SENTIMENTO DE
MUNDO, de Carlos Drummond (1940)
Relação de poemas
Sentimento de Mundo
Confidência do Itabirano
Poema da Necessidade
Canção da Moça-Fantasma
de Belo Horizonte
Tristeza do Império
Operário no Mar (prosa)
Menino Chorando na Noite
Morro da Babilônia
Congresso Internacional
do Medo
Os Mortos de Sobrecasaca
Privilégio do Mar
Inocentes do Leblon
Canção do Berço
Indecisão de Méier
Bolero de Ravel
La Possession du Monde
Ode no Cinqüentenário
do Poeta Brasileiro
Os Ombros Suportam o
Mundo
Mãos Dadas
Dentaduras Duplas
Revelação do Subúrbio
A Noite Dissolve os
Homens
Madrigal Lúgubre
Lembrança do Mundo
Antigo
Elegia 1938
Mundo Grande
Noturno à Janela do
Apartamento
ALGUNS POEMAS
Sentimento do mundo
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de
escravos,
minhas lembranças
escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desjeo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não
disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos
passarem,
eu ficarei sozinho
desafiando a recordação
do sineiro, da viúva e
do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais que a noite.
Confidências de um
Itabirano
Carlos Drummond de
Andrade
Alguns anos vivi em
Itabira.
Principalmente nasci em
Itabira.
Por isso sou triste,
orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de
ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de
ferro nas almas.
E esse alheamento1 do que
na vida é porosidade e
comunicação.
A vontade de amar, que
me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas
noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer,
que tanto me diverte,
é doce herança
itabirana.
De Itabira trouxe
prendas2 que ora te ofereço:
este São Benedito do
velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta,
estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça
baixa...
Tive ouro, tive gado,
tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma
fotografia na parede.
Mas como dói!
Congresso
internacional do medo
Provisoriamente não
cantaremos o amor,
que se refugiou mais
abaixo dos subterrãneos.
Cantaremos o medo, que
esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio
porque esse não existe,
existe apenas o medo,
nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões,
dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o
medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos
ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da
morte e o medo de depois da morte, depois morreremos
de medo e sobre nossos túmulos
nascerão flores amarelas e medrosas.
Carlos Drummond de
Andrade
Elegia 1938*
Trabalhas sem alegria
para um mundo caduco1,
onde as formas e as ações
no encerram2 nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente3
os gestos universais,
sentes calor e frio,
falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os
parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam4 a virtude,
a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina,
abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos
volumes de sinistras5 bibliotecas.
Amas a noite pelo
poder de aniquilamento6 que encerra
e sabes que, dormindo, os
problemas de dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar
prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino,
em face de indecifráveis7 palmeiras.
Caminhas entre mortos
e com eles conversas
sobre coisas do tempo
futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou
tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste
muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso,
tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século
a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a
guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes,
sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
*Elegia era o nome
dado pelos gregos a um tipo cujo tema estava ligado à morte.
Seu tom era, portanto, sempre triste, de lamentação. OP ano de
1938 identifica-se com um período de grande desenvolvimento
industrial e uma grave crise social e política, que teria como
uma das suas decorrências a Segunda Guerra Mundial. A esse
quadro o poeta refere-se como um “mundo caduco” (v. 1)
Mãos dadas
O poeta reafirma a sua
consciência da existência de outros homens, seus
compa-nheiros. Com eles é que se sente de mãos dadas – e
renunciou aos seus temas pesso-ais: uma mulher, uma história, a
paisagem vista da janela. Não mais se refugiará na solidão
porque o que lhe interessa é o tempo presente em que se acha
inserido, e os ho-mens que o cercam.
Não serei o
poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o
mundo futuro.
Estou preso à vida e
olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas
nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a
enorme realidade.
O presente é tão
grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito,
vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de
uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao
anoitecer, a paisagem vista [da janela,
não distribuirei
entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as
ilhas nem serei raptado por
[serafins.
