São Bernardo:
Desdobramento e Busca
A obra São Bernardo,
de Graciliano Ramos, apesar de pertencer à Segunda Geração
Modernista, cujos propósitos, em prosa, ligam-se à denúncia
social, à apresentação questionadora e crítica do Brasil,
afasta-se, ao mesmo tempo, da mesma.
Notamos, ao analisar o
romance, que, se há denúncia, esta fica em segundo plano. Todo
o romance envolve a tensão psicológica de Paulo Honório, que
se desenvolverá, aqui, em dois planos: o Paulo Honório
narrador e o Paulo Honório personagem.
Paulo Honório
causa-nos o "estranhamento" por ser um herói problemático,
buscando o entendimento na avaliação de si mesmo. A história
é contada num tempo posterior aos fatos, ou seja, Paulo Honório,
no passado, vivenciou uma série de experiências, que, agora,
num tempo atual (já com cinqüenta anos), pretende relatar em
livro.
Toda a narrativa se
envolverá num processo de circularidade e alternâncias : no
enredo central, teremos Paulo Honório personagem; na narração,
aparecerá o Paulo Honório avaliativo, distante dos fatos,
buscando entender a si, ao mundo e até mesmo ao seu processo de
criação.
Inicialmente, o
narrador explica ao leitor todo o seu processo de escritura,
fazendo-o participar da obra. Em todo o primeiro capítulo do
livro, Paulo Honório narrador expõe seu projeto de fazer a
obra pela "divisão do trabalho". Para tanto,
"Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações
latinas; João Nogueira aceitou a ortografia e a sintaxe;
prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a
composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim,
redator e diretor do ‘Cruzeiro’."(p.7).
Percebe-se que, por
meio de um processo de metalinguagem, coloca-se o processo da
escritura em discussão. Junto com ele, descobrimos que o
processo de elaboração é falho ("O resultado foi um
desastre."- p. 8), pois mascara seu autor: ele é um homem
rústico, e não aquilo que estavam fazendo que ele parecesse
(...está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá quem
fale dessa forma!- p.9).
Desta maneira, Paulo
Honório coloca-se como alguém simples, não afeito a técnicas
narrativas normalmente consideradas sofisticadas, daí as referências
à "língua de Camões". É por isso que assumirá a
escritura do romance que tratará de sua história, desde guia
de cegos a proprietário da fazenda São Bernardo: narrativa que
se pretende escrita de forma rústica para tratar de uma
"alma agreste", conforme ele se autoqualifica.
Porém, engana-se o
leitor se imagina encontrar um texto desconexo, escrito por alguém
que se diz semi-analfabeto; ao contrário, deparamo-nos com um
texto, que, em termos de linguagem, poderia, inclusive, ser
classificado como clássico: a linguagem é "enxuta",
sem preocupação descritiva ou abuso de linguagem figurada; é
a nítida preferência pelo substantivo, pela informação
direta, aproximando-se de uma linguagem referencial, bastante
afastada daquilo que chamaríamos, tradicionalmente, de poético.
Neste sentido, poderíamos fazer uma comparação com Machado de
Assis, pois é a mesma preferência pela análise psicológica,
por conseguinte ocupando maior espaço na obra.
É aí que encontramos
a iconicidade: é a linguagem reveladora da personagem, ambos
agrestes, áridos. Todavia, essa simplicidade toda não nos leva
a uma narrativa primitiva, linearmente organizada. O texto é
carregado de digressões e processos metalingüísticos.
O narrador quer criar
a ilusão de que está escrevendo o texto sem planejamento, sem
cálculo prévio, forjando um primitivismo literário num livro
de memórias: Paulo Honório narrador conta a história de Paulo
Honório personagem. Seu método seria algo semelhante à técnica
narrativa impressionista, contando os fatos conforme vão
surgindo na memória, daí a "desordem", a falta de
linearidade cronológica; por exemplo, ficamos sabendo que o
filho de Madalena já havia nascido, porque o narrador o
apresenta chorando:
O pequeno berrava como
bezerro desmamado. Não me contive: voltei e gritei para d. Glória
e Madalena:
- Vão ver aquele
infeliz. Isso tem jeito? Aí na prosa , e pode o mundo vir
abaixo. A criança esgoelando-se!
