Um Sonho a Três
Alex Panato


    Carlos olhou para o jornal enquanto tomava seu café. Não fôra um crime hediondo o que detera seu olhar, mas olhar a si mesmo na página impressa. Sua visão desfocou e focou novamente, mas o que via, de fato, não era a si mesmo, mas duas cópias. Marcos e Jonas, 28 e 30 anos, solteiros, empresários, abraçados aconchegadamente na cama; mortos. Fora um suicídio duplo, com os mesmos comprimidos que estavam espalhados as dezenas na cabeceira.

    Naquela densa manhã de inverno, os vapores da xícara de café subiam lentamente, se dispersando antes de alcançar o topo. Frutas, pães e fiambres em silêncio, deixavam um aspecto ainda mais vazio na casa. Era certo - aquilo não dizia respeito a vida de Carlos; embora não menos do que seu trabalho, propriedades ou os poucos amigos que fizera até então. De fato, aqueles dois jovens mortos abraçados, não faziam parte de sua vida; não da vida que tivera até então.

    Não haviam idéias muito claras na mente de Carlos quando este vestiu seu casaco, deixou sua pasta de lado e foi caminhar pela cidade em busca de respostas. As sete horas da manhã, diversas pessoas passavam em seus trajes esportivos rumo ao parque mais próximo, crianças circulavam pela rua carregando suas mochilas escolares, alguns pivetes andavam correndo e pulando pela rua. Sua mente quase foi arrastada junto a eles, mas voltou as damas de traje esportivo. Já não prestava atenção aos carros que percorriam rapidamente as ruas, nem as motocicletas que rasgavam o trânsito. Viajou para dentro de si.

    Solidão, angústia, descaso com o mundo: era o que sentia. Trabalho casa, casa trabalho, não havia conversa; não havia contato: era o que sentia. Mas, ao mesmo tempo, o sentimento era um absurdo, pois podia citar diversos amigos, diversos colegas de trabalho, diversas festas, diversas procuras: era uma relação bastante profunda com este mundo. Não sabia como se sentia só, conhecendo e circulando com tantas pessoas. Introvertido? De fato, não era de hoje a constatação deste ponto, mas esta nunca fôra uma muralha à sua volta. Falta de uma família? Não podia acreditar neste ponto, pois seus 30 anos ainda lhe permitiam algum tempo de vida a sós, experimentando os diversos sabores do mundo; saindo com diversas mulheres antes que encontrasse a definitiva.

    Na rua via os carros cruzando a frente uns dos outros, mais adiante uma batida. Fôra o homem do carro tentar cruzar a rua de uma vez, boicotado pela travessia de dois pedestres que não respeitavam sua autoridade de motorista de um veículo top de linha. Foi atingido na lateral direita, para o azar de mulher e filha. A merendeira sujara de suco o estofado em couro, a lataria do carro completamente amassada, mas o que atraia os transeuntes era mesmo a expressão de pânico, o choro hora engasgado, hora convulsivo do homem, ao ver o carro do IML deixar o local. O pipoqueiro deixara a barraquinha para ver o homem chorar, enquanto o motorista do outro carro tentava assimilar o peso das duas mortes que pairavam em suas costas. Já o rapaz da fruteira não deixou o balcão, viu a balbúrdia e deu de ombros, comentando que o homem merecera o acidente. Não disse mais palavra, senão o preço do quilo da laranja.

    Já era meio da manhã quando chegou à casa do funestro. Sem faixas amarelas ou qualquer tipo de resguarda, ela parecia apática às pessoas que lá moraram ou aos que permaneceram lá. Sem cerimônias, fez a campainha tocar. Teve o primeiro pensamento racional do dia após ver a mulher que atendia a porta gritar, projetar-se de costas contra a parede e jogar-se ao chão em um pranto desesperado. Naquele momento, Carlos percebeu que teria que explicar à mulher não ser ele um fantasma batendo a sua porta, mas um desconhecido em busca de conhecimento.

