Poder, direito, coerção e legitimidade

 

Adauto Damásio

 

Um das obras mais importantes para a historiografia contemporânea é a do inglês Edward Thompson, cujos trabalhos problematizaram uma série de conceitos utilizados pelos pesquisadores na área de ciências humanas, instaurando uma verdadeira "batalha teórica" com muitos autores consagrados e inaugurando uma nova postura frente ao trabalho empírico. De todos os seus trabalhos, Senhores e Caçadores se destaca pela sua importância tanto para o campo da história como para a investigação do estatuto teórico do direito e dos conceitos de poder e ideologia no campo do pensamento marxista. Um pensamento que, no Brasil, ainda se revela majoritariamente herdeiro de uma tradição estruturalista ortodoxa, entendendo, por exemplo, o direito com um simples reflexo ideológico das relações desiguais entre classes, sendo assim parte de uma superestrutura ideológica que procura mascarar a realidade. A principal contribuição de Thompson, como veremos, é desmistificar este entendimento e problematizá-lo dentro do próprio campo do pensamento marxista.

A presente resenha pretende, a um só tempo, percorrer a obra Senhores e Caçadores, ao mesmo tempo em que procura refletir sobre as conclusões de Thompson, considerando as interpretações de outros autores sobre o conceito de poder. Nosso argumento, nesta resenha, é que a interpretação de Thompson sobre o conceito de poder se situa em uma posição intermediária entre as interpretações de Max Weber e Talcott Parsons.

Do ponto de vista histórico, a questão central da investigação de Edward Thompson, em Senhores e Caçadores, é tentar descortinar quais as causas que teriam levado o Estado Britânico a elaborar e aprovar uma lei sanguinária, em 1723, prevendo a pena de morte para infrações como a pesca e caça clandestina, roubo ou ferimento de gamos, veados, coelhos e lebres. Tal lei, que foi aprovada por unanimidade na Câmara dos Comuns, foi ampliada por sucessivas decisões, de modo que o simples enegrecimento do rosto (estratégia utilizada pelos caçadores de cervos e gamos) ou porte de armas, poderia constituir um crime passível de pena de morte. Dispositivos jurídicos fizeram permitir a aceleração dos processos inspirados na "Lei Negra de Walthan", como ficou conhecida; lei esta que estava esboçada de modo tão vago, que se tornou um terreno profícuo para decisões judiciais cada vez mais abrangentes.

Para o autor, portanto, a questão era a de tentar responder questões que a historiografia havia respondido de modo insatisfatório. "O que provocou a aprovação da Lei Negra? Quem eram os Negros de Walthan? A aprovação da Lei foi precipitada por algum grupo de pressão identificável ou foi um ato de governo tout court? A que funções se aplicou a lei e de que forma ocupou seu lugar como parte do código [jurídico] do século XVIII? Por que escrevê-la em sangue foi tão fácil para os legisladores de 1723?" Terá sido uma suposta emergência nos conflitos entre Negros e autoridades florestais, em 1723, a causa da decretação de tal lei? São estas as questões que inspiram a extensa pesquisa de Thompson.

Sua forma de intervenção foi a de recompor, em primeiro lugar a situação e a administração da floresta de Windsor, suas funções para os lazeres do rei, a situação ecológica necessária para a preservação e reprodução dos gamos e veados, as medidas coercitivas anteriores à Lei Negra para manter estas mesmas condições, as pressões da fidalguia local e dos rendeiros consuetudinários. Além disso, procura investigar o crescimento da população florestana, a organização da burocracia florestal para impor as leis de proteção aos gamos e veados, juntamente com o sistema de propinas existente na exercício de seus cargos e a atuação do Tribunal Swanimote de Windsor. Após essa visão panorâmica da floresta de Windsor, o autor constata que o equilíbrio florestal esteve em perigo entre 1717 e 1725, quando se constatou o mau estado da floresta. Houve um crescimento de denúncias contra infrações que iam contra a legislação da floresta. Foi nesse contexto que surgiram as primeiras denúncias específicas contra um bando de salteadores, nos condados de Berkshire e Hampshire, em 1720 e 1723, que teriam se organizado sob o nome de Negros, andando armados, matando cervos, remetendo cartas intimidadoras aos fidalgos, exigindo veação e dinheiro e ameaçando assassinatos ou incêndios à casas, celeiros e medas de feno, além de outras atitudes para intimidar suas vítimas.

