Artigos Publicados: Idas e Vindas da Liberdade

 

ADAUTO DAMÁSIO

O presente artigo investiga o desenrolar de um processo judicial – um Libelo Cível de Liberdade - em que uma escrava, a mulata Águida, reivindica na justiça de Campinas, na primeira metade do século XIX, a sua liberdade incondicional. Busca detalhar todo o desenrolar do processo para analisar o papel da justiça de Campinas na relação entre escravos e senhores, a ação dos curadores e a luta desses escravos pela liberdade no período citado.

 

PALAVRAS-CHAVE: ESCRAVIDÃO – DIREITO – JUSTIÇA

 

 

O presente artigo situa-se na continuidade de pesquisa realizada sobre a escravidão em Campinas na primeira metade do século XIX, publicada pela Revista de Direito, da Faculdade de Direito de Leme, em suas edições anteriores. Nosso argumento central, ao contrário de outros autores, é o de que o Estado (e o Direito) mediava as relações entre escravos e senhores no Brasil do século XIX, intervindo nessas relações. A história de Águida e sua família é mais uma evidência de que nosso argumento é procedente.

A história da luta de Águida e sua família pela liberdade começa em Jundiaí, antiga vila da província de São Paulo, no início da década de 70 do século XVIII. Aos 30 de Novembro de 1771, a mulata Águida era batizada pelo vigário Ignácio Paes de Oliveira, que nela colocava os "santos óleos" da Igreja Católica. A recém-nascida era fruto do relacionamento afetivo de Nicássia, uma escrava solteira de Alberto de Oliveira Lima, e de João Cardoso, um trabalhador livre. O ritual do batismo foi feito na Igreja Matriz de Jundiaí. José e Maria, escravos do mesmo Oliveira Lima, foram os padrinhos de Águida. Apesar de Nicássia saber quem era o pai de sua filha, em seu batismo, registrado no livro reservado para os assentos de batismo de escravos, consta ser Águida filha de pai incógnito. Esta era a fórmula usual adotada pela Igreja para batizar as crianças nascidas de relacionamentos entre homens e mulheres não "abençoados" por ela.

Mas Nicássia não permaneceu como escrava de Alberto de Oliveira Lima. Entre 1771 e 1778, Nicássia acabou passando para o domínio de Pedro Rodrigues, irmão de João Cardoso. Talvez Pedro Rodrigues a tenha comprado em função das relações afetivas que seu irmão mantinha com a escrava, ou talvez, por alguma relação de parentesco entre Oliveira Lima e Pedro Rodrigues, este a tenha herdado. Não sabemos como ocorreu essa transição de proprietários. De qualquer forma, a condição de escrava de Águida parecia estar com os anos contados, afinal havia uma grande proximidade entre sua mãe escrava e seu pai livre, já que agora sua mãe era propriedade de seu tio.

E de fato, em 1778, quando Águida já tinha 7 anos de idade, João Cardoso dava ao seu irmão 5 doblas pela liberdade de sua filha. Pedro Rodrigues não parecia ser um rico proprietário de terras em Jundiaí, pois pelo menos uma vez a justiça tentou penhorar seus bens por motivo de dívidas. Numa oportunidade dessas, o alcaide João de Brito Leme tentou penhorar a própria Águida e seus filhos, algo que só não foi possível pelo motivo destes já estarem forros e libertos. Apesar disso, nenhum documento particular ou público havia sido feito para registrar a condição livre de Águida.

Quando falamos de seus filhos, nos referimos a Maria, batizada em 13 de Setembro de 1795, e Antonio, batizado em 1º de Novembro de 1797, ambos na Igreja Matriz de Jundiaí e filhos de pais incógnitos. Águida se fazia mãe aos 24 e 26 anos de idade. Apesar de serem libertos, na medida em que nasciam de uma mãe cujo ventre era livre, os batismos de Maria e de Antonio foram feitos no livro reservado para os assentos de batismos de escravos. No assento de batismo de Maria consta que Águida era "mulata escrava, aliás, agregada a Pedro Rodrigues da Silva". No assento de batismo de Antonio consta ser Águida "solteira, escrava de Pedro Rodrigues da Silva".

Águida continuou vivendo juntamente com Pedro Rodrigues, mesmo após João Cardoso ter pago 5 doblas por sua liberdade. Uma atitude absolutamente justificável quando era ainda criança e mesmo quando adulta, pois estaria em companhia de sua mãe. Além disso, lembremos que ela não tinha nenhum documento que comprovasse a sua condição de liberta, o que dificultaria qualquer pretensão de ir para longe do domínio de Pedro Rodrigues.

Porém, após o nascimento de Antonio, em 1797, falecia Pedro Rodrigues, dono de Águida. Não sabemos o ano do falecimento do pai de Águida, mas em 1798 João Cardoso também já não estava entre os vivos. Também não sabemos os motivos, mas após a morte de Pedro Rodrigues não foi feito inventário de seus bens, apesar deste ter filhos, inclusive alguns de menor idade e alguns bens, ou dívidas, a legar.

Mas, ao contrário do juiz de órfãos que não providenciou o inventário (havendo órfãos era sua obrigação abrir o inventário e lhes nomear curador), Águida, logo após a morte de Pedro Rodrigues, se preocupou em legalizar a sua condição civil, apelando para a justiça de Jundiaí. A história desse primeiro contato de Águida com a Justiça é relativamente simples. Em primeiro lugar, em 7 de Janeiro de 1799, Águida passou procuração a João de Brito Leme, o mesmo alcaide que fora penhorar os bens de Pedro Rodrigues, para que este a defendesse perante a justiça.

Em 8 de Janeiro de 1799, Águida, por seu procurador, apresentava uma petição ao Juiz Ordinário Salvador de Oliveira Prado, da Vila de Jundiaí, dizendo que precisava justificar-se perante a Justiça para documentar sua liberdade. A petição dizia o seguinte:

"Diz Águida fâmula que foi do falecido Pedro Rodrigues que ela justificante quer justificar perante Vossa Mercê os itens seguintes: Primeiro: que ela suplicante é filha natural de João Cardoso e de Nicássia que foi escrava do falecido Pedro Rodrigues; Segundo: que o dito João Cardoso já falecido pai da suplicante era irmão do dito falecido Pedro Rodrigues; Terceiro: que por serem os falecidos irmãos por essa causa tendo a suplicante sete anos de idade o dito seu pai dera 5 doblas ao dito falecido Pedro Rodrigues pela liberdade da suplicante o que não teve dúvida por serem irmãos; Quarto: que indo o atual alcaide que então servia João de Brito Leme fazer penhora nos bens do dito falecido Pedro Rodrigues a requerimento do Capitão Novaes da Freguesia de Cutia, respondeu o dito devedor Pedro Rodrigues que não dava a suplicante e seus filhos a penhora por serem forros e libertos..."