    Tentou erguer a mulher; tentou tirar as mãos de seus rosto, que protegiam os olhos de uma imagem impossível; tentou por fim falar, com as poucas palavras, e sentido ainda mais tênue, disponíveis naquele momento. Foi com esta epifania catatônica que procurou se apresentar a irmã de Marcos. Tivesse ela alguma força naquele dia, teria posto este idiota inoportuno para fora de sua casa. Mas como era de força o que mais necessitava, procurou ser acolhida no abraço do indivíduo que adentrara sua casa.

    Na sala, Carlos olhava Silvana trazer mais um álbum de fotos. Este datava de dois anos 2 anos e era referente a data na qual Marcos conhecera Jonas. Era uma viagem à Portugal, com passagem pela Espanha feita por Marcos junto de sua namorada. A semelhança entre ele Jonas causara confusão nos controles de viagem, nos profissionais da excursão e na alfândega. Algo bastante aborrecido, mas que virou já no segundo dia motivo de piadas de uma nova amizade. As fotos dos álbuns seguintes tornavam clara a aproximação dos dois, sua intimidade adquirida, mas a única foto em que os dois apareciam como parceiros era a do jornal. Os dois amigos se apaixonaram poucos dias antes de morrerem; a notícia não fôra nem bem assimilada pela família quando descobriram os corpos nus fotografados pelo jornal.

    Não havia mais o que aquela jovem pudesse dizer a Carlos para fazê-lo compreender o ato. Passou o restante da manhã com a mulher, levou-a para almoçar; tentava a desculpa pelo absurdo que cometera. De todo, porém, não fôra só mal que fizera a Silvana. Havia um sentimento deslocado de conforto sentido por ela ao seu lado, vendo ao invés de Carlos, o irmão morto. Não queria ele julgar se era isto certo ou errado, positivo ou negativo, queria apenas dar um pouco de conforto a pobre mulher; prometeu manter contato.

    Foi à tarde à casa de Jonas. Falou com o zelador e descobriu que não haveria como entrar. Jonas morava sozinho e sua família ainda tentava vir de Recife para o enterro. O pouco de produtivo conseguido na tarde veio da conversa com o zelador, um homem conversador e fanfarrão. Não provocara Carlos, mas a todo momento infernizava a mulher e aludia a sua amante. Nos primeiros momentos, o homem achou estar falando com Marcos e manteve certo posicionamento formal. Ao descobrir seu engano, encurvou a coluna, passou a ajeitar o saco e livrar-se do pigarro com escarradas.

    Segundo a descrição, Jonas era um sujeito bastante isolado. Poucos amigos; vira-o apenas uma vez com uma namorada. Fôra grande a surpresa do zelador ao receber a notícia pela mulher, não tanto pela morte, mas pelo fato de saber ser um dos patrões homossexual. Era um fato confuso para aquela mente, pois o vira acompanhado e o tinha como um dos seus, mas já tentava adequar a situação aos rótulos pré-moldados que possuía. De fato, já apresentava alguns bons resultados, pois não temia mais por sua sexualidade, nem sentia a morte de um conhecido. Podia usar novamente toda sua pujança para desmoralizar seus semelhantes. Já inventara, inclusive, duas novas histórias sobre o passado homossexual de Jonas, o que lhe permitia ouvidos atentos de diversos moradores do prédio, sedentos de fofocas novas.

    A noite baixava e a densidade do dia inundava a alma de Carlos. Passos adiante e o torpor de seu corpo apenas aumentava. Mesmo assim, permanecia a pé. Procurava sua identidade. Olhara para o espelho no banheiro do café em que parara a pouco. Não vira mais a si mesmo, mas aos personagens principais deste dia. Não sabia se isto era normal, não sabia por quanto mais tempo esta crise de identidade duraria. Estava claro agora ser a confusão entre sua imagem e a imagem de seus pares que causara este estado. Não conseguia dissociar a imagem dos homens. Era algo tão forte; impregnava mais agora, quando via sua vida ser mudada, absorvendo muito do que fôra seus dois menecmas. Seus sentimentos de exclusão se somavam, sentia-se só.

