POST-MORTEM
“Agora que me resumo a ossos”
Filipe Ferreira
 
            Sempre tive medo que quando chegasse a velhice, tivesse passado todo o meu tempo relembrando, de modo que acabasse por não viver, até um dia a nostalgia estar muito desgastada, usada, e não restarem lembranças. Agora que atravesso o ceú azul rufando as asas ebúrneas de vossos sonhos, já parto sem medos, pois as lembranças foram o bastante. Muito já se escreveu sobre o passado, mas nesta série especial, post-mortem, virão todos os pequenos detalhes deixados para trás, pois agora que sou da terra e a terra pertenço, quem caminha sobre ela precisa saber, ou ao menos lembrar da verdade.
            O futuro inalcançado vacila a frente de vossos olhos, uma promessa.
            Por volta de 1988 meu melhor amigo agrediu a mulher que eu amava. Ela não era ainda uma mulher em toda sua desenvoltura, era apenas uma criança. A violência nunca era física naquele período, a mente era prensada com as dúvidas que hoje sabemos responder. Ninguém mais se pergunta: “ela me quer?”. Todos tentam provar que sim. Aline não reteve lágrimas com a espalmada no rosto macio, sendo que não pude evitar a vingança, me recolhi. Impotente, sabendo que a razão naquele momento era a honra lavada em sangue que fedelhos com mochilas e merendeiras carregam em seu dorso chibateado. Aline, como toda dama podia fazer para defender sua integridade, chutou os, vejamos, não há expressão melhor que me venha, “bagos” de meu melhor amigo. E um homem mantém com seus “bagos” uma relação doentia de proteção, eles conversam, trocam idéias, tem uma simbiose perfeita. Oferecemos proteção em troca de tudo que nos faz sermos durões e sempre que podemos, cafajestes. Um homem com os bagos chutados é um homem extremamente ferido, é um homem em busca de vingança, nem que esta vilanidade esteja fruindo contra uma bela garota. E eu sabia destas contradições. E assim como ela adivinhava em segredo, imagino, meu amor, eu escondia-o com o cinismo infantil que nos despreende tantas energias de maneira negativa. Portanto nada fiz. O amigo um dia se foi, embora tenha sido dos mais importantes na afirmação de caracter, a garota também se foi, cresceu.
            Um dia vi Aline por aí. No centro da cidade. Ela catalisava tudo que eu podia sentir por uma pequena garota. Era boba e menos arrojada que as garotas de sua época. Mas não deve se lembrar de bagos e sopapos. Na verdade seu charme perdura até hoje. Tem as feições mais rudes, de quem já levou muito mais sopapos do que jamais esperei tão cândida criatura poder agüentar. Seu algoz vaga impune, impune também de nossa amizade corroída pelo tempo. Pois não há nada que o tempo não possa vencer. Não existe concorrente para o tempo. Nem a mais pérpetua amizade, nem o mais perene dos amores. Sequer a própria vida.
            Nos túneis de tijolos da antiga escola, os abrigos escuros, os morros e as escarpas, campos de futebol, salas de aula, são lugares que nos fazem sentirmos como Gulliver. Com a impressão de pegar as classes e as crianças entre os dedos, talvez espreme-los, levá-los a boca, como dinossauros reais, aberrações. Os fantasmas de outrora estão condenados a uma dimensão que nossos dedos não mais tocam, condenados a morte. E quem mais haveria de lembrar das pequenas coisas que ficaram prensadas em um instante de tempo, sólido, tomando distância? Há lembranças que embora vividas por muitos, só você vai lembrar. E isso é a vida. Este é um suspiro, um tiro no vento, tentando eternizar algo.