O cuidado e a precisão na qualificação de Águida pode não ser apenas um detalhe em sua petição. Revela, sim, o cuidado com que o seu procurador tratava a sua ação, pois "fâmula" (criada) era a designação compatível a quem, mesmo tendo sido escrava de Pedro Rodrigues e com ele vivendo após a sua liberdade, tinha a capacidade jurídica de nomear um procurador e que, portanto, era livre.

Esclarecidos os itens que precisavam ser justificados, Águida pedia que se passasse mandato para serem citados os herdeiros forçados de Pedro Rodrigues. Entre eles estavam Vicente da Costa (nome vulgar de Vicente José Machado) e sua mulher Maria da Silva, citados através de Carta Precatória, pois o casal residia na Vila de São Carlos (Campinas).

O guarda-mór Antonio Dias do Prado, 48 anos de idade, confirmou toda a história apresentada na justificação de Águida. Disse ser público que Águida era filha de Nicássia e João Cardoso, confirmou que Cardoso era irmão de Pedro Rodrigues e disse que sabia, por ouvir dizer, que antes de morrer João Cardoso havia pago 5 doblas a Pedro Rodrigues para conseguir a alforria de Águida. Quanto a história da tentativa de penhorar Águida e seus filhos, o guarda mor nada disse.

A segunda testemunha era a própria filha do falecido Pedro Rodrigues, Gertrudes da Silva Cardoso, solteira, que tinha naquele momento 20 anos de idade. A filha de Pedro Rodrigues confirmou toda a história, os quatro itens da justificação, ilustrando-a com detalhes. Dissera que o próprio pai havia lhe falado sobre a condição livre de Águida às vésperas de sua morte e que não havia passado Carta de Alforria por medo de que ela os deixasse. Gertrudes também disse que presenciara a ocasião em que houve a tentativa de penhora de Águida e seus filhos. A terceira testemunha dessa justificação era um outro filho de Pedro Rodrigues da Silva, Joaquim Rodrigues, solteiro, que tinha então 14 anos de idade, que confirmou toda a história da mesma forma que sua irmã Gertrudes. O juiz Salvador de Oliveira Prado, em meio a tamanha unanimidade, declarou Águida e seus filhos forros e libertos em sentença do dia 14 de Fevereiro de 1799.

Tudo parecia estar tranqüilo para Águida, em relação à sua liberdade e a de seus filhos. Sendo livre desde os 7 anos de idade, seu ventre era livre e isso estava documentado, provado e testemunhado pelos próprios herdeiros na justificação promovida em juízo. Sua condição de liberta e a condição livre de seus filhos eram, enfim, legais, mesmo sem a posse de sua Carta de Alforria.

Não obstante a comprovação legal de sua liberdade, um detalhe nos chama a atenção. Mesmo sendo liberta, seus filhos foram batizados em um livro de assento de batismo reservado para os escravos e não lhe foi passada Carta de Alforria. É possível que tal procedimento não tenha sido uma opção de Águida, mas sim uma estratégia de Pedro Rodrigues, no sentido de que este pudesse, eventualmente, reivindicar em juízo sua suposta condição de escrava ou para simplesmente reforçar os laços de dependência e submissão para com ele. Essa segunda hipótese fica clara nas palavras de Gertrudes, confessando que Pedro Rodrigues tinha medo de que ela os deixasse. Mesmo assim, ao final da justificação de 1799, tudo parecia estar resolvido.

Porém, vítima talvez da ganância de um inescrupuloso herdeiro, Águida e seus filhos, e depois seus netos, teriam que lutar muito para conquistar suas liberdades. Após 8 anos de liberdade, Águida e seus filhos se viam novamente diante da possibilidade de retornar ao estado de escravidão. Em 1807, Vicente José Machado, genro do falecido ex-senhor de Águida (marido de Maria da Silva, filha de Pedro Rodrigues), residente em Campinas, propôs na justiça de Jundiaí, juntamente com os irmãos Joaquim e Gertrudes Rodrigues, uma ação de libelo tentando provar que Águida e seus filhos eram, em verdade, escravos e não forros.

Vicente José Machado argumentava que após a morte do ascendente de sua mulher, não havia sido feito inventário, "ficando a herança sem legítima administração " e os autores, sendo todos menores de 25 anos e um menor de 14, pereceram a falta de tutores e curador, "que nunca lhes foi dado, requerido e nomeado". Fruto dessa orfandade, ignorância e simplicidade, os herdeiros, segundo o libelo, foram induzidos pela "simulada e maliciosa pretensão" de Águida, que por um "irrisório procedimento de uma simples e material justificação" pretendia conseguir a manumissão ou relaxamento de seu cativeiro. Dessa forma, a sentença proferida naquela justificação deveria ser considerada nula e clandestina e Águida considerada escrava dos herdeiros, devendo-lhes obediência e respeito. Os herdeiros reclamavam que eram menores de idade, inocentes, órfãos, fracos e sem tutores, não podendo aparecer em juízo. Dessa forma, tentavam provar a "falsidade da prova, a nulidade da sentença e a incompetência do juízo", que deveria ser o de órfãos. Os herdeiros queriam, em suma, que Águida fosse restituída ao mesmo cativeiro "em que nascera e em que sempre estivera".

A primeira testemunha daquele libelo promovido contra Águida em Jundiaí, Maximiano Leme Barbosa, 43 anos, declarara que Águida sempre vivera em companhia de seu senhor Pedro Rodrigues, que depois da morte deste, ela "estava com uns e com outros". José Branco de Oliveira, 26 anos, segunda testemunha, declarara que sabia que não havia sido feito inventário após a morte de Pedro Rodrigues, que Águida sempre esteve em companhia de seu senhor e que ela "ainda esteve algum tempo ainda em companhia dos filhos e filhas até o ponto de se forrar". João Manoel de Siqueira, 42 anos de idade, terceira testemunha, confirmou a falta de inventário após a morte de Pedro Rodrigues, disse que Águida sempre serviu ao mesmo e que ela, após a morte de Pedro, esteve por algum tempo em companhia de Gertrudes.

