Atualização em Ataxia Espinocerebelar Tipo 3/Doença de Machado-Joseph
Henry Paulson, MD, PhD
(publicado em Generations/NAF - Fall/2004)
Tradução de Mateus Caetano MafraO Dr Paulson recebeu seu diploma médico (MD) pela Yale University School of Medicine e seu PhD em biologia celular pela Yale University School of Medicine. Realizou sua residência em neurologia na University of Pennsylvania. Atualmente trabalha como professor assistente na University of Iowa College of Medicine. Desde que começou seu trabalho em SCA3/MJD (ataxia espinocerebelar tipo 3/Doença de Machado-Joseph), em 1996, o laboratóio do Dr Paulson tem publicado numerosos estudos sobre a doença. O Dr Paulson é membro da National Ataxia Foundation’s Medical Research Advisory Board, recebendo recursos da National Ataxia Foundation para sua pesquisa sobre SCA3.
A seguir sua apresentação na reunião anual dos membros da Fundação Nacional de Ataxia em 2004.O último ano foi um bom ano para esse tipo de ataxia, que pode ser o tipo de ataxia dominante hereditária mais comum. No ano passado, a deficiência protéica causadora dessa desordem, ataxin-3, foi intensamente estudada por muitos grupos e descobriu-se ser uma proteína de ligação ubiquitin e uma protease ubiquitin. Depois darei mais explicações sobre esses termos extravagantes; porém basta dizer que eles fornecem pistas a respeito da função normal desta proteína e como ela age inadequadamente na doença. Além disso, durante o ano passado os cientistas conseguiram silenciar a expressão do gene da SCA3 bem como de genes causadores de outras doenças.
Primeiro, uma pequena revisão...
Como muitas das formas dominantes de ataxias hereditárias, a SCA3/MJD causa problemas progressivos no equilíbrio e na coordenação, freqüentemente acompanhados de dificuldades com os movimentos dos olhos, deglutição e fala. Na SCA3/MJD algumas pessoas afetadas também desenvolvem neuropatia ou até sintomas de Parkinsonismo. Os sintomas exatos sentidos por alguém podem variar bastante, mesmo dentro de uma família. A SCA3/MJD mostra uma tremenda variação clínica de sintomas, talvez mais que qualquer outro tipo de ataxia.
A SCA3/MJD é uma das nove possíveis doenças neurodegenerativas causadas por uma mutação similar: uma expansão no DNA de uma repetição CAG. Em todas as nove doenças, essa repetição CAG codifica a produção do aminoácido glutamina, um dos blocos que compõem as proteínas. Assim sendo, a proteína causadora da doença na SCA3/MJD (e também nas SCA1, 2, 6, 7 e 17) tem uma seqüência anormalmente longa de glutaminas repetidas. Alongamentos de glutamina são conhecidos como poliglutaminas. Isso explica por que a SCA3/MJD e doenças relacionadas são freqüentemente chamadas de doenças poliglutamínicas.
Como muitas das SCA, a proteína deficiente na SCA3/MJD é chamada de “ataxin”. Nesse caso ela é conhecida como ataxin-3. Não se pode confundir, por exemplo, com ataxin-1 ou ataxin-2, as proteínas deficientes na SCA1 e SCA2, respectivamente. Apesar dos nomes similares, as várias formas de ataxin diferem completamente entre si, exceto pelo fato de que normalmente todas têm um prolongamento poliglutamínico, que na doença expande-se anormalmente.
Ataxin-3 e o controle de qualidade protéico
Na SCA3/MJD, talvez o maior achado em pesquisas no ano passado foi que ataxin-3 está relacionada ao mecanismo celular de controle de qualidade protéico. O que isso significa? E por que isso é tão importante?
Todas as células, incluindo as células cerebrais chamadas neurônios, têm uma “equipe de faxina” interna – um grupo de proteínas que trabalham juntas para reconhecer proteínas anormais, duplicá-las no formato correto e, se necessário, eliminá-las da célula. Enquanto nós humanos podemos tolerar uma cozinha bagunçada por um período (vamos deixar aqueles pratos empilhados na pia!), a célula não deixa isso acontecer. Quando proteínas anormais acumulam-se, elas podem interromper o funcionamento da célula. Quando a função celular fica assim comprometida, coisas ruins acontecem. Se a célula é um neurônio, por exemplo, ele pode falhar ao enviar ou receber os sinais corretos das células vizinhas, tornar-se doente e até morrer. Na SCA3/MJD e muitas outras doenças neurodegenerativas, conjuntos agregados de proteína deficiente chamados de inclusões se desenvolvem - sinal de que alguma coisa vai mal com o controle de qualidade protéico. Quando neurônios sofrem acúmulo de proteína anormal, eles eventualmente adoecem e morrem.