O tempo é a minha matéria,
do tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Os ombros suportam
o mundo
O sentimento do mundo
que dá título ao livro começa a fazer presente. O poeta fala
na renúncia dos seus desejos e inquietações pessoais, que só
o deixarão na mais absoluta solidão: não importa a sua própria
vida, o tempo que passa e a velhice que avança, em face dos
problemas do mundo, dos quais ele tem uma dolorosa consciência.
Sente-se solidário com os que ainda não se libertaram do
sofrimento. Sua vida se impõe como uma ordem: ela deve
continuar, para enfrentar a realidade de um mundo qaue ele
imagina carregar no ombros e que não deve pesar mais do que a mão
de uma criança.
Chega um tempo em que
não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz
mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o
rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem
à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz
apagou-se,
mas na sombra teus olhos
resplandecem enormes.
És todo certeza, já não
sabes sofrer.
E nada esperas de teus
amigos.
Pouco importa venha a
velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o
mundo
e ele não pesa mais que
a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as
discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida
prossegue
e nem todos se libertaram
ainda.
Alguns, achando bárbaro
o espetáculo,
prefeririam (os
delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não
adianta morrer.
Chegou um tempo em que a
vida é uma ordem.
A vida apenas, sem
mistificação.
Biografia do autor
Nasceu em Itabira-MG,
em 1902, Filho de proprietários rurais arruinados, estudou em
Belo Horizonte, diplomou-se em Farmácia, deu aulas de
Geografia, exerceu o Jornalismo e foi funcionário público. Em
1933, radicou-se definitivamente no Rio de Janeiro. Morreu em
1987. É considerado maior poeta brasileiro.
Comentários críticos
A poesia de Carlos
Drummond de Andrade pode ser abordada a partir da dialética
“eu x mundo”, desdobrando-se em três atitudes:
1. Eu maior que o
mundo – marcada pela poesia irônica. O poeta vê os
conflitos de uma posição de eqüidistância e não-envolvimento:
daí o humor, os poemas-piada e a ironia. O poeta fotografa a
província, a família. É sarcástico, de uma irreverência
incontida, mas de um sentimento contido, o que vem a produzir um
texto objetivo, seco, versos curtos e descarnados, sem
transbordamento emocional. É o que ocorre em Alguma Poesia e
Brejo das Almas.
2. Eu menor que o
mundo – marcada pela poesia social, tomando como temas a
política, a guerra e o sofrimento do homem. Desabrocha o
sentimento do mundo, marcado pela solidão, pela impotência do
homem, diante de um mundo frio e mecânico, que o reduz a
objeto. É o que ocorre em Sentimento do Mundo, José e
especialmente em A Rosa do Povo.
Os poemas Mãos Dadas, Os
Ombros Suportam o Mundo e Confidência do Itabirano também
incluem-se nessa fase.
3. Eu igual ao
mundo – abrange a poesia metafísica, de Claro Enigma onde
a escavação do real, mediante um processo de interrogações e
negações, conduz ao vazio que espreita o homem e ao
desencanto, e a “poesia objetual”, de Lição de Coisas,
onde a palavra se faz coisa, objeto,, e é pesquisada,
trabalhada, desintegrada e refundida no espaço da página.
Análise de Célio Pinheiro,
professor de Literatura, Araçatuba-SP
Os poemas de Sentimento
do mundo foram produzidos entre 1935 e 1940.
São 28 no total.
Poema: Sentimento
do mundo
O primeiro poema (que deu
nome ao livro) revela a visão-de-mundo do poeta: não é
alegre, antes, é cheia da realidade que sempre nos estarrece,
porque, por mais que sonhemos, a realidade geralmente é dura e
muito desafiante.
O poeta inicia (estrofe
1) indicando suas limitações para ver o mundo: “Tenho apenas
duas mãos”; mas aponta, em seguida, alguns elementos
auxiliares que o ajudarão a suprir suas deficiências de visão:
escravos, lembranças e o mistério do amor (versos 3 a 5);
escravos podem ser os meios escusos de que nos utilizamos para
tocar a vida e decifrá-la e dela nos aproveitarmos.