Águida solicitava também o traslado de seu assento de batismo e de seus filhos Antonio e Maria, a sentença proferida nos autos, o dia, mês e ano em que ela foi citada por Carta Precatória, se a letra em que foi escrita a dita sentença era diferente da do juiz e de seu acessor e, finalmente, se havia mais alguma coisa escrita nos ditos autos.

A sentença do juiz Luis José Pereira foi proferida em 04 de Fevereiro de 1809. Através da sentença, pudemos constatar que Águida não apresentou um libelo de contrariedade e somente apresentou a sentença da justificação de 1799 como forma de se contrapor ao libelo acusatório. O processo de justificação foi considerado ilusório e Águida e seus filhos sentenciados a voltar para o cativeiro. O argumento do juiz era de que não se provara de forma atendível que o pai dos herdeiros recebera algum dinheiro pela liberdade de Águida. Além disso, não havia nenhum título ou documento que comprovasse a sua imaginada liberdade. Além disso, Águida batizara os filhos como escravos, como provava os assentos de batismo. Para o juiz, isso provava claramente o reconhecimento de que Águida sempre estivera em cativeiro. Diante de indubitáveis fundamentos, "o processo de justificação fora ilusório, sendo notória a sua nulidade e tal sentença dada em juízo incompetente".

Após a sentença, segue o traslado dos dois últimos itens solicitados por Águida em sua petição de 1827. A Carta Precatória pela qual ela foi citada datava de 14 de Novembro de 1807. Em relação a letra com que fora escrita a sentença, notava o escrivão de Jundiaí, em 1827, Modesto Pereira Lima, que era "muito diferente da assinatura do juiz e do acessor". Notava também que não haver termo de publicação da sentença.

De fato, a solicitação de traslado desses itens do libelo parece ter sido coerente com as intenções de Águida. Apesar de nele haver evidências que poderiam pesar contra Águida no julgamento (como o fato de ter vivido sempre em companhia de seu senhor), uma testemunha declarou que isso ocorreu "até o ponto de se forrar" e as outras duas deixam claro que após a morte de Pedro, ela não se manteve como escrava dos herdeiros, mas "esteve por algum tempo em companhia de Gertrudes" ou "estava com uns e com outros".

Mas há um detalhe que deve nos chamar mais a atenção, pois ele nos revela algo sobre a percepção de Águida sobre as formalidades legais e sobre a sua capacidade de lembrar pequenos detalhes fundamentais para suas pretensões. A primeira vista, parece não ter sentido que Águida solicitasse a transcrição de seu batismo e de seus filhos, pois sendo este feito em um livro reservado para o batismo de escravos isso só poderia pesar contra ela. Observemos que na sentença o juiz utiliza esse argumento para reescravizá-los. Porém, no assento de batismo de Maria, a sua primeira filha, consta ser Águida "escrava, aliás agregada de Pedro Rodrigues da Silva", um detalhe que o suposto juiz não se deu ao trabalho ou se esqueceu de comentar. Águida, com certeza, não se esqueceu de tal detalhe.

Dissemos que o "suposto juiz" não se deu ao trabalho de comentar tal detalhe, pois fica clara a intenção, na petição, de insinuar uma grande "trambicagem" no processo de 1807, pois, segundo o próprio escrivão de Jundiaí, a letra com que fora escrita a sentença "era muito diferente da assinatura do juiz e do acessor". Em 1828, Águida irá acusar Vicente José Machado de ter arranjado a sentença por meios ilícitos. Não sabemos explicar o motivo pelo qual Águida solicitou a data em que foi citada por Carta Precatória, mas isso nos revela um detalhe: ela já não estava em Jundiaí e deveria estar vivendo como liberta em alguma outra cidade (talvez Porto Feliz, onde foi capturada por Vicente José Machado após a sentença de Fevereiro de 1808).

Porém, a despeito de tudo isso, Águida e seus filhos foram novamente escravizados, em 1808, pelo herdeiro de Pedro Rodrigues, Vicente José da Costa, que inclusive ficou sendo o único dono de toda a família, pagando dívidas antigas de Pedro Rodrigues. A partir de então, Águida e seus filhos viriam morar em Campinas com Vicente José Machado.

Mas, apesar da sentença de 1808 e da reescravização, a sorte de Águida e de seus filhos ainda não estava selada. Em 07 de Julho de 1828, Águida, seus filhos e seus netos, apresentavam a seguinte petição à justiça de Campinas:

"Dizem Águida Rodrigues e seus filhos Antonio e Maria e seus netos Luis, Teodoro, Benedita e Jorge, supostos escravos de seu suposto senhor Vicente José Machado reconhecido vulgarmente por Vicente da Costa que pretendendo eles reivindicar sua liberdade há tantos anos esbulhada precisam que Vossa Mercê lhes nomeie curador, lhes mande passar Alvará de Vênia e mande passar mandato para serem os suplicantes depositados para efeito de requererem termo de reconciliação pelo juízo competente".

O leitor, é claro, já atentou para a data desta petição: 7 de Julho de 1828. Lembrou-de também a data em que Águida solicitou o traslado da documentação de Jundiaí: 11 de Maio de 1827. Sim, Águida e seus filhos já haviam solicitado, 14 meses antes de acionar a justiça de Campinas contra Vicente, toda a documentação dos dois processos anteriores efetuados em Jundiaí. Mesmo reconduzidos ao estado de escravidão, eles já "preparavam o terreno" para novamente tentarem conquistar a liberdade. É muito provável que, após virem para Campinas, Águida e sua família tenham estabelecido relações com muitas pessoas que os ajudaram a conseguir seus objetivos. Porém a desenvoltura com que se relacionavam com a justiça evidencia um conhecimento considerável de seus direitos. Por outro lado, o fato de procurar a justiça em 1799 para legalizar sua liberdade, mesmo que também nesse caso tenham sido ajudados por "protetores", evidencia a consciência de que, na falta de uma carta de alforria, não bastava um "contrato verbal privado de liberdade" com o senhor (a alforria concedida pelo pagamento de João Cardoso), mas que era necessário documentar publicamente a referida liberdade. Muito mais importante, inclusive, no momento da morte de seu ex-senhor.