    Deu-se por si, se encontrou em frente a casa de Marcos, tocando à campainha. Não foi difícil de notar estar Silvana em igual angústia. Foi um abraço longo e profundo de duas pessoas procurando provar para si o quão vivas ainda estavam. Foram os dois à cama e lá passaram juntos a noite.

    No início da manhã Carlos acordou, e não foi possível resistir a entrar no quarto do falecido. Sua confusão o permitiu tocar em todos os papéis não manuseados. Viu algumas anotações sobre a solidão da vida, ou sobre o que fazer, ou sobre como agir, respeitando a espectativa de outros ou a sua personalidade; achou, finalmente, alguns pensamentos que foram deixados à espera de um leitor. Desdobrou o papel e passou a lê-lo, com a atenção que merece uma resposta às mais profundas dúvidas.

Porto Alegre, 15 de setembro de 1999.

    Acordei refletindo sobre meu sonho. Diversas pessoas usavam máscaras com o mesmo rosto e se cumprimentavam, como se fossem todas elas a mesma pessoa. Tratavam-se de forma igual e procuravam mostrar que se sentiam satisfeitas com isso. Eu, atrás de minha máscara, cumprimentava também a todos e sabia não me sentir feliz, pois todos que próximos de mim estavam, não conversavam comigo, mas com minha máscara. Nossas afinidades, nossos consentimentos não eram legítimos. Éramos iguais apenas até a máscara e, por mais que quisesse, não conseguia sê-la.

    Senti uma dor lascinante na alma e foi então que minha máscara caiu no chão e se partiu. Agora, de rosto desnudo, não era mais reconhecido pelos meus velhos amigos. Todos passavam surpresos; alguns me ignoravam, outros louvavam o inusitado, mas mantinham-se distantes. Foi quando alguém parou diante de mim estático e baixou a máscara. Foi então que pude ver um rosto semelhante ao meu verdadeiro e, então, encontrar pela primeira vez alguém parecido com minha face, e não a da máscara.

    Contei meu sonho a Jonas e ele riu. Tinha compreendido o mesmo significado que eu. Nunca pudemos ser nós mesmos em nossas vidas; vivíamos fingindo poses e pensamentos. Assim, encontrávamos sempre os que eram semelhantes a nossa imagem, mas não a nós mesmos. Esta imagem era tão pálida e fora de foco que nossos pares sempre foram diversos demais de nós mesmos; ou, em outro ângulo, correspondiam as expectativas que pensávamos ter, mas pertencentes, na verdade, à nossa imagem. Fora necessário alguém fenotipamente igual para conseguirmos procurar a semelhança também na alma.

    Foi este o momento do bizarro; o momento de deixar todos os valores de uma vida e amar um homem, pois não me interessava por qualquer coisa fora de seu ser; apenas dentro. Foi surpreendente para mim, pela primeira vez, acordar com alguém ao meu lado e sorrir, sentindo-me feliz. Nem eu, nem Jonas, nunca tivemos atração por homens, nem fôra este um momento de quebra. Apenas, pela primeira vez, nos interessamos por uma pessoa, fosse ela homem ou mulher.

    Quisera eu ser o contrário e Jonas ser Josefina, pois minha vida teria sido mais fácil e não teria passado por cenas tão deploráveis ou sentimentos tão furiosos. Não queria ver meu pai me expulsar de sua casa ou humilhar minha vida em poucas palavras. Pior era, à noite, tentar tocar no corpo de Jonas, tentando sentir o mesmo sentimento da noite anterior. Querer amá-lo, mas sentir uma repulsa tão grande.

    Jonas não acredita no oculto, mas acredita em passagens e múltiplas vidas. Acredita no engrandecimento das almas e na evolução da sociedade por ela acarretada. Eu não acredito em muito senão aos objetos e homens a minha volta, mas espero também nascer um dia num mundo acolhedor de pessoas de todos os tipos, em que possamos, Jonas e eu, sejamos quem sejamos, ficar juntos sem atrair o ódio dos outros e de nós mesmos. Neste mundo, talvez eu possa viver, ao invés de interpretar um personagem.