O pessimismo denuncia-se
com as mortes do céu e do próprio poeta, na estrofe 2.
Apesar da ajuda
incompleta dos companheiros de vida (“Camaradas”), o poeta não
consegue decifrar os códigos existenciais e pede, humilde,
desculpas.
Nas duas últimas
estrofes, Drummond pinta uma visão de futuro bem negativo, mas
bem real: mortos, lembranças, tipos de pessoas que sumiram nas
batalhas da vida (“guerra”, na estrofe 3).
Conclui, na estrofe 5,
que o futuro (“amanhecer”) é bem negro, tenebroso. Feita só
de dois versos, sintetiza seu sentimento do mundo.
Os demais 27 poemas são
nuances, explicações dessa amarga visão inicial da vida.
Poema: Confidência
do Itabirano
O poema começa com a
saudade profunda de seu lugar de nascimento, traçado em quatro
belas, mas sofredoras estrofes. Confessa (estrofe 3) que
aprendeu a sofrer por causa de Itabira; mas, paradoxalmente:
“A vontade de amor (...) vem de Itabira”; vale dizer que o
amor nasce e é servido no sofrimento. De Itabira vem a explicação
de Drummond viver de “cabeça baixa” (estrofe 3), verso 6).
Afinal, apesar das negatividades, o poeta sente uma incomensurável
saudade de sua cidade natal.
Poema: O operário
do mar
O texto número 6 faz o
autor escapar da linguagem poética material (versos) e se
apropriar dessa linguagem poética sem versos, mas bastante
poesia imaterial, em belo painel-definição explicita a grande
diferença social entre operários e não-operários.
Esta belíssima crônica
poética, de base surrealista – tão em voga nos anos trinta,
quarenta – serve bem para duas constatações:
1ª) o sentimento
socialista de Drummond que iria espraiar-se cinco anos após
Sentimento do mundo, na publicação de Rosa do povo, em 1945;
2ª) a visão-de-mundo onírica
e bem poética de um operário universalizado em São Pedro; ele
anda sobre águas por graça de Deus, enquanto burgueses se
espantam por não poderem realizar a mágica; isto é, aos
humildes: a magia divina, aos prepotentes: a inveja.
Esta crônica poética
também pode permitir que se compare a “apreensão do mistério
da palavra” nos poemas explícitos de Drummond diante desta
prosa poética; por exemplo: “minhas lembranças escorrem”
(Sentimento do mundo, estrofe 1, verso 4) e “feixes
escorrem” (das mãos do operário, em O operário no mar,
linha 26). O mistério poético de lembranças escorrem é bem
mais profundo do que peixes escorrerem imaginariamente das mãos
do operário.
Poema: Privilégio
do mar
No poema 12, o autor
continua detendo-se alegoricamente no problema social das
diferenças humanas.
Poema: Inocentes do
Lelbon
Ainda no enfoque da visão
social, o poeta fala da riqueza: “inocentes” significa os
que querem ignorar; por isto fingem e se aproveitam.
Poema: La
possession du monde
Neste poema 17, Drummond
indica o membro da Academia Francesa de Letras, em 1884, Georges
Duhamel, pedindo uma risível fruta estragada; como se isso
fosse, como diz o título do poema, ter o mundo nas mãos.
Poema: Ode no cinqüentenário
do poeta brasileiro
O belo elogio do poema 18
é a palavra drummondiana a Manuel Bandeira, nascido em 1886 e
que, em 1936, completava 50 anos de vida. Drummond pede que
“seu canto confidencial (a poesia de Bandeira) ressoe acima
dos vãos disfarces do homem”!
E para concluir esta
fugaz visão do livro Sentimento do mundo, fiquemos com as
palavras do último poema, Noturno à janela do apartamento: “
A vida na escuridão absoluta, como líquido, circunda”.
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