A busca da liberdade, ao que parece, não era uma luta travada aleatoriamente; era um projeto conscientemente traçado e, provavelmente, minunciosamente articulado por esses cativos. É provável que Águida e seus filhos tenham tido a ajuda de algum solicitador em 1827, mas os autos não fazem menção a isso. Porém, com certeza não tinham curador nomeado. Sem curador, a família já travava relações com a justiça de Campinas com muita desenvoltura e procurava levantar documentos relevantes para comprovar sua liberdade.

Pelas evidências que encontramos, sabemos que Águida e seus filhos viveram libertos de 1799 a 1808 e sob o domínio de Vicente José Machado em Campinas desde que a suposta sentença de 1808 foi proferida. Para isso, foi necessário que Vicente José Machado fosse capturar toda a família em Porto Feliz. Infelizmente, não sabemos em que ano isso ocorreu, mas é bastante provável que tenha sido logo após a sentença ser proferida.

O leitor também certamente já observou que essa luta judicial não girava mais em torno de uma liberdade. Era a liberdade ou escravidão de uma família de 7 pessoas, distribuídas em três gerações. O herdeiro Vicente tinha razões de sobra em se esforçar para manter esta família no cativeiro. Por outro lado, os cativos também tinham razões para lutar por uma vitória judicial, pois seria a afirmação da liberdade de toda a família.

O juiz atendeu ao pedido de Águida e nomeou para curador o cirurgião mor Francisco Álvares Machado e Vasconcelos, um emérito letrado campineiro, que no dia seguinte assinou o termo de curadoria. Em nova petição de 09 de Julho, a família Rodrigues, agora através de seu curador, solicitava que um oficial de justiça os tirasse do poder de Vicente José Machado para que eles pudessem demandar na justiça. Essa era uma solicitação habitual nesses casos e o juiz, no mesmo dia, nomeou Antonio de Godoi Campos para depositário de toda família. Mas a prontidão do juiz não pareceu ser tão receptiva como pode parecer à primeira vista, pois Antonio de Godoi Campos era genro de Vicente José Machado. Mas Águida e sua família parecem ter tido sorte com a nomeação de Vasconcelos, que agiu rapidamente. No dia seguinte ao da nomeação, o curador protestou "com profundo respeito" contra a nomeação de Campos nos seguintes termos:

"o venerando despacho por Vossa Senhoria proferido no requerimento retro não deve ter lugar e carece de reforma porquanto: sendo o fim do depositário fazer cessar a coação e colocar os supostos escravos em lugar onde possam legalmente reivindicar sua liberdade não podem conseguir estes propostos fins ficando depositados a tão grande distância da Vila e em casa de Antonio de Godoi Campos que sendo genro do suplicado Machado é por parte de sua mulher esbulhados por seu sogro (sic) da liberdade do curador (sic) da suplicante e a vista de tudo vem a ser infrutífero e suposto o tal depósito. Portanto, pede a Vossa Senhoria que movendo-se aos sentimentos da justiça, da filantropia e piedade reforme seu venerando despacho nomeando depositário residente na Vila e isento de parentesco e relações de intimidade com o suplicado."

A nomeação de um curador não parece ter sido uma mera formalidade para Águida, pois, quando esse foi exigido para que cumprisse suas funções defendendo os interesses de seus curados, agiu rapidamente, com muita eficiência, com muita diplomacia e com muito senso de justiça; afinal, serem depositados com o genro de seu suposto senhor não impediria uma possível tentativa de coação. O juiz José de Sousa Siqueira considerou procedentes os argumentos do curador e no mesmo dia nomeou Egídio de Sousa Aranha para depositário. Porém, Sousa Aranha pediu que para que fosse dispensado do encargo por motivo de uma viagem que iria fazer proximamente e do medo de que em sua ausência

"os ditos escravos (viessem a se) desarranjar com os do suplicante que são em grande número, acrescendo mais sobre tudo isso que na casa do suplicante presentemente graça (sic) o contágio de bobas que quase no geral todos sofrem..."

Mesmo que as desculpas de Sousa Aranha fossem verdadeiras, parece que ser depositário de escravos em casos de ação judicial em que estes reivindicavam a liberdade não era algo muito agradável para quem era designado para isso, especialmente se o senhor questionado não tivesse muita intimidade com essas tais "licenças jurídicas", no caso o direito de o escravo ser depositado em poder de outra pessoa para cessar possíveis coações. Sobre isso sabemos apenas que Vicente José Machado era analfabeto, pois assinava em cruz, o que certamente demonstra que ele não era um catedrático em direito.

No mesmo dia da nomeação de Sousa Aranha, outra petição do curador chegava ao juízo. Temendo serem açoitados por Machado, Águida e seus descendentes, através do curador, solicitavam ao juiz que mandasse o próprio escrivão da justiça para extraí-los do poder de Machado. Mas não era só isso. Pediam também que o alcaide acompanhasse o escrivão e declarassem na certidão o estado de saúde em que encontrariam os supostos escravos. Ambos foram ao sítio de Machado e cumpriram o mandato da justiça, verificando que o estado de saúde de todos era bom, não parecendo terem sido castigados recentemente. Porém, Luis, filho de Maria e neto de Águida, não foi entregue,

"por estar liberto na pia, que ele (Machado) o libertara e por já estar assim convencionado com o juiz curador..."

Mesmo não sendo um bacharel em direito, mesmo lutando pela manutenção de sua propriedade escrava, mesmo sendo talvez um pouco violento e, como veremos adiante, mesmo sendo pouco dado às "coisas da justiça", Vicente libertava na pia um dos netos de Águida. Não conhecemos os motivos que o levaram a libertar Luis. Atitude sem muita conseqüência talvez, uma vez que dificilmente Luis deixaria a família e a dependência de Vicente. Adiante, Vicente José Machado irá argumentar que Pedro Rodrigues, seu falecido sogro, dizia para a justiça que Águida era liberta apenas para se livrar de ser ela penhorada por suas dívidas. Talvez ele tenha aprendido tais procedimentos com o seu sogro...