De fato, parece, ao autor, ter havido um decréscimo considerável no número de veados e gamos entre 1700 e 1722 na floresta de Windsor. Porém, o autor demonstra que a caça ilícita sempre fora endêmica nas áreas florestais e que o enegrecimento do rosto era uma antiga estratégia dos caçadores. Ela já era considerada crime desde 1485 e a ação legal contra os caçadores já era tradicional nas florestas, com várias leis que se mostraram inoperantes graças à pouca eficácia dos tribunais civis e florestais. Assim, o conflito teria degenerado para formas extrajurídicas e assumiu o caráter de um conflito direto entre Negros e guardas florestais; os Negros, inclusive, parecem ter conseguido a hegemonia na floresta entre 1720 e 1723.

A tentativa de reativação da autoridade florestal negligenciada teria provocado o nascimento da atividade Negra de uma forma mais organizada, que se preocupava com os cervos enquanto "símbolos de uma autoridade que ameaçava sua economia, suas lavouras e seus direitos agrários costumeiros". Dessa forma, apresentavam traços de bandidos sociais, como definiu Eric Hobsbawm, e de rebeldes rurais, lutando pela manutenção de seus direitos consuetudinários. A ascensão proeminente de um funcionário executor e sua ação delatora contra os Negros, que os procurava associar com o jacobitismo, garantiria o agravamento dos conflitos, que tem seu ápice com a prisão e execução de quatro caçadores clandestinos.

Porém, a questão da atividade Negra ainda não fica esclarecida, pois a sua composição social ainda é obscura. Rejeitando as tabelas que indicam as profissões e mostrando o quanto elas podem ser enganadoras, o autor procura demonstrar, através da análise dos poucos fragmentos que sobreviveram sobre os episódios, quem eram os Negros: uns poucos fidalgos, um maior número de agricultores abastados, um maior número de pequenos agricultores e artesãos e uns poucos habitantes pobres da floresta. A partir dessa identificação, passa a procurar identificar também os adversários dos Negros, a quem dirigiam os seus ataques. Salienta que não se pode entender o funcionalismo da floresta como algo abstrato, mas sim como homens específicos que viviam com seus adversários, com interesses específicos. Eram famílias que vinham ascendendo na escala social, tornando-se fidalgos e proprietários alodiais de direito próprio, com privilégios concedidos em função de suas posições administrativas na floresta e acrescendo à esses privilégios outros não concedidos, o que teria sido interpretado pelos habitantes da floresta como insultos ao direito costumeiro de uso sobre a terra.

De forma mais ampla, os conflitos aparecem como uma conseqüência da ausência do rei na floresta, reforçando a influência dos nobres e funcionários que derivavam sua autoridade da Coroa. A crise, nascendo das condições da floresta, acabava sendo acentuada por questões externas, que acabava colocando como ponto central da disputa o poder e o direito de propriedade sobre a terra. A ascensão dos whigs trouxe para a floresta dinheiro proveniente das finanças, comércio e das posições e cargos na Corte e no Exército. Eram proprietários whigs os alvos preferenciais dos Negros. Os whigs eram verdadeiros predadores à solta pela floresta e, dessa forma, os Negros aparecem como vítimas e não como agressores. Assim, a atividade dos Negros não aparece associada ao jacobitismo; se o houve, foi por um acréscimo ao enfrentamento entre os habitantes da floresta e os cortesãos whigs.

Nas florestas de Hampshire, o autor encontra uma outra conjuntura para a ação dos Negros. A presença do rei em Hampshire era tênue e a Coroa não retirava nenhum proveito dessas terras. Conflitos são constatados entre agentes da agricultura empreendedora de mercado e as famílias que viviam há mais tempo nas aldeias. Era forte a presença episcopal nestas florestas e a oposição entre bispos e arrendatários consuetudinários remontava a decênios; conflitos estes que giravam em torno da posse consuetudinária e dos direitos à madeira. O autor encontra Bispos aumentando o valor das luvas em casos de morte e renovação de contratos, além do rompimento de antigos contratos de posse e rearrendamento de terras com contratos do tipo capitalista empreendedor. Tribunais Florestais, chamados a mediar tais conflitos puniam jurados que não concordavam em seguir a orientação do Intendente, ou seja, a de punir arrendatários supostamente infratores. Porém, também houve casos nos quais o Bispo perdeu a causa judicial. A ambigüidade do direito dos arrendatários em cortar madeira em suas próprias terras, colocando-os sob a ameaça do confisco fazia com que reivindicassem com maior ênfase os direitos costumeiros sobre os terrenos e reservas de caças comunais.