Madalena tinha tido um
menino. (p.123).
Agora, sem dúvida, um
dos pontos mais altos desse processo de digressão é o capítulo
19. Ele é todo digressão: Paulo Honório - já com seus cinqüenta
anos, em seu tempo presente - interrompe o desenrolar dos fatos
para escrever um capítulo fluxo de consciência, que o leitor,
que entra em contato com a obra pela primeira vez, só vai
entender quando acabar de ler o romance. No auge do seu conflito
psicológico, com Madalena já morta, Paulo Honório a vê
aproximar-se dele:
- Madalena!
A voz dela me chega aos
ouvidos. Não , não é aos ouvido. Também já não a vejo com
os olhos." (p. 102).
Ele só a vê em suas
lembranças, em sua consciência, mas é como se ela se
materializasse diante de si; é aí que ele faz algumas
conjecturas sobre ela e ele:
A voz de Madalena
continua acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que
mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a
irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga,
que me deixa inteiramente calmo. Loucura uma pessoa estar ao
mesmo tempo irritada e tranqüila. Mas estou assim. Irritado
contra quem? Contra mestre Caetano. Não obstante ele ter
morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião!
A toalha reaparece, mas não
sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que
estava aqui há cinco anos. (p. 102 e 103).
A contradição o
assola ("... é uma irritação antiga que me deixa
inteiramente calmo."); o desejo de compreender acentua-se,
daí as constantes referências às contradições: é o desejo
de rever Madalena, mas, simultaneamente, o não entendimento de
suas atitudes, o que ainda o irrita, como no passado:
Agitam-se em mim
sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato
na mesa e tenho vontade de chorar.
Aparentemente, estou
sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a toalha e os dedos
parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com o punho.
Esquisito. (p. 103).
Este capítulo traz o
mesmo Paulo Honório do final da obra: sozinho, triste,
convivendo com seus fantasmas, como o senhor Ribeiro e d. Glória,
já distantes no momento presente:
Apesar disso a
palestra de seu Ribeiro e d. Glória é bastante clara. A
dificuldade seria reproduzir o que eles dizem. É preciso
admitir que estão conversando sem palavras. (p.103 e 104).
Todo esse momento do
enredo nos revela tanto os conflitos de Paulo Honório quanto a
consciência técnica do narrador; afinal, esse fluxo de consciência
é extremamente bem feito para alguém que se diz
semi-analfabeto. Por conseguinte, enxergamos, por trás de Paulo
Honório, o escritor Graciliano Ramos, consciente pleno do
processo narrativo, capaz de criar uma "desordem"
apenas aparente, reveladora, na verdade, do tempo atual da
personagem.
Após o capítulo 19,
o texto retoma o seu desenvolvimento normal. É interessante
observar que, apesar de o narrador deixar claro que tem consciência
de tudo o que se passou, inclusive antecipando fatos, cria o
suspense em citações de intensa emoção, como no momento da
"despedida" de Madalena, preparando já o seu suicídio,
por meio de um diálogo rápido e vigoroso:
- O resto está no
escritório, na minha banca. Provavelmente esta folha voou para
o jardim quando eu escrevi.
- A quem?
- Você verá. Está em
cima da banca. Não é caso para barulho. Você verá.
- Bem.
Respirei. Que fadiga!
- Você me perdoa os
desgostos que lhe dei, Paulo?
- Julgo que tive minhas
razões.
- Não se trata disso.
Perdoa?
Rosnei um monossílabo.
- O que estragou tudo foi
esse ciúme. Paulo. (p. 160).
