GUERRA FRIA
A GUERRA FRIA ACABOU?
A queda do muro de Berlim, em 1989, e o processo de decomposição
do império soviético, que culminou com a autodissolução da
URSS, em dezembro de 1991, são apontados como episódios emblemáticos
do fim da Guerra Fria. Entre um acontecimento e outro, ocorreu a
invasão do Iraque, comandada pelos EUA. Pouco depois de
encerrado o conflito, o então presidente George Bush anunciava
que chegara a hora de construir ''uma nova ordem mundial''. Para
alguns ideólogos, o mundo que emergia do colapso comunista, no
leste da Europa, e da vitória dos EUA e seus aliados, no Oriente
Médio, era a consagração da democracia representativa como
sistema político e da economia de mercado, generalizada por um
processo de mundialização sem precedentes da produção, da
circulação e do sistema financeiro.
''Globalização'' passou ser uma palavra incorporada ao
cotidiano das análises sobre a nova cena internacional, que os
mais afoitos apresentavam como apontando para o ''fim da história''.
Noam Chomsky, instigado por essas realidades, questiona em sua última
obra, com o auxílio de centenas de citações de livros, artigos,
documentos, relatórios e amplo material de imprensa, a ''novidade''
da ordem mundial que teria emergido nos anos 90. Chomsky é um
eminente lingüista, professor do MIT (Instituto de Tecnologia de
Massachusetts), que tem dedicado grande parte de sua atividade
intelectual à análise da política internacional,
particularmente ao papel nela desempenhado pelos EUA. Ao
revisitar a Guerra Fria, o autor critica as imagens convencionais
que foram sendo construídas sobre esse fenômeno histórico. Ele
fixa seu início em 1918, quando, ao dissolver a Assembléia
Nacional Constituinte, os bolchevistas teriam dado um sinal de
que estavam dispostos a assegurar o poder que haviam estabelecido
meses antes.
A Rússia soviética era vista pelos círculos governamentais do
Ocidente como uma ''maçã podre'', que poderia contaminar, como
de fato ocorreu, outros países. Por isso, as potências
capitalistas decidiram pela intervenção militar pouco depois da
vitória da revolução. Mas o perigo que a União Soviética
representava, segundo Chomsky, era menos militar que simbólico.
A URSS era um país da periferia do capitalismo, que se
industrializou tardiamente, a partir de um movimento revolucionário
que concentrou no Estado um enorme poder de intervenção na
economia. Tudo isso contra a vontade das potências hegemônicas
à época. Seu exemplo, mais pelo conteúdo nacionalista do que
pelo socialismo, poderia influenciar, como de fato influenciou,
muitos outros países, estimulando-os a percorrer o mesmo caminho,
pelo menos no que se refere à industrialização e ao
nacionalismo.
Isso, segundo o autor, era insuportável para as grandes potências.
Ele mostra como o Reino Unido no passado frustrou a industrialização
da Índia e, mais tarde, do Egito. Aos países periféricos cabia
apenas um papel subordinado na divisão internacional do trabalho.
E isso era essencial para a expansão do ''livre-comércio''.
No século 20, essa vocação imperial foi assumida
crescentemente pelos EUA. A política exterior norte-americana não
sofreu modificações muito radicais no período posterior à
Guerra Fria, pois esta, segundo Chomsky, é uma ''fase particular
nos 500 anos de conquista européia do mundo - a história da
agressão, subversão, terror e dominação, agora denominado 'confronto
norte-sul'''.
Mas o fato de impor o livre-comércio - hoje erigido como valor máximo-
ao mundo não significa que as metrópoles tenham abraçado
plenamente os dogmas liberais que exportam. Os EUA, sobretudo
depois da Segunda Guerra, quando o mundo teve tempo para fazer
uma reflexão mais detida sobre o significado da crise de 1929,
adotaram um ''keynesianismo militar''. O denominado ''sistema do
Pentágono'', ou o que antes se chamava de ''complexo industrial-militar'',
representou uma decisiva alavanca ao capitalismo norte-americano.