Com a recusa de Sousa Aranha, o juiz nomeou o alferes José Marcelino de Campos, sobrinho de Vicente José Machado, com quem foram depositados em 14 de Julho de 1828. Desta vez, o curador Francisco Álvares Machado não protestou contra a nomeação de um parente do suposto senhor de Águida e sua família. Em vez disso, no dia 15 de Julho o curador solicitava ao juiz que intimasse Vicente José Machado para uma audiência de reconciliação, pedido este aceito pelo juiz que marcou a audiência para o dia 19 do mesmo mês.

No dia 19 de Julho, compareceram perante o juiz o curador de Águida e Vicente José Machado. O juiz, procurando reconciliar as partes sem fazer prosseguir o processo e:

"a fim de prevenir demandas de onde se originam despesas, ódios e inimizades achava justo que cada uma das partes apoentes entregasse a ele juiz todos os documentos em que estribam suas respectivas pretensões para que mandando o mesmo juiz à Corte do Rio de Janeiro examiná-los por dois doutores de conceito daquela Corte e estes depois de pesarem as razões de uma e de outra parte decidirão enfim se os libertandos são na realidade forros ou se escravos do suplicado..."

Ao que parece, o curador, inicialmente, procurou não estabelecer uma atitude de agressividade em relação a Vicente. Como emérito letrado campineiro, futuro sogro do famoso Hércules Florence, talvez não lhe conviesse entrar em atrito mais áspero com o seu contendor naquela querela judicial. Também não procurou insistir junto ao juiz, que pela segunda vez nomeava um parente de Vicente para depositário de Águida e seus filhos e netos, "esquecendo" que alguns dias antes havia aceito o argumento de que não seria apropriado nomear para depositário um parente de Machado.

Por outro lado, é evidente que o curador Vasconcelos já vinha estudando os processos de 1799 e 1807 com alguma antecedência, pois o juiz propõe que lhes "entreguem todos os documentos em que estribam suas respectivas pretensões". É possível até que o próprio pedido de audiência para reconciliação tenha sido articulado com antecedência pelo curador e pelo juiz, pois, pelo que consta, a única parte da querela que possuía documentos para serem entregues era a dos autores, Águida Rodrigues e sua família. Considerando que os documentos de Jundiaí já estavam com Águida desde Maio de 1827, é possível imaginar intensas articulações de Águida e a busca de solidariedades para a sua causa.

O juiz, por sua vez, parecia não querer ver a querela avançar em sua jurisdição e tentava uma solução de alto nível. O ambiente parecia ser de hostilidades, já que o juiz comentava a possibilidade de "ódios e inimizades". De fato, a primeira petição de Águida ao juízo de Campinas parece surpreender a Vicente, já que os supostos escravos levantaram a hipótese de Vicente se tornar violento a ponto de açoitá-los no momento em que o oficial de justiça lhe entregasse o mandato de depósito. É claro que isso poderia ser apenas um ardil dos supostos escravos para angariar simpatias para a sua causa. Mas o processo (lembremos que o pedido da documentação de Jundiaí foi feita em 1827) parecia estar sendo engendrado sem o conhecimento de Vicente, que pode ter sido surpreendido quando foi chamado à justiça. Não é difícil imaginar qual foi a reação de Vicente quando ficou sabendo que meia dúzia de seus escravos estavam pleiteando a liberdade.

Apesar disso, o curador da família Rodrigues (Águida, seus filhos e netos) e Vicente José Machado concordaram com a solução proposta pelo juiz. Com a concordância, parecia que a demanda já estava chegando ao final. Porém, no dia 07 de Agosto, Vicente José Machado solicitava ao juiz nova audiência de reconciliação, que ficou marcada para o dia 09 seguinte. O suposto senhor de Águida e seus filhos e netos pedira a audiência para desistir do primeiro termo de reconciliação, já que "não tinha dúvida de defender-se de qualquer demanda". Na petição em que solicitava a audiência, Vicente argumentava que concordou com os termos do juiz pois não estava bem aconselhado e que tal decisão lhe traria "notável prejuízo".

O curador, ao ver a atitude de Vicente Machado, propôs, com muito boa vontade, em nome de seus curatelados que se ele abrisse mão de Águida e de seus descendentes naquele momento eles se obrigariam a não reclamar os jornais, prejuízos, perdas e danos e injúrias recebidas. Respondeu o suposto senhor de Águida que não abria mão dos escravos, que ele os havia comprado e que só lhes daria liberdade se eles apresentassem documento de liberdade. O curador Vasconcelos iniciou então um longo e um pouco entediante discurso em defesa de seus curatelados. Disse que sendo sua intenção lutar pela liberdade barbaramente usurpada por Machado:

"e não querendo senão o que fosse honesto e justo, com franqueza aquiesseram (sic) na justa e virtuosa reconciliação proposta pelo meritíssimo senhor juiz de paz; pois só não busca conselho quem deseja errar e tão clara tem sido sua boa fé e tão religiosamente tem guardado seus empenhos que nem um passo mais deram na carreira de seu processo esperando igual pontualidade de parte de seu suposto senhor o qual em sua simulada convicção não procurou senão ganhar tempo e desempenhar a ardilosa trama de os arrastar de novo em cativeiro, o que tanto assim é que logo depois de ter assinado a primeira conciliação foi seu filho e genro à casa onde se acham depositados os libertandos e aí, ora com mimos, ora com ameaças, quis seduzi-los e induzi-los a requererem ao juiz que lhes fizesse regressar ao cativeiro e desistindo de sua liberdade; descorçoado por este lado e enquanto os libertandos esperavam o cumprimento da reconciliação, passou o dito suposto senhor a requerer ao juiz ordinário que mandasse os libertandos para sua casa e até chegou a agravar do juiz por não convir em tão despótico e sub-reptício procedimento e, finalmente, nada podendo arranjar nas veredas escuras e tortuosas que tem trilhado desde a época da reconciliação até este instante derriba finalmente o véu em que envolvia e patenteia ao público toda a extensão e iniquidade de seu projeto, (?) com toda a inócia de justiça satisfazer sua desbocada ambição e cevar-se de novo nas lágrimas e nos gemidos dos libertandos os quais asseveram perante Deus e todos os améns que estão na crença de que lhes favorece a lei no projeto de reivindicação de sua usurpada liberdade e que unicamente pretendiam por estimá-la (?) não igualmente deixar de comentar a cegueira e riqueza do obcecado coração de seu antigo opressor, porém que vendo-se na dolorosa mas necessária precisão de demandar seu direito interpondo um processo ao seu suposto senhor apesar de seu abandono, de sua pobreza e do aniquilado estado em que se acham abismados, erguendo seus olhos e suas mãos suplicantes ao Todo Poderoso, às Justiças Imperiais e ao coração de todos os homens filantropos e bem fazejos confiados na justiça de sua causa não interpôs seu libelo ao homem duro que os tem oprimido protestando por seus jornais usurpados, prejuízos, perdas e danos e não desistindo do direito a um libelo de injúria atroz por abandono e cruel modo com que foram freqüentemente apreendidos e postergados na longa série de anos em que foram injustamente retidos em casa de seu suposto e cruel senhor".

