Black Music e Música para Dançar: as Trajetórias de James Brown e Jorge Ben (sem o Jor)

Por caminhos acidentados delineou-se a trajetória da música de origem negra, no Brasil e nos Estados Unidos, durante os últimos quatro séculos.

Embora seja arriscada qualquer tentativa de imputar um caráter único à infinidade de ritmos surgidos na África, é inegável que muito de sua energia provém de seu fundamento coletivo; na maioria dos casos eram (e em muitos lugares ainda são) músicas para se cantar e dançar em grupo, geralmente em contextos especificamente rituais, com forte presença de aspectos voltados para a percussão, o ritmo. A maneira como a partir desses ritmos desenvolveram-se outros, no contato com outras tradições musicais nas Américas, principalmente a música européia, de fruição individualizada e mais preocupada com melodias e harmonias complexas, aponta para uma série de conflitos no processo de formação da indústria e do mercado musicais. As carreiras dos músicos abordados neste breve artigo podem exemplificar alguns dos impasses estéticos e mercadológicos verificados ao longo dessa trajetória.

James Brown e Jorge Ben desenvolveram suas carreiras em momentos de grande efervescência no interior da música de origem negra em seus países, através de tendências diversificadas se mesclando de forma criativa. Ambos surgiram em ambientes musicais extremamente dinâmicos, e atravessaram muitas fases. Vivendo nos turbulentos anos 60 e 70, suas músicas refletiram de certo modo o contexto sóciopolítico e das relações raciais de seu tempo, ainda que não tivessem feito um grande número de canções de cunho crítico-social. No caso de Brown, houve uma recorrência maior, enquanto que a crítica política é rara na obra de Jorge Ben, que dizia não gostar de política, mas não era um conformista.

James Brown, nascido no Sul dos EUA no final da década de 20 (ao que parece no estado da Geórgia, mas há controvérsias a respeito), de infância pobre e repleta de dificuldades, cresceu ouvindo antigos blues, canções gospel e grandes nomes do jazz, além de outros gêneros que continuamente absorviam elementos destas fontes. Seus primeiros passos na carreira musical foram dados em instituições de jovens infratores, nos corais de música religiosa. Na interseção entre esses estilos e a constituição de um mercado musical para jovens nos anos 50, no vasto espaço musical entre os rótulos do rhythm and blues e  do rock and roll, Brown criou uma linguagem própria que praticamente ditou o rumo da chamada black music dos anos 60 até hoje, e sua influência se estende desde as baladas românticas até o gangsta rap.

Nascido em 1940, o carioca Jorge Ben surgiu num cenário artístico brasileiro marcado por tendências cada vez mais diferenciadas: do samba gravado pelas grandes vozes do rádio até a bossa nova, passando pelo samba mais popular e descontraído, desenvolvido nas comunidades das escolas de samba e blocos, que ele freqüentou durante sua juventude. Ao longo dos anos 60, sua trajetória foi influenciada por cada uma dessas tendências. O contato com músicos do Tropicalismo preparou seus ouvidos para criações interessantes da música internacional na época, encorajando-o a se desembaraçar de seu tímido  “bossanovismo” (ainda que vigoroso em alguns momentos) em busca de novas experimentações musicais. Eram seus “interlocutores” bluesmen como Taj Mahal e roqueiros como Bob Dylan. Porém, seria nos anos 70 (nos discos produzidos entre 1969 e 1976, principalmente) que desenvolverá tais elementos, criando uma linguagem caracterizada por aspectos percussivos bastante originais. Nesta fase destaca-se o disco realizado com Gilberto Gil (“Gil e Jorge”, de 1975), que representa o auge desta liberdade rítmica.

Porém, na década de 80 ambos passam a sofrer um “recesso criativo”, caracterizado pela repetição quase contínua de fórmulas que fizeram sucesso e superexposição de suas imagens pelos mass media. Tornam-se frágeis caricaturas de si mesmos em seus grandes momentos. Daqui em diante seguem suas carreiras oscilando entre suas conquistas rítmicas e sucessos comerciais estéreis. Como explicar tal oscilação?

Talvez isso possa ser explicado pela posição destes músicos no quadro do mercado musical. Ambas as carreiras surgiram na parcela do mercado voltada para a produção musical de consumo rápido e massificado, e à margem dos padrões de gosto da “alta cultura” que, embora tenham se modificado na direção de algumas experimentações transculturais (como no caso de certas vanguardas jazzísticas), ainda permanecem sendo ditados pela tradição musical clássica européia, na qual prevalecem sobretudo a melodia e a harmonia, sendo que a percussão geralmente é deixada em segundo plano.

James Brown e Jorge Ben sempre transitaram numa espécie de corda bamba, num tenso equilíbrio entre dois ambientes: de um lado, o desenvolvimento de elementos rítmico-percussivos sofisticados, caracterizados por boas doses de espontaneidade e improvisação, e de outro, o poderoso apelo dos convencionalismos do mercado de consumo massificado, o que lhes garante sucesso imediato e notoriedade. Nas duas situações, são solenemente marginalizados pelos padrões da “alta cultura”, que ditam o que deve ser considerado “boa música”.

Apesar disso tudo, suas apresentações ao vivo, especialmente as acústicas, oferecem-nos  a oportunidade de acompanhar duas carreiras que trouxeram novidades estilísticas interessantes para a tradição musical originária da África, desenvolvendo a cada sessão aspectos percussivos inesperados.

Raphael Acioli
 
 

Obs: Para ouvir uma parte da produção de Jorge Ben na década de 70, ouça a Rádio Virtual "Tudo Ben” , hospedada no site Usina do Som.