AÇÃO AFIRMATIVA: EDUCANDO PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA*

Ahyas Siss**.

As políticas sociais caracterizam-se como aquelas intervenções do Estado que garantem, ou que “dão substância” aos direitos sociais. Enquanto política social compensatória ela abrange “programas sociais que remedeiam problemas gerados em larga medida por ineficientes políticas preventivas anteriores ou por políticas contemporâneas que são prima facie socialmente não-dependentes” (Santos, 1994, p.58 ). É por esse motivo que elas impactam fortemente os processos de conquista e do pleno exercício da cidadania. Elas constituem-se portanto como importante mecanismo pedagógico de educação dos diferentes grupos sociais para o respeito às diversidades, sejam elas raciais ou étnicas, de classe ou de gênero.

Creio que a opção política do Estado brasileiro por tratar como iguais aqueles sujeitos coletivos colocados social e politicamente em situações de desigualdade, essa recusa de se adotar entre nós políticas de discriminação positiva com base na raça ou cor de segmentos populacionais negativamente descriminados, conjugadas àquelas universalistas, é uma marca distintiva de sociedades que Bhabha (1998) classifica como híbridas e mestiças, porém conservadoras e extremamente autoritárias. São hierarquicamente estruturadas, profundamente estratificadas por raça, cor ou etnia, mas que se querem e se representam, de uma forma quase esquizofrênica, como se fossem homogêneas.

Em uma sociedade racialmente excludente como a nossa, na qual as desigualdades raciais são mascaradas pelo mito da democracia racial, a formulação e implementação de políticas sociais exclusivamente universalistas, por não atacarem os mecanismos geradores dessas desigualdades, vêm operando antes como forma de atualização delas, que como instrumentos que concorram para dirimi-las. É que tais políticas aumentam, de forma escandalosa, o fosso que separa aqueles considerados como cidadãos, daqueles percebidos como não-cidadãos.

Leis ou intervenções políticas que compreendam ações do Estado, voltadas para determinados grupos específicos os quais, historicamente são colocados em desvantagem, quando acompanhadas de políticas universalistas, podem ser extremamente úteis para reduzir os altos índices de desigualdades existentes entre esses grupos, como por exemplo, entre brancos e afro-brasileiros. Elas podem concorrer, como o apontam os resultados de suas aplicações em outros países, para equiparar ambos os grupos na raia de competição por bens materiais e simbólicos em momentos específicos.

É importante observar-se aqui que as políticas sociais compensatórias racialmente definidas, ainda que não se constituam como intervenções governamentais suficientemente potentes para eliminar as desigualdades historicamente acumuladas, elas desempenham o significativo papel de corrigi-las na atualidade, ao promoverem as igualdades de oportunidade e de tratamento, o que certamente concorre para uma democracia de resultados, além de trazerem efeitos imediatos e conseqüentes.

De uma forma quase que consensual, a discussão sobre as políticas sociais compensatórias racialmente definidas, ou ainda, de discriminação positiva, aparece, quase sempre, associada às iniciativas políticas de ação afirmativa, - ou “Affirmative Action” na versão norte-americana - compreendidas enquanto instrumento político corretivo do hiato entre o princípio constitucional da igualdade e um complexo conjunto de relações sociais profundamente hierarquizado. Os resultados de sua aplicação nos Estados Unidos da América (EUA) são tomados, quase sempre, como exemplos paradigmáticos.

Entendo que, na análise da implementação das políticas de ação afirmativa e de seus resultados, há que se levar em consideração o contexto das relações sociais em que tais políticas estão inseridas, sob pena de se operar reducionismos, tornando-se simplistas ou superficiais tais análises. Não desconsidero também aqui o fato de que as realidades social, política, cultural e econômica de Brasil e Estados Unidos apresentam singularidades significativas, quando comparadas por contraste, como o demonstram, por exemplo, os trabalhos de importantes estudiosos como Skidmore (1976), Hasenbalg (1979), Slenes