É nesse contexto que, em Hampshire, em 1711, começam a aparecer denúncias de caças ilegais quotidianas em algumas florestas. O ataque aos cervos havia se tornado uma ocupação geral e a venda de veação e couro vinha se tornando uma atividade profissional. Em 1718, os componentes da atividade Negra já estavam reunidos, com sua ação violenta sobre as propriedades. Porém, a expressão "atividade Negra" não parece ainda estar em uso. É a partir de 1721 que tal atividade assume um caráter mais organizado.

Em Outubro deste ano, caçadores clandestinos irromperam no Parque de Farnham, ferindo um guarda e levando cervos. Eles se autodenominavam "Caçadores de Waltham" e agiam sob o comando de um líder, o "Rei" John. Seus ataques se tornaram freqüentes durante alguns meses e suas investidas não se restringiram ao roubo de cervos e intimidação dos guardas florestais. Partiram, também, para a intromissão em conflitos públicos e privados, procurando, nas palavras dos próprios caçadores, restaurar a justiça na floresta, não permitindo que os ricos humilhassem os pobres. Fizeram questão de se diferenciarem e de se separarem do movimento jacobista, jurando lealdade ao Rei George, mas mostraram claramente sua oposição à nobreza e ao clero. O "Rei" John e seus comparsas sumiram após alguns meses de atividade, não deixando nenhuma lenda, nenhuma lembrança popular. Surge então a Lei Negra, após ondas de distúrbios associados ou inspirados na ação do bando do "Rei" John e sobrevêm a dura repressão nela legitimada.

Enfim, o autor chega às conclusões. A Lei Negra teria sido causada pela suposta emergência em 1723? Teria havido uma emergência nesse ano? Do ponto de vista dos funcionários florestais e episcopais, fidalgos e magistrados expostos aos ataques, havia uma emergência, cuja essência era a constante humilhação pública das autoridades, os ataques às propriedades reais e particulares, a idéia de um movimento confederado que vinha ampliando suas exigências sociais, enfim, os sintomas de uma guerra classista, com a fidalguia sofrendo ataques, num lastimável isolamento em suas tentativas de impor a ordem.

Para o Governo, a emergência se constituía na não observância da autoridade real, na medida em que os Negros adquiriram apoio das comunidades florestais, configurando um deslocamento de autoridade. Dessa forma, não foi o antigo delito de roubo de cervos que constituía uma emergência. Além disso, a lei não tinha precedentes, tanto pela sua severidade, como pelo caráter vago e indiscriminado de seu esboço. Servia, assim, como um versátil arsenal de morte adequado para a repressão de muitas formas de distúrbio social, sendo a sua execução um puro ato de terror. Dessa forma, estabelece-se uma distinção entre uma situação que podia provocar algumas novas medidas de repressão e o caráter sem precedentes da lei que de fato surgiu.

Também questões de sensibilidade desses homens que formularam e aplicaram tal lei devem ser caracterizadas para explicá-la. Essa sensibilidade se enquadra no contexto político inglês do início do século XVIII. A Inglaterra tinha algo de uma "república das bananas", onde predadores lutavam pelos espólios do poder e ainda não concordavam em se submeter às regras e formas racionais ou burocráticas na ação do Estado; políticos reuniam em torno de si seus dependentes leais, recompensando-os com cargos onde pudessem sugar parte das rendas públicas; cada cargo com suas propinas e comissões. O status e influência exigiam exibição ostensiva, como evidência visível de poder e riqueza; os parques de cervos faziam parte dessa exibição. A Lei Negra, assim, teria tido como causa tanto a emergência analisada nos dois condados, como as características dos políticos whigs.

Definindo os whigs como uma curiosa cabala de especuladores políticos, traficantes de capitais, grandes magnatas fundiários e dependentes oportunistas da justiça e da igreja, o autor mostra como Robert Walpole foi a única alternativa política dos whigs para assumir o poder após a crise da fraudulenta Bolha do Pacífico Sul, em um contexto pouco pacífico e de pouco contentamento popular em relação aos governos whigs. Assim, o episódio dos Negros pode ser visto como uma outra afortunada ocasião para intensificar a repressão política sobre as classes subalternas. Tratá-los com dureza seria uma prova de um ministro capaz e vigilante, até porque nenhum opositor no parlamento seria favorável à caça ilícita e às atividades dos Negros.