Ao que parece, a situação de Vicente, nessa demanda judicial, não era das melhores. No momento de sua desistência do primeiro termo de reconciliação, o fato de exigir de Águida "documento de liberdade", demonstra o seu conhecimento jurídico primário de que a liberdade precisava estar documentada e que a inexistência de um documento público de liberdade era um óbvio instrumento de coação contra Águida, talvez já no tempo em que ela era uma suposta escrava de Pedro Rodrigues.

Provavelmente, o sitiante campineiro desistira do termo de reconciliação pois já prevendo que não iria conseguir um amigo para lhe escrever a sentença, procurava desde então outros meios "mais eficazes" para manter o domínio sobre a família Rodrigues. O discurso do curador revela como Vicente se relacionava com a justiça: com muito pouca habilidade. Tentemos imaginar os acontecimentos: um sitiante analfabeto, como a maioria, um pouco matreiro, bastante desconfiado, usuário talvez de meios sub-reptícios para alcançar certos objetivos, com as mãos calejadas pela rudeza do trabalho (um pouco menos calejada do que as de seus escravos, é claro), ouvindo dois homens letrados relatando as pretensões de liberdade de seus seis escravos. Ao ouvir o juiz propor uma solução "de alto nível", concorda rapidamente para se ver livre dos dois letrados, marca com uma cruz a sua assinatura e vai embora tentando imaginar uma forma de se livrar daquela incômoda situação, sem perder seus escravos. Sua primeira atitude, como procura fazer crer o curador, é a de procurar os próprios escravos para, primeiro com uma conversa mansa e depois em um tom de ameaça, tentar fazer com que eles desistam de seus propósitos. Não obtendo resultado positivo, passa a pedir ao juiz que lhe mande os escravos de volta para sua casa e quando recebe uma negativa mais incisiva (talvez pela recusa de um suborno), passa a injuriar o próprio juiz. Verificando a impossibilidade de conseguir a devolução de seus escravos por meios extra-legais, aí sim vai procurar auxílio profissional de um advogado. Podemos estar exagerando, mas ficamos com a nítida impressão de que Águida e sua família, cativos, possuíam muito mais habilidade e engenhosidade com a justiça do que Vicente José da Costa, suposto senhor desses mesmos cativos.

Podemos conhecer um pouco mais de Vicente José Machado pelo seu inventário iniciado em 1831. Tendo sido casado pela segunda vez com Dona Escolástica Teixeira de Arruda, morreu sem deixar testamento, mas com 11 filhos e 14 netos como herdeiros de seus bens. Não eram poucos os bens de Machado. Deixava um sítio no Bairro de Mato Dentro, com instalações de alambique de cobre, avaliado em 4:800$000, morada de casas na Rua do Rosário avaliada em 340$000, outro sítio em Cachoeira com engenho e casas avaliado em 3:600$000, além de seus escravos. Somam-se na avaliação do seu inventário, feita em 03 de Novembro de 1831, 46 escravos, sendo pelo menos 28 africanos. Todos esses escravos somavam a importância nada desprezível de 17:480$000. Águida e seus descendentes, portanto, não estavam demandando contra qualquer campineiro, mas com um dono de engenho de posses consideráveis. Num momento em que o cultivo da cana de açúcar crescia bruscamente em Campinas, (e a necessidade de escravos aumentava) perder a posse de 7 escravos (mais de 10% de sua força de trabalho) não seria nenhum motivo de alegria para Machado.

Ademais, o que chama a atenção no discurso do erudito curador Vasconcelos? Quem seria este homem letrado que utilizava palavras tão duras e cultas em defesa de uma família de escravos? Tal discurso seria pura hipocrisia ou simplesmente uma fórmula jurídica corriqueira, baseado em mera retórica?

O curador Vasconcelos era um homem de muitas posses. Sendo médico, possuía duas casas de morada, ambas na cidade, que foram avaliadas no inventário feito por ocasião de sua morte, em 1846, por 7:500$000, além de terrenos na cidade, ouro e prata. Era também proprietário de 20 escravos, avaliados em quase 12 contos de réis, 13 dos quais eram seguramente africanos. Pelo seu testamento, feito alguns dias antes de falecer no Rio de Janeiro por onde estava viajando, sabemos que Vasconcelos havia nascido na cidade de São Paulo em 1791 e na ocasião de sua morte deixava uma filha legítima e um filho natural como herdeiros de seus bens. Na ocasião de sua morte, sua filha já estava casada com Hércules Florence. Pedia somente o indispensável em seu enterro para salvar a decência e deixava sua terça para sua esposa. Além disso, não libertava nenhum escravo. Também foi arrolada e avaliada em seu inventário a sua considerável biblioteca. Eram quase 250 volumes de livros que iam desde um Manual do Padeiro até as obras de Darwin, passando pelos muitos livros de medicina e por obras de pensadores políticos como Bemjamim Constant e Sismondi.

Esse era o curador de Águida. Seria o seu discurso mera retórica ou simples hipocrisia, movido por algum interesse imediato pelos cativos? Afinal ele também era proprietário de escravos. É possível que também o fosse; é difícil avaliar com precisão. A sua pronta atuação no momento da nomeação do genro de Vicente José Machado, cremos, demonstra que, no mínimo, entendeu o seu papel de curador de forma séria e conseqüente. Seu discurso continha uma noção de justiça que era fundamental para contestar o exercício do poder privado de Vicente sobre a família de cativos: a sua ilegitimidade. Cremos ser possível que Vasconcelos acreditasse nessa noção de justiça. Mesmo sendo uma relação social desigual, a relação entre senhores e escravos teria que ser legítima e legal aos olhos do Estado e da sociedade. Teria que ser guiada e regulada por alguns princípios éticos e legais, sob pena de se fundar somente no poder da força, algo muito perigoso para a manutenção de própria hegemonia dos proprietários de escravos. Dessa forma, não nos parece que o ritual da justiça fosse uma mera encenação teatral, sendo também isto, e não nos parece que o empenho do curador Vasconcelos fosse movido apenas por uma suposta hipocrisia de quem também era um proprietário de escravos. E mesmo que o fosse, estava servindo aos propósitos de Águida e de sua família.

