PENSAMENTOS DE NATAL
Alex Panato

 
Amberlin era uma pobre criança infeliz. O pobre se referia apenas a sentimentos bons, não a dinheiro, pois isto não é relevante para esta história. Interessa que a garota, ou garotinha, se preferirem, era insatisfeita com sua vida, desde sua tenra infância. Família de merda, ensinou a criança a tomar calmantes desde quando era impossível se lembrar; antes dos cinco já estava no Prozac; fácil notar que nunca mais poderia ser alguém completa. Concordas?
          Oh, tristes datas festivas, onde todo o povo se reune em torno de fatos inexistentes, em comemorações irrelevantes; fingem acreditar no implausível e fazem odes a isto. Por que obrigar o pobre papai Noel a entregar os malditos presentes, e não os pais? Por que o mito? Por que apenas uma pessoa tem de fazer o natal?
          Embora desdenhasse a felicidade alheia, por vezes até odiasse o faz de conta dos sorrisos e tudo mais, era com indiferença que Amberlin via o comportamento dos parentes a sua volta, ou das pessoas na televisão, ou das crianças brincando na rua. Não era nem uma, nem duas vezes que os vizinhos convidavam-na para sair, mas era seu claustro um catalisador para sua agonia, e já não mais, em seus oito anos, podia-se imaginar sem ela; a intoxicava, mas não haveria Amberlin sem ela, talvez apenas uma outra criança.
          Ah, Natal infeliz, dos eventos pagãos sobrepujando o fundo religioso; data hipócrita! Como imaginá-lo sem o velho gordo; sem seus gritos graves e pausados; sem as crianças em volta a berrar eufóricas ou temerosas de seu julgamento. Ah, velho safado, que vem jantar todas as noites de natal na minha casa, trazer presentes idiotas e nos forçar a parecer amistosos, irreais. Lá estava ele, vindo agora em sua direção, na direção da garotinha. Por que o ódio ao velho quando ele procura a pegar no colo? Por que lhe arrancar a barba?
          Sim, a barba no chão, a cara do vizinho desnuda e o olhar incrédulo das crianças em volta. Onde está o mito agora? Onde está o burburim das crianças; onde estão os seus olhares? Onde está o mundo que estava ali instantes atrás? Onde está o ódio, a indiferença, a depressão? Se Amberlin não fosse uma criança, mas um adulta com maturidade para trabalhar diversos conceitos do mundo de gente grande, talvez pudesse escrever nas páginas de seu diário algo mais ou menos assim:
 
"Querido diário,
          Hoje eu descobri que Papai Noel não existe e isto não ocorreu por uma dedução lógica, ou por algo que vi ou escutei falarem. Isto aconteceu, sim, por um gesto meu. Talvez eu devesse me sentir bem por isso, por algo que fiz desmistificar uma lenda; mostrar aos meus amigos a verdade. Mas a impressão que tenho é que eu ainda não estava pronta para saber determinadas coisas, entender alguns conceitos e para aceitar o mundo real tal qual ele é, um mundo com pessoas reais fazendo coisas reais, sem mágica ou ilusão. Se sou criança e já não posso sonhar, que espécie de adulto eu poderei ser?
          Desde cedo (e me refiro a fase cedo da fase cedo na qual estou agora) da minha vida, me ensinaram a ver o mundo; sentir seus cheiros, ouvir seus ruídos, degustar seus gostos, ver suas nuanças, tatear seus cantos; usar cada um dos meus cinco sentidos para senti-lo. Me considerei privilegiada por isso, mas ao mesmo tempo amaldiçoada. Só eu podia sentir o cheiro do estrume da fazenda, acordar cedo por ouvir o canto do galo, degustar a imperceptível cebola no molho do cachorro-quente, ver a nuvem ao longe prenunciar o temporal, tatear o espinho de uma flor. Sim, uma vez com os sentidos aguçados, em poucos instantes se descobre que este mundo tem mais coisas negativas que boas; todo o positivo tem seu negativo e a recíproca não é verdadeira. Nunca invejei a felicidade dos outros, pois era apenas uma demonstração da sua incapacidade de sentir o mundo.
          Mas hoje, o senhor Arklin, o Papai Noel da festa ao ar livre, me deu um presente muito grande. Me mostrou de uma forma clara como as coisas funcionam para mim; como eu interajo com o mundo; como sou, sim, uma pessoa privilegiada por sentir o mundo e a maldição está apenas na minha cabeça. De agora em diante, querido Diário, vou procurar crescer; vou usar meus cinco sentidos para sentir e, ao invés de estocar as sensações em algum canto sombrio de minha alma, vou procurar cada significado escondido, cada palavra não dita, cada mundo perdido. Sentir tudo o que me causa nojo (não, não devo fugir disso!), cada coisa que me incomoda e entender o porquê; fazê-la não mais acontecer. Não esconder os fatos ruins do mundo, mas mudá-los.
          Talvez eu não seja feliz com estes gestos; talvez depois de tanta coisa ruim já colocada em mim eu já não possa mais sê-lo. Mas, mesmo sendo impossível para mim, tenho uma responsabilidade com as outras pessoas que ainda são capazes disso. Tenho que retratar o ruim, procurar sua causa e sugerir algumas soluções. Talvez aprender a ficar feliz vendo os outros da mesma forma. Quem sabe como o mundo vai ficar depois da pequena parcela do meu trabalho?
          Quem sabe, se eu fosse um pouco mais velha, já lesse histórias em quadrinhos e pudesse me deparar com uma frase linda, a qual talvez fosse agora meu lema de vida. 'Como todos os seres humanos, temos a possibilidade de deixar o mundo melhor do que o encontramos. Podemos lutar pelo máximo de nosso potencial, pelo melhor em nós e nos outros. Sim, este é um ideal! Talvez um objetivo intangível, mas sucesso não é o que importa. O que conta é tentar. E o nosso papel na história, talvez o simples fato de existirmos, nos obriga a isso.' É provável que, sabendo tudo isso, eu compreendesse que o Natal é apenas uma data do calendário em que se convencionou pensar em tornar o mundo melhor.
          Agora, querido diário, me resta esperar o Ano Novo, época de se repensar em nós mesmos, das resoluções, e procurar usar todos os meus sentidos não para analisar o mundo lá fora, mas o mundo aqui dentro; tentar dar um jeito em mim para mudar, ao menos, um pedacinho do mundo.
Feliz Natal!"