Além disso, a trama de interesses era mais cerrada, pois existia uma notável coincidência entre os inimigos dos Negros e o interesse hanoveriano, no que se refere aos votos no parlamento. Existia, no parlamento, um pequeno grupo de pressão que havia sofrido com as ações dos Negros em seus parques privados, com a captura de cervos ou peixes e a dureza das medidas pode ter colaborado com os negócios do governo. Era um passo a mais na ascensão dos whigs hanoverianos.

Mas tal lei não seria possível sem um consenso anterior sobre os valores da propriedade na mente dos que a esboçaram; de fato, um consenso que ganhou a mente de toda a classe dirigente. A aprovação da Lei Negra coincidiu com a ascendência da "doutrina da retribuição crua e indiscriminada". A lei foi sucessivamente renovada, ampliada e estendida, tanto ao nível do legislativo, como ao nível da jurisprudência. A Lei anunciou o longo declínio da eficiência dos velhos métodos do controle e disciplina de classe, e sua substituição por um recurso padronizado de autoridade: o exemplo do terror. Os economistas defendendo os baixos salários e os advogados a pena de morte. Ambos indicavam uma impessoalidade crescente na mediação das relações de classe e uma transformação na categoria "crime", tornando passível de punição não mais o delito entre pessoas, mas o delito contra a propriedade. Como eram delitos contra coisas e não contra pessoas, permitiu à lei assumir, com seus mantos, a postura da imparcialidade: era neutra em relação a todos os níveis de homens e defendia apenas a inviolabilidade da propriedade das coisas. O processo de transformação do trabalho, que se tornava cada vez mais livre, operava da mesma forma no produto do trabalho, que veio a ser considerado como algo totalmente distinto, propriedade do patrão ou do dono da terra, a ser defendido com a ameaça da morte. Esse pensamento amadurecia desde o século anterior, e influenciava o direito penal desde muito antes da Lei Negra. Um ano após sua aprovação, a Lei Negra se separou da "emergência" e ingressou no arsenal geral da legislação repressora.

Por um século, a Lei Negra integrou a legislação britânica e sua virtual anulação em 1823 ocorreu após uma longa resistência. A freqüência de sua aplicação não pode ser avaliada com segurança. Mas o número de casos que, com pouca pesquisa, vieram à luz, e a jurisprudência alimentada por ela, mostram que não caíram em desuso. Uma hipótese pode ser fundamentada: nas primeiras décadas após a decretação da lei, ela foi aplicada de modo regular contra ladrões de cervos e caçadores clandestinos. A partir daí, raramente foi aplicada a essas infrações, a menos que acrescida de alguma agravante, como um disparo. Mas as outras cláusulas da Lei foram mantidas. Pela própria natureza dos delitos, era mais provável o recurso à Lei num contexto de distúrbios sociais, principalmente quando combinados a uma insubordinação de classe - como, por exemplo, quando a resistência ao fechamento de terras comunais assumia a forma de disparos contra janelas, cartas de ameaça ou ferimentos intencionais de gado. A única generalização que se pode fazer com segurança é a de que a Lei se manteve disponível no arsenal dos processos judiciais. Quando o Estado queria dar um exemplo de terror, ou quando o demandante era muito vingativo, a acusação seria formulada de modo a ser enquadrada na Lei Negra. Ademais, analisando decisões judiciais enquadradas na Lei Negra, o autor demonstra a impossibilidade de enxergar o desenvolvimento da lei pela sua lógica imparcial, coerente apenas com sua integridade própria, inabalável frente às considerações de conveniência; isso é o que ele identifica como ficcões legais.

Do ponto de vista historiográfico, Thompson reflete sobre o entendimento do direito e da justiça na abordagem marxista da história. Seu veio teórico incorpora parte da crítica marxista estrutural: de fato, algumas passagens do estudo confirmaram as funções classistas e mistificadoras da lei. Mas o autor rejeita seu reducionismo inconfesso.

Em primeiro lugar, a análise do século XVIII (e talvez de outros séculos) questiona a validade de se separar a lei como um todo e colocá-la em alguma superestrutura tipológica. A lei considerada como instituição ou pessoas, pode ser facilmente assimilada à lei da classe dominante. Mas nem tudo que está vinculado a "a lei" subsume-se a estas instituições. A lei também pode ser vista como ideologia ou regras e sanções específicas que mantém uma relação ativa e definida, muitas vezes no campo do conflito, com as normas sociais; e por fim, pode ser vista simplesmente em termos de sua lógica, regras e procedimentos próprios - isto é, simplesmente enquanto lei. E não é possível conceber nenhuma sociedade complexa sem lei.