Dois dias após seu inflamado discurso, em 11 de Agosto, o curador de Águida entrou com outra petição solicitando que o juiz nomeasse outro depositário, lembrando sutilmente ser o alferes José Marcelino amigo e sobrinho de Vicente Machado e justificando o pedido por ser a casa do alferes longe da Vila, não podendo assim Águida e seus filhos e netos cuidarem de seus negócios. O juiz nomeou o capitão Pedro Gorgel Mascarenhas que, ao receber o oficial de justiça não assinou o termo de depósito com a desculpa de que não era casado e que não queria receber mulheres em sua casa. Foi então a vez da nomeação de Pedro Taques de Almeida Alvim, que aceitou e os recebeu em sua casa.

A recusa do capitão Mascarenhas, com uma desculpa pouco convincente, evidencia mais uma vez os constrangimentos que um depositário poderia sofrer ao longo de um processo judicial envolvendo a liberdade de escravos. As recusas dos depositários nomeados e os protestos do curador contra a nomeação de depositários próximos ao suposto senhor de Águida também evidenciam que o papel do depositário deveria não ser uma mera formalidade legal, mas sim uma prática que deveria ser levada a cabo com um mínimo de senso de justiça e que a função do depositário era vista como algo que, de fato, deveria fazer cessar possíveis tentativas de coação. Também não podemos deixar de lembrar que, no caso de os supostos escravos perderem a ação judicial, poderia haver a possibilidade de o depositário ser chamado à justiça para restituir os jornais, devidos ao senhor dos escravos, correspondentes ao período em que teve o domínio sobre estes escravos. Também parece estar evidente que a alegação de que o depositário morava longe da cidade era utilizada pelo curador para legitimar suas queixas com relação à escolha de depositários com alguma relação de parentesco com o suposto dono de Águida, sendo uma forma diplomática de não ofender o juiz e facilitar o propósito de proteção aos escravos que poderiam ainda "cuidar de seus negócios", que, no contexto, poderia ser os negócios de sua ação de liberdade. Quanto às atitudes do curador, parece que desistiu de negociar e partiu para a ofensiva contra Vicente.

No mesmo dia 11, Águida, através do procurador Antonio José de Carvalho Guimarães, entrava com uma petição na justiça de Campinas, solicitando que o juiz citasse a Vicente José Machado para que este respondesse a um libelo cível que estava oferecendo. Esta petição fora pedida através do procurador Guimarães, pois após o fracasso da reconciliação, Águida, por seu curador, passou procuração para ser representada na justiça. Além de Guimarães, foram nomeados mais dois procuradores em Campinas, quatro na cidade de Itu, que era a cabeça da comarca, e mais três na cidade do Rio de Janeiro. Vicente José Machado, por sua vez, no mesmo dia em que Águida apresentava a procuração, também passava documento entregando a Manoel Joaquim do Sacramento Mattos o direito de representá-lo em juízo. Ao que parece, o curador levou tão a sério sua função que tratou de colocar o problema em mãos de advogados. Nomeando procuradores em Itu e no Rio de Janeiro, já antevia que a querela judicial iria para instâncias superiores a de Campinas.

O traslado de ambos os processos de Jundiaí, solicitado por Águida em 1827, acabou sendo anexado ao processo de Campinas no mesmo dia em que o procurador Guimarães entrava na justiça para reivindicar a liberdade de Águida e seus descendentes, apresentando o libelo.

O libelo de reivindicação de liberdade de Águida argumentava que ela era livre desde os 7 anos de idade e que sua liberdade fora devidamente documentada através de justificação feita no juízo de Jundiaí em 1799, ficando a autora e seus filhos livres e gozando de plena liberdade até o ano de 1807 perante os herdeiros de seu falecido senhor. Em 1807, prossegue o libelo, "o espírito das trevas suscitou no réu a diabólica lembrança de querer cativar" Águida e seus filhos, "para o que pôs em campo com o seu dinheiro aos dois seus cunhados Joaquim Rodrigues e Gertrudes Rodrigues", propondo ação de libelo contra a autora Águida, libelo este que não destrói a essência da verdade daquela justificação. O argumento de que os herdeiros eram menores não poderia ser levado em conta para Vicente José Machado, que na época já era casado e bem podia opôr-se, já que fora citado. Também argumentava que se a justificação era nula em razão de não se dar curadores aos herdeiros menores, o libelo também era nulo, pois em 1807 o herdeiro Joaquim Rodrigues havia de ter menos de 22 anos, não podendo assim figurar em juízo sem assistência de curador. Dessa forma, a incompetência do juízo também se dava na ação de libelo, pois não foi proposta no juízo de órfãos. Outra argumento do libelo é que se os menores não tinham idade para aparecer em juízo, tinham idade suficiente para aparecer como testemunhas, o que juntamente com as outras testemunhas era suficiente para sentenciar a justificação pela verdade sabida, que é a que serve.

Observava o libelo que Águida e seus filhos ficaram de posse de suas liberdades pelo espaço de 8 anos e que não podiam ser dela esbulhados senão através de uma outra sentença que fizesse trânsito em julgado. O libelo também acusa o advogado de Vicente José Machado de ter "arranjado" aquela sentença, sendo escrita por uma letra diferente da do juiz e de seu acessor; sentença esta, inclusive, que não fora publicada até o momento em que o libelo era apresentado e que por isso não fizera trânsito em julgado. Não fora em virtude dessa sentença que Vicente Machado renovou o cativeiro de Águida e seus filhos, mas sim por um ato de violência atroz que cometeu, indo sem ordem da justiça buscá-los na Vila de Porto Feliz, agarrando e trazendo-os para sua casa, tratando-os com uma dureza sem igual e "matando-os de surras". O libelo terminava com o pedido de que Águida e seus filhos fossem julgados libertos e forros e Vicente José Machado condenado a lhes restituir os jornais de todo o tempo em que injustamente os manteve em cativeiro, além de ser penalizado pela justiça pelos atos de violência que praticou.