Como uma célula elimina proteínas mal duplicadas? Para uma proteína ser reconhecida como anormal e então ser degradada pela célula, uma etiqueta protéica chamada ubiquitin é adicionada a proteína. De fato, o que é adicionado à proteína é uma cadeia de ubiquitins. Ubiquitin é uma proteína muito pequena, muito menor que as proteínas comuns. Uma vez que a proteína é etiquetada como uma cadeia de ubiquitins, ela é vista pelo mecanismo de controle de qualidade como “pronta” - isto é, a proteína é enviada para destruição.
Proteínas com cadeias de ubiquitins adicionadas a ela (isto é, “ubiquitinadas”), são enviadas para um grande complexo de degradação protéico chamado proteasome.Uma vez entregues ao proteasome, as proteínas com ubiquitin têm destino certo: o proteasome corta-as em pedaços pequenos que podem ser reciclados pela célula para gerar novas proteínas. Alguns cientistas comparam o proteasome a um cortador de madeira por ele cortar as proteínas de uma extremidade a outra. Ele deixa para trás o equivalente molecular a pedaços de madeira ou serragem, os quais a célula pode facilmente reutilizar.
Como você pode imaginar, a adição de ubiquitins às proteìnas é um importante, e altamente regulado, passo no controle de qualidade protéico. Da mesma forma, proteínas que removem as cadeias de ubiquitins de outras proteínas também são importantes. O mecanismo ubiquitin-proteasome é, de fato, um sistema intrínseco muito complicado ligado a outros caminhos do controle de qualidade na célula. Ele precisa trabalhar constantemente para renovar-se continuamente. Por exemplo, em vez de serem retalhados pela proteasome, as cadeias de ubiquitins são removidas de proteínas destinadas à destruição e reutilizadas para mais ciclos do sistema ubiquitin-proteasome.
O que a ataxin-3 faz com o sistema ubiquitin-proteasome? Bem, cientistas agora descobriram que a ataxin-3 é uma proteína ubiquitin de ligação. Ou seja, ela liga as proteínas ubiquitin anexadas às demais proteínas. No mais, ataxin-3 parece ser uma enzima que remove ubiquitins de outras proteínas, então uma protease específica para as ubiquitins. Fascinantemente, a ataxin-3 também parece ligar-se ao próprio proteasome. Essas descobertas indicam que a ataxin-3 normalmente participa do sistema ubiquitin.
Muitos laboratórios estão trabalhando pesado para descobrir como as propriedades do sistema ubiquitin se encaixam com os mecanismos da doença. Esse novo conhecimento é particularmente importante porque ele reforça a idéia de que o sistema ubiquitin-proteasome de reciclagem é bloqueado nas doenças poliglutamínicas e outras doenças neurodegenerativas. Está claro que as proteínas causadoras de doenças tendem a acumular-se nas células, formando inclusões carregadas com ubiquitin. Pode ser que a habilidade da ataxin-3 para manter essa função normal é quebrada pela expansão poliglutamínica. É até possível que a atividade citada do ubiquitin da ataxin-3 normalmente contrapõea-se à toxicidade imposta por proteínas mal duplicadas no cérebro. Preste atenção nesta idéia. Se você se importa com a SCA3/MJD, ficará feliz com a idéia de que essas recentes descobertas sobre a ataxin-3 convenceram muitos brilhantes cientistas a investigar essa fascinante proteína. Isso também é bom para nós que queremos compreender melhor essa doença.
Silenciando o gene alterado com interferência de RNA
Outra excitante descoberta no ano passado foi que os cientistas aprenderam como “desligar” o gene responsável pela doença SCA3/MJD enquanto mantém o gene normal ativo. Ainda que não saibamos porque as células cerebrais morrem na SCA3/MJD, sabemos que o gene alterado codifica uma proteína tóxica. Se pudéssemos eliminar a expressão dessa proteína tóxica seria bom, certo? Uma idéia simples, mas não necessariamente fácil de executar.
Então como podemos fazê-lo? Há uma recente descoberta no mecanismo celular que pode reconhecer e eliminar um específico RNA mensageiro (RNAm) que codifica proteínas. Esse processo é chamado de interferência de RNA ou RNAi.
Antes de entrar em mais detalhes, ajudaria fornecer algumas bases de biologia molecular. Todos nossos genes são feitos da DNA, consistindo de dois filamentos complementares enrolados na dupla hélice, que se tornaram famosos graças a Watson e Crick. Muitos genes codificam as proteínas, por exemplo, o gene SCA3/MJD codifica a proteína ataxin-3. Para que uma célula fabrique ataxin-3, o gene MJD é transcrito em RNA - literalmente uma cópia idêntica de RNA é feita a partir de um filamento de DNA. Este filamento único de RNA, chamado de RNA mensageiro ou RNAm, deixa o núcleo e entra no citoplasma da célula. No citoplasma, a organela produtora de proteínas da célula, conhecida como ribossomo, lê o RNAm e constrói uma proteína baseada na cópia do RNAm.