A ascendente oligarquia Whig criou novas leis, distorceu antigas formas legais, a fim de legitimar suas propriedades e status próprios; essa oligarquia empregou a lei, tanto instrumental como ideologicamente, muito à maneira que esperaria um marxista estrutural moderno. Mas isso não significa dizer que os dominantes tinham necessidade da lei para oprimir os dominados, ao passo que os dominados não tinham necessidade de lei alguma. O que muitas vezes estava em questão não era a propriedade defendida pela lei contra a não-propriedade; eram as outras definições dos direitos de propriedade: para o proprietário de terras, o fechamento das terras comunais; para o trabalhador rural, os direitos comunais; para os funcionários da floresta, "terrenos preservados" para os cervos; para os habitantes da floresta, o direito de apanhar torrões de grama. Enquanto foi possível, os dominados, se conseguissem dinheiro e advogado, lutariam pelos seus direitos por meios legais. Quando não foi mais possível continuar a luta através da lei os homens continuariam a ter um senso de transgressão legal: os proprietários tinham obtido seu poder por meios ilegítimos.

A lei, muitas vezes, era uma definição da efetiva prática rural, tal como fora seguida desde tempos imemoriais. Portanto, a "lei" estava profundamente imbricada na própria base das relações de produção, que teriam sido inoperantes sem ela. Em segundo lugar, essa lei, como definição de regras (de execução imperfeita através das formas legais institucionais), era endossada por normas tenazmente transmitidas pela comunidade. Existiam normas alternativas, é claro; era um espaço não de consenso, mas de conflito. Mas nem por isso, pode-se simplesmente afastar toda a lei como ideologia, e ainda assimilar a ideologia ao aparato de Estado de uma classe dominante. Pelo contrário, as normas dos habitantes da floresta podiam se revelar como valores apaixonadamente defendidos, levando-os a um curso de ação que os conduziria a um áspero conflito - com a "lei".

A lei é um instrumento de poder de classe tout court. Assim, a lei, Thompson concorda, pode ser vista instrumentalmente como mediação e reforço das relações de classe existentes e, ideologicamente, como sua legitimadora. Mas deve-se avançar um pouco mais nessas definições. "Pois se dizemos que as relações de classe existentes eram mediadas pela lei, não é o mesmo que dizer que a lei não passava da tradução dessas mesmas relações, em termos que mascaravam ou mistificavam a realidade. Muitíssimas vezes isso pode ser verdade, mas não é toda a verdade. Pois as relações de classe eram expressas, não de qualquer maneira que se quisesse, mas através das formas da lei; e a lei, como outras instituições que, de tempos em tempos, podem ser vistas como mediação (e mascaramento) das relações de classe existentes (como a Igreja ou os meios de comunicação), tem suas características próprias, sua própria história e lógica de desenvolvimento independente."

Se a lei é manifestamente parcial e injusta não vai mascarar nada, legitimar nada, contribuir em nada para a hegemonia de classe alguma. A condição prévia e essencial para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é que ela mostre uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça ser justa. Além disso, não é freqüentemente que se pode descartar uma ideologia dominante como mera hipocrisia; mesmo os dominantes têm necessidade de legitimar seu poder, moralizar suas funções, sentir-se úteis e justos. O direito pode ser uma retórica, mas não necessariamente uma retórica vazia.

A conclusão a que se chega, portanto não é simples [lei = poder de classe], mas sim complexa e contraditória. De um lado, é verdade que a lei mediava relações de classe existentes em proveito dos dominantes, como também a lei tornou-se um magnífico instrumento pelo qual esses dominantes podiam impor suas definições de liberdade. Por outro lado, a lei mediava essas relações de classe através de formas legais, que continuamente impunham restrições às ações dos dominantes. Existe uma enorme diferença entre o poder extralegal arbitrário e o poder mediado pela lei. Não só os dominantes estavam restringidos por suas próprias regras jurídicas contra o exercício da força direta e sem mediações, como também acreditavam o bastante nessas regras e na retórica ideológica que os acompanhava, para permitir, em certas áreas limitadas, que a própria lei fosse um foro autêntico onde se travavam certos tipos de conflitos de classe. Quando o próprio governo saía derrotado, paradoxalmente, servia para consolidar o poder, acentuar sua legitimidade e conter movimentos revolucionários. Para completar o paradoxo, essas mesmas ocasiões serviram para colocar ainda mais freios constitucionais ao poder.