A metalinguagem também
tem o papel de apresentar o narrador avaliativo. Paulo Honório
coloca-se na posição de quem, além de auto-avaliar os dois
primeiros capítulos como "inúteis", avalia as
atitudes da personagem, com uma visão adiantada dos fatos:
Já viram como
perdemos tempo com padecimentos inúteis? Não era melhor que fôssemos
como os bois? Bois com inteligência. Haverá estupidez maior
que atormentar-se um vivente por gosto? Será? Não será? Para
que isso? Procurar dissabores! Será? Não será? (p. 148).
O de que sempre temos
certeza é da dúvida de Paulo Honório. Ele é alguém que
jamais fechará um raciocínio sequer, como veremos no desfecho.
Todo o foco central da
ação desse personagem se liga à posse de São Bernardo e ao
relacionamento com Madalena, e até nisso o narrador se utiliza
das digressões, numa pretensa "desorganização
natural" das lembranças. No capítulo dois, por exemplo,
temos exposto seu grande objetivo na vida: "O meu fito na
vida foi apossar-me das terras de São Bernardo, construir esta
casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o
descaroçador, introduzir nestas brenhas a pomicultura e a
avicultura, adquirir um rebanho bovino regular. " (p.11)
Porém, no capítulo 3,
observamos um retrocesso temporal, pois o narrador apresenta-nos
a sua história de vida - o menino de origem humilde, que vendia
doces para a velha Margarida, e o guia de cegos; a prisão, o
aprendizado mínimo da leitura na cadeia e a posterior saída,
pensando já em "ganhar dinheiro" (p.13). Tal processo
digressivo é flagrante tentativa de autojustificação; Paulo
Honório usará de meios pouco lícitos para conseguir São
Bernardo (aproveita-se da miséria e vício de Padilha, para
conseguir a fazenda por valor baixo); sua infância sofrida, a
falta de oportunidades, as dificuldades, tudo para
"justificar" suas atitudes e a falta de remorsos.
Na verdade, não se
conforma com o descaso de Padilha para com tão boa propriedade;
era realmente muito injusto vê-la nas mãos de um farrista, e não
em suas mãos, que, como veremos, trabalharão essa terra:
Trabalhava
danadamente, dormindo pouco, levantando-se às quatro da manhã,
passando dias ao sol, à chuva, de facão, pistola e
cartucheira, comendo nas horas de descanso um pedaço de
bacalhau assado com um punhado de farinha. (p.29).
Claro que não podemos
dizer que o narrador queira envolver, emocionalmente, o leitor.
Não há interesse em deixar o leitor penalizado,
justificando-se frente a ele, como se o estivesse fazendo frente
à sociedade.
Se há alguém frente
a que Paulo Honório queira justificar-se, esse alguém é ele
mesmo, na busca do autoconhecimento.
A posse de São
Bernardo, para ele, será fundamental. Adquiri-la significa
adquirir respeito. A criança humilde aprendera que só os
poderosos são respeitados, daí a obsessão por ganhar
dinheiro, por mandar; nota-se tal procedimento já na posse da
fazenda:
Pensei que, em vez de
aterrar o charco, era melhor mandar chamar mestre Caetano para
trabalhar na pedreira. Mas não dei contra-ordem, coisa
prejudicial a um chefe. (p.28).
Paulo Honório
personagem está-se acostumando a ser chefe, daí a necessidade
de se impor para ser respeitado. Para isso São Bernardo chegará
a ter objetos de que ele sequer se utiliza:
Comprei móveis e
diversos objetos que entrei a utilizar com receio, outros que
ainda hoje não utilizo, porque não sei para que servem.
(p.39). Paulo Honório acredita que ter é fundamental. Sendo
assim, tudo será válido para conseguir seu objetivo:
A verdade é que
nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus.
Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que
deram lucro. E como sempre tive a intenção de possuir as
terras de São Bernardo, considerei legítimas as ações que me
levaram a obtê-las . (p . 39).
E é por isso que tudo
será avaliado pelo valor monetário que possui, até mesmo a
velha Margarida:
A velha Margarida mora
aqui em São Bernardo, numa casinha limpa, e ninguém a
incomoda. Custa-me dez mil-réis por semana, quantia suficiente
para compensar o bocado que me deu. (p.12 e 13).
