
-Ai, isso não devia estar acontecendo.
-Mas eu falava disso aqui, seus glúteos definidos, carnudos, tesos agora que me sentem...
Um rangido e a luz estoura dentro do elevador. Vejo Ariana de olhos fechados, de perfil para mim, com as mãos sobre os seios, acordando de um transe. Mantenho a mão em seu traseiro por mais dez segundos e finalmente prossigo a retirada. O elevador volta a descer e ela se esquiva com leveza, os olhos agora para o teto, me evitando. Sua pele muito clara se embota de sangue da vergonha e o elevador chega ao térreo. Ela soluça mais uma vez e abro a porta, ela para, não sabe muito o que fazer, estou às suas costas.
-Me dá teu telefone, garota.
Ela vira, os olhos para o chão, tenta sorrir um pouco, como uma criança arteira. Tiro uma caneta do bolso do paletó, resoluto, a observo com seriedade clínica.
-Fala.
-É 3241, cinco sete, dois dois.
-Anotei. Te ligo uma hora destas para continuarmos nossa conversa.
Ela sobe a fronte, sorri um pouco, desconsolado, ainda perdida, e por fim, antes de finalmente se retirar pelo saguão e sumir na rua e depois na esquina.
-Mas liga mesmo.