A retórica e as regras são muito mais do que meras imposturas, prossegue o autor. Simultaneamente, podem modificar em profundidade o comportamento dos poderosos e mistificar os destituídos de poder. Podem disfarçar as verdadeiras realidades do poder, mas ao mesmo tempo podem refrear esse poder e conter seus excessos. E muitas vezes é a partir dessa mesma retórica que se desenvolve uma crítica radical da prática da sociedade.

Mais do que isso, a noção de regulação e reconciliação dos conflitos através dos domínios da lei parece ao autor uma realização cultural de significação universal. Não obstante, não sustenta nenhum postulado quanto a imparcialidade abstrata e extra-histórica dessas regras. Num contexto de flagrantes desigualdades de classe, a igualdade da lei em alguma parte sempre será uma impostura. Porém, existe uma diferença entre o poder arbitrário e do domínio da lei.

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Em um texto extremamente sintético e esclarecedor, Gérard Lebrun situou o debate existente entre Max Weber e Talcott Parsons, sobre o conceito de poder; debate este que influenciou todas os formulações contemporâneas sobre o tema.

Basicamente, as conceituações do poder para Weber e Parsons diferenciam-se no tocante àquilo que fundamenta a capacidade do exercício do poder. Em Weber, o papel da coerção no exercício do poder é maximizado enquanto que, para Parsons, a função da coerção é preterida em favor da idéia de legitimidade. Para Weber:

"Potência significa toda oportunidade de impor a sua vontade, no interior de uma relação social, até mesmo contra resistências, pouco importando em que repouse tal oportunidade."

 

O poder, assim, existe quando a potência se explicita de uma maneira muito precisa, sob a forma de ordem dirigida a alguém que deve cumpri-la. Parsons procura, em sua conceituação de poder, e intencionalmente, reduzir o papel da coerção ao definir o political power como:

"a aplicação de uma capacidade generalizada, que consiste em obter que os membros de uma coletividade cumpram obrigações legitimadas em nome de fins coletivos, e que, eventualmente, permite forçar o recalcitrante através de sanções situacionais negativas".

 

Assim, Parsons minimiza o caráter não-igualitário, hierárquico e conflituoso do poder, associando-o à idéia de legitimidade.

Uma das contribuições de Thompson, além de todas as formulações sobre o estatuto teórico do Direito, caminha, ao nosso ver, em um sentido intermediário entre as posições de Weber e de Parsons a respeito do conceito de poder, apontando, em primeiro lugar, para a constatação óbvia de que, em nenhuma sociedade, forma alguma de poder consegue se manter ao longo do tempo, baseado apenas na prática da coerção. É claro que Weber não pensaria de outra forma. O Estado, com seus mecanismos de controle social, incluso o arsenal jurídico, necessita, tanto na formulação de Weber como na formulação de Parsons, de legitimidade para o exercício do poder.

No entanto, o problema que se coloca na discussão, e Lebrun o percebe de forma clara, é a questão de onde está a supremacia do fundamento da capacidade para o exercício do poder: na coerção ou na legitimidade? Nos parece que a resposta de Thompson para a questão encontra-se em uma posição intermediária das proposições de Weber e Parsons. Se, por um lado, Thompson se aproxima mais de Weber, ao localizar o exercício do poder em uma perspectiva de desigualdade social e na capacidade de coerção, ao contrário de Parsons que procura elidir tal contexto, por outro lado, o autor também resgata a idéia de legitimidade para a eficácia do exercício do poder político do Estado. Este entendimento fica claro quando o autor comenta a necessidade de imparcialidade da lei para que possa, inclusive, mascarar a realidade e contribuir para a hegemonia de uma classe social. Se a lei é manifestamente parcial e injusta não vai legitimar nada. A condição prévia e essencial para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é que ela mostre uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça ser justa.

Portanto, nos parece claro que coerção e legitimidade aparecem como elementos fundantes do poder e que para Thompson não há prevalência de um ou outro elemento para a prática efetiva do poder. É claro que a legitimidade a que refere para Thompson é um elemento muito distinto do que o é para Parsons. Porém, a discussão sobre a ideologia nos parece conveniente para outra oportunidade. Cumpre agora convidar os leitores desta resenha à leitura desta obra de Thompson, sobre a qual escreveu Hobsbawm:

"Poderoso, sugestivo e infinitamente fascinante... O século XVIII nunca mais será o mesmo."