É a isso que Alfredo
Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira, chamará
de "universo do ter", que se amplia a cada atitude
sua. A instrução, a cultura, para ele, é uma das coisas mais
inúteis - são supérfluas, frente à necessidade maior, que é
a da posse. Mesmo assim, chegará a construir uma escola na
fazenda, buscando, em troca, "a benevolência do
governador" (p.44); assim será também com a igreja
("A escola seria um capital. Os alicerces da igreja eram
também capital" - p. 44 e 45).
A filosofia do ter
endureceu Paulo Honório. Ao pensar, por exemplo, em
relacionamento entre homem e mulher, vê-os como "machos e
fêmeas" (p.65).
Por isso, no
casamento, buscará, inicialmente, o "herdeiro para São
Bernardo", alguém capaz de herdar sua obsessão pelo ter.
Madalena parece
adequada. Cogitando a possibilidade de casar-se com ela,
imagina, de imediato, a reprodução dos "bons espécimes";
reproduzir filhos não é diferente de reproduzir animais:
Se o casal for bom, os
filhos saem bons; se for ruim, os filhos não prestam. A vontade
dos pais não tira nem põe. Conheço o meu manual de zootecnia.
( p. 87).
Sendo assim, também
acredita que atrairá Madalena, mostrando-lhe o que há em São
Bernardo, desde as aves até a extensão das terras. Chega a,
inclusive, colocar a Madalena o casamento como uma espécie de
negócio, como algo que lhe possa "garantir o futuro":
- O seu oferecimento
é vantajoso para mim, seu Paulo Honório, murmurou Madalena.
Muito vantajoso. Mas é preciso refletir. De qualquer maneira,
estou agradecida ao senhor, ouviu? A verdade é que sou pobre
como Job, entende?
- Não fale assim,
menina. E a instrução, a sua pessoa, isso não vale nada? Quer
que lhe diga? Se chegarmos a um acordo, quem faz negócio
supimpa sou eu. (p. 90).
Madalena não se
revelará, mais tarde, como alguém que valorize os bens
materiais (vemos, por exemplo, sua dedicação aos pobres e
funcionários que viviam na fazenda), o que torna difícil
acreditar que se
tenha casado por
dinheiro. Porém, não se podem fazer, por outro lado, colocações
fechadas em relação ela; o narrador, em relação a Paulo Honório,
mantém distância mínima, pois trata-se de um processo de
desdobramento, mas, em
relação a Madalena, a distância é máxima.
Tudo isso significa
que o leitor não tem acesso direto à consciência dela, o que
reforça a ambigüidade - será que não haveria, por parte de
Madalena, nenhum interesse financeiro, nenhuma necessidade de
adquirir
segurança por meio do
casamento? O diálogo acima transcrito permite essa análise.
Para dificultar ainda mais as coisas, não nos podemos esquecer
de que quem conta essa história é Paulo Honório, diretamente
envolvido com ela.
Por conseguinte, o foco
narrativo é dele, o que gera uma visão parcial da história. O
próprio narrador dará subsídios para este tipo de enfoque;
vejamos, por exemplo, os comentários dele sobre a transcrição
de um de seus diálogos
com d. Glória:
Essa conversa, é
claro, não saiu de cabo a rabo como está no papel. Houve
suspensões, repetições, mal entendidos, incongruências,
naturais quando a gente fala sem pensar que aquilo vai ser lido.
Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi diversas passagens,
modifiquei outras. O discurso que atirei ao mocinho do
rubi, por exemplo, foi
mais enérgico e mais extenso que as linhas chochas que aqui estão.
A parte referente à enxaqueca de d. Glória (a enxaqueca
ocupou, sem exagero, metade da viagem) virou fumaça. Cortei
igualmente, na cópia, numerosas tolices ditas por mim e por d.
Glória. Ficaram muitas, as que as minhas luzes não
alcançaram e as que me
pareceram úteis. É o processo que adoto; extraio dos
acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço. (p.77
e 78).