Essa escolha alterava em boa medida as prioridades do "New
Deal". Crescer com o gasto militar era preferível a
estimular o gasto social, o que apresentava perigosas conseqüências
sociais e políticas.
Chomsky afirma que para atingir tal fim foi preciso magnificar o
poderio militar soviético. O comportamento truculento dos EUA -sobre
o qual ele dá dezenas de exemplos - era exatamente aquele que
Washington atribuía à URSS e que justificava a escalada
armamentista.
Dissolvida a URSS, um novo inimigo foi criado: o Terceiro Mundo.
Este pode aparecer como fonte do terrorismo ou do narcotráfico,
mas é sobretudo uma região que disputa com a potência imperial
fatias do mercado mundial.
Apesar de, direta ou indiretamente, aconselhar receitas liberais,
desindustrializantes e com conseqüências negativas sobre o
emprego, os EUA e os países desenvolvidos praticam fortes políticas
industriais.
Quando a industrialização não pôde ser evitada na periferia,
os EUA trataram de atrelar as economias nacionais seja por
investimentos diretos seja pela ação especulativa.
Mas Chomsky tenta demonstrar que, mais do que o antagonismo países
ricos-países pobres, a clivagem principal se dá hoje no
interior de cada um dos Estados nacionais. Daí sua idéia de que
a nova ordem mundial é na realidade uma ''terceiromundialização''
do planeta. As políticas econômicas dos países desenvolvidos,
não tão liberais quanto anunciadas, e os ajustes aplicados na
periferia acabaram por provocar as mesmas conseqüências em
todas as partes: concentração de renda sem precedentes,
desemprego e uma crescente exclusão, sobretudo com o desmonte do
"Welfare State".
Tudo se passa como se o mundo vivesse, agora em escala global,
uma nova revolução industrial com as seqüelas de progresso, e
de horrores, que marcaram o processo original nos séculos 18 e
19. O retorno à escravidão no Oriente, com a utilização de
prisioneiros, mulheres e crianças, os acidentes horríveis nos
locais de trabalho e as condições de controle da força de
trabalho, mediadas agora por tecnologias sofisticadas, configuram
os novos traços da industrialização deste fim de século.
Mas a nova ordem é também a preeminência do capital
especulativo sobre o produtivo. Há dez anos, a proporção
capital especulativo/produtivo era de um para nove. Hoje ela se
inverteu. Uma soma de US$ 1,3 trilhão é diariamente aplicada em
bolsas, por meio de modernos instrumentos de comunicação que
imprimem ao capital financeiro uma velocidade sem precedentes e o
tornam ainda mais incontrolável. Os capitais produtivos buscam
custos de produção cada vez mais baixos. Impõem condições
draconianas aos países e regiões para onde se deslocam. O comércio
mundial cada vez mais se dá intrafirmas (cerca de 40%) o que
torna a expressão livre-comércio cada vez mais problemática.
Quem perde com esses fenômenos econômicos, que se produzem em
um mundo política e militarmente cada vez mais unipolar, é o
Estado nacional. A globalização, para Chomsky, produz um
governo internacional ''de fato'', que aparece em instituições
como o G-7, o FMI, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do
Comércio, enquanto as instâncias multinacionais, como a ONU,
por exemplo, se esvaziam cada vez mais.
Noam Chomsky retoma em seu livro uma tradição radical que marca
desde sempre a dissidência intelectual norte-americana e que é
característica desse professor há mais de duas décadas. O tom
polêmico, às vezes panfletário, de seu livro não obscurece as
duras verdades que traz à tona, apoiado em uma colossal erudição.
Na contracorrente da grande ofensiva conservadora desse fim de século,
Noam Chomsky lança sua garrafa ao mar, seguro de que a mensagem
chegará a muitas praias.