Após a apresentação do libelo, o procurador de Vicente José Machado, Manoel Joaquim do Sacramento Mattos, solicitou fiança aos custos do processo. Foi o próprio capitão Pedro Taques de Almeida Alvim, depositário de Águida e seus descendentes, quem ofereceu a fiança e aos 21 de Agosto tal exigência foi cumprida em audiência, garantindo as custas e todos os danos e prejuízos "não só neste juízo como até o último a que (pudesse) subir a (...) causa".

A fiança até a última instância na qual pudesse ir parar a causa de Águida foi uma exigência de Vicente José Machado. Não o fora por simples capricho do réu, pois em 3 de Outubro, o procurador de Vicente solicitava em superior juízo que se mandasse passar mandato avocatório para que o processo fosse lá julgado. O juizado de Itu, cabeça da comarca, acatou o pedido e o processo foi para lá remetido em 18 de Outubro de 1828.

Em Novembro desse mesmo ano, Vicente José Machado tentou remover Águida e sua família do depositário Pedro Tacques de Almeida Alvim. Remetendo uma petição ao Superior Juízo de Itu, solicitava que se nomeasse para depositário a José de Sousa Cerqueira, pois Alvim era inimigo público de Vicente e abertamente vociferava que no caso de que este obtivesse sentença a favor, esconderia os escravos. O juiz aceitou o argumento e nomeou Cerqueira para depositário. No entanto, o curador Vasconcelos interviu embargando o mandato do juiz. Não pudemos saber qual a decisão final, pois o embargo está incompleto no Tribunal de Justiça de Campinas

Parece estar claro, agora, que de fato Águida e seus descendentes haviam tecido redes de relacionamento entre os "homens bons" de Campinas, para que estes os ajudassem em sua tentativa de recuperação de suas liberdades. Parece também estar claro que estava instaurado um clima muito pouco amistoso entre os defensores da liberdade de Águida e seus descendentes e Vicente José Machado.

A história de Águida reaparece na justiça de Campinas apenas em 1830. Foi nesse ano que o Superior Juízo da Comarca, em Itu, remeteu Carta de Artigos para Inquirição de testemunhas, as quais deveriam responder a um libelo de contrariedade de Vicente José Machado.

O libelo argumentava que Pedro Rodrigues nunca recebera dinheiro algum pela liberdade de Águida, vista a indigência de João Cardoso que nada possuía e vivia da caridade de Pedro Rodrigues. Acusava Águida de utilizar as dívidas de seu senhor para incentivar a fraude da idéia de que eram libertos, pois assim escapariam da penhora. Dessa forma, argumentava o libelo de contrariedade, foram os herdeiros enganados temendo que os credores de seu falecido pai

"tirassem a autora (Águida) pelas dívidas do mesmo sem reflexão ao logro que lhes prepudiava (...) por serem (inocentes) e todos de menor..."

Argumenta também que foi em virtude da sentença de 1808, que impetrou na justiça alguns anos depois e com mais juízo de razão, que Vicente José Machado fora buscar Águida e seus descendentes, com mandato legal, na Vila de Porto Feliz. Após a captura de Águida, sendo esta convencida pela sentença judicial a se por sob a autoridade dos herdeiros, Vicente a comprou pela quantia de 281$600, pagando dívidas do falecido Pedro Rodrigues. Após a compra, argumenta, ficou Águida servindo ao autor por 20 anos como sua verdadeira cativa, surgindo depois uma ação "inventada por inimizade e orgulho de certos indivíduos que com mal entendido liberalismo só querem fazer proteções com o alheio". No penúltimo ponto do libelo de contrariedade, a defesa de Vicente insiste na idéia de que tudo não passou de "uma manobra ensaiada pela mesma autora (Águida) seduzindo e logrando a aqueles seus senhores moços".

Através da Carta de Artigos sabemos que houve réplica dos autores, mas a ele não tivemos acesso. A tréplica de Vicente José Machado procura reafirmar a história que ele já havia contado no libelo de contrariedade. As duas únicas testemunhas de Vicente, ouvidas em Campinas, confirmaram sua história dizendo que ela havia sido contada pelo próprio Vicente. Uma delas era tio de Vicente.

É curioso analisar a versão dos fatos narrados no libelo de contrariedade de Vicente José Machado, mesmo que não fosse a versão verdadeira. Essa versão retrata uma Águida muito solerte e astuta. Por esta versão, imaginamos um Pedro Rodrigues com dificuldades financeiras e prestes a ter seus escravos penhorados. Águida, provavelmente não querendo ser leiloada em pregão público ou já antevendo retirar algum proveito da situação, diz para Pedro Rodrigues lhe declarar liberta pois assim não lhe perderia. A sua liberdade assim se torna pública, induzindo seu senhor a tentar enganar a justiça, algo que consegue. Após a morte de seu senhor, aciona a justiça e consegue a liberdade, vingando assim o logro à justiça e o logro à Pedro Rodrigues, inclusive aos filhos do ex-senhor. Ou seja, a tentativa de logro é dupla e ambas deram resultado positivo. Pedro Rodrigues tentando enganar a justiça, pela astuta sugestão de Águida, e Águida, em verdade, enganando Pedro Rodrigues para conseguir seus objetivos. Assim, para se contrapor aos argumentos de Águida, Vicente José Machado é obrigado a lhe reconhecer a capacidade de intervenção em seu próprio "destino" e a capacidade de entender a importância da justiça.

Apesar de não sabermos o paradeiro de Águida após 1828 e não sabermos a decisão final da justiça sobre a sua liberdade, sabemos o que aconteceu com o seu suposto senhor. Vicente José Machado morreu em 14 de Junho de 1831. Nem Águida nem seus filhos e netos aparecem nessa avaliação do inventário. Ao longo de quase 400 folhas do inventário de Vicente José Machado, que se iniciou em 1831 e que se estendeu por mais de uma década, nem uma só palavra sobre Águida e seus descendentes. Estariam libertos? Nas palavras e na interpretação de Vicente José Machado, teriam eles "logrado" a justiça, conquistando a liberdade?