Se ele expurgou seu diálogo
com ela, por que não faria o mesmo em sua conversa com
Madalena, ou mesmo contaria tudo como lhe conviesse?
Mas por que Madalena? Ela
não se revelará como alguém que se harmonize, em nada, com
Paulo Honório; para ele, ela tem defeitos irremediáveis, como,
por exemplo, ser culta, instruída, altruísta, ou pior,
escreve artigos:
- Mulher superior. Só
os artigos que publica no Cruzeiro!
Desanimei:
- Ah! Faz artigos!
- Sim, muito instruída.
Que negócio tem o senhor com ela?
- Eu sei lá! Tinha um
projeto, mas a colaboração no Cruzeiro me esfriou. Julguei que
fosse uma criatura sensata. (p. 85).
Porém, ele a
escolheu. A justificativa que parece mais lógica é o fato de
ela ser exatamente aquilo que ele não é. Paulo Honório - como
já anteriormente citado - busca o respeito alheio, busca
estabilizar-se e ser reconhecido. Uma esposa professora seria
mais respeitável do que qualquer cabocla comum.
De início, ele
imaginou-a como uma menina frágil, fácil de dominar.
Enganou-se: Madalena tem iniciativa, quer trabalhar, ajuda aos
outros sem pedir autorização e não dá importância às aparências:
Tive, durante uma
semana, o cuidado de procurar afinar a minha sintaxe pela dela,
mas não consegui evitar numerosos solecismos. Mudei de rumo.
Tolice. Madalena não se incomodava com essas coisas. Imaginei-a
uma boneca da escola normal. Engano. (p.95).
O protagonista sente
necessidade de adaptar-se a ela, tenta de tudo, porém todas as
tentativas são infrutíferas.
O grande problema é
que as energias que regem a vida dos dois são diferentes: ele
é regido pela posse, pelo ter; ela, pelo ser.
São diretrizes de
vida muito diversas, daí a dificuldade de compreensão de Paulo
Honório. A conseqüência será um ascendente ciúme; os alvos
desse sentimentos serão vários: Padilha, seu Ribeiro, Gondim,
Padre Silvestre, chegando ao ponto de imaginar que o amante
vinha encontrá-la à noite, dentro de sua própria casa
("Três anos de
casado. Fazia exatamente
um ano que tinha começado o diabo do
ciúme."- p. 164).
Madalena, apesar de
forte, será destruída por tudo isso. Seu suicíidio é o auge
disso tudo:
"Arredei-as e
estaquei: Madalena estava estirada na cama, branca, de olhos
vidrados, espuma branca nos cantos da boca. Aproximei-me,
tomei-lhe as mãos, duras e frias, toquei-lhe o coração,
parado. Parado. No soalho havia mancha de líquido e cacos de
vidro. (p.165).
E, assim, chegamos ao
momento presente. Justificativas e
justificativas... no
final, um Paulo Honório que escreveu um livro e só
consegue ter certeza de
sua solidão, seu estado de abandono, sua
inutilidade:
"Cinqüenta anos!
Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira
sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um
porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo,
procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para
os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não
é bom vir o diabo e levar tudo?" (p.181).
A seqüência de
exclamações é icônica; temos, diante de nós, um homem
revoltado, reconhecendo a inutilidade de sua vida. Isso o
redime?:
Madalena entrou aqui
cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e
os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.
Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que
me deu qualidades tão
ruins. É a desconfiança terrível que me aponta inimigos em
toda
parte! A desconfiança é
também conseqüência da profissão. (p.181).
Enfim, a circularidade
da narrativa acontece: o mesmo Paulo do início, que reconhece,
parcialmente, seu erro, mas a culpa é jogada aos fatores
externos. Meio possível de acalmar a consciência, mas que não
elimina a dor do
reconhecimento e da perda. Quem queria acumular bens acumulou
perdas: destruiu a si e aos outros.
Assim, Paulo Honório
torna-se apenas um ser humano, não típico espacialmente, mas
um ser humano universal, capaz de refletir, mas incapaz de
chegar a respostas definitivas.
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