Resumindo, então o RNAm é o intermediário necessário, ou mensageiro, que permite que a ataxin-3 e outras proteínas possam ser produzidas. Se o RNAm da SCA3/MJD for rapidamente destruído, a ataxin-3 não pode ser produzida. Na SCA3 e em muitas outras doenças neurodegenerativas, a proteína doente é nociva e eliminar a sua produção faz sentido. Ao explorar a destruição do RNAm pelo RNAi – essencialmente ”matando o mensageiro” – os cientistas podem evitar a produção de uma proteína específica.
O RNAi é uma ocorrência biológica natural que ocorre em todas as criaturas, de plantas a seres humanos. É um processo pelo qual as células podem regular a expressão de genes específicos.
Para expressão de alguns genes durante o crescimento, a regulagem por RNAi ocorre naturalmente. Mas os cientistas também podem tirar vantagem desse mecanismo e introduzir moléculas de RNAi nas células para silenciar a expressão de genes específicos. De fato, mostramos que se pode destruir o mensageiro do gene mau da SCA3 mantendo o mensageiro do gene normal vivo – portanto a proteína normal é expressa e a doente não. Introduzindo nas células um pequeno pedaço de RNA que se liga ao RNAm da SCA3, esse mecanismo de RNAi dentro da célula pode destruir seletivamente esse RNAm e evitar a produção da proteína doente ataxin-3.
Nós conseguimos desligar o gene mau da SCA3 em culturas de células. A grande questão é se conseguiremos transferir essa nova tecnologia para o cérebro? Atualmente estamos tentando isso em ratos modelos transgênicos que simulam a SCA3/MJD. É de grande importância uma recente pesquisa feita por cientistas em Iowa, sugerindo que isso é possível. Numa publicação recente no Journal Nature Medicine, minha colega Beverly Dawson liderou um grupo de estudos mostrando que a RNAi pode ser transferida com sucesso para o cérebro de ratos com a doença neurodegenerativa relatada, SCA1. Extraordinariamente, o RNA enviado interrompeu a doença.
Nesse estudo, uma forma de terapia genética foi usada. Nós construímos um vírus para expressar RNAi contra o gene da SCA1. Quando o vírus foi injetado no cerebelo de ratos com SCA1, os neurônios que assimilaram-no produziram RNAi contra o gene SCA1. Como resultado, a proteína ataxin-1 não foi mais produzida e os ratos que receberam a terapia melhoraram muito mais que aqueles que não receberam.
É importante tomar nota que ratos normais injetados com esse vírus RNAi não mostraram nenhum efeito colateral. Isso sugere que a RNAi mediada por vírus pode trabalhar bem e seguramente em cérebro de mamíferos – pelo menos em ratos, e com esperança em humanos. Um segundo ponto importante é que somente o cerebelo foi atingido nos ratos com SCA1. Embora o cerebelo seja o objetivo principal na SCA3/MJD, há muitas outras partes do cérebro, incluindo o tronco cerebral, que poderiam ser atingidas por essa tentativa. Se a RNAi pode ser transportada segura e efetivamente para o tronco cerebral, entre outros locais, ainda resta saber.
Conseguirá o RNAi criar uma terapia para a SCA3/MJD e outras doenças relacionadas? A resposta simples é que não sabemos. Enquanto a RNAi seja um tema fascinante e promissor, há muito a ser aprendido sobre transporte, segurança, durabilidade e especificidade da terapia antes que apliquemos em humanos. Assim como a vacina amilóide funcionou bem em ratos no mal de Alzheimer, mas causou severos problemas em experiências humanas, simplesmente não sabemos se pessoas podem ser tratadas segura e efetivamente com RNAi. Além do mais, lembrem-se que o experimento descrito no Nature Medicine foi terapia genética, que vem compartilhando problemas e desapontamentos nos últimos 10 anos. Felizmente, a maioria dos melhores e mais brilhante cientistas está trabalhando para conseguir resultados firmes, seguros e duradouros de expressão na terapia genética no cérebro. Outra cuidadosa observação: a aplicação da estratégia usada no estudo da Nature Medicine em humanos poderia requerer neurocirurgia – injeções dos vírus construídos dentro do cérebro. Felizmente, muitas companhias estão trabalhando em terapias não-virais para levar RNAi aos animais (inclusive seres humanos).
Resumindo, embora ainda tenhamos um longo caminho a percorrer, a ligação da ataxin-3 ao ubiquitin e o surgimento da RNAi como potencial terapia são dois excitantes progressos nas pesquisas da SCA3/MJD. Certamente há muito ainda a ser feito antes da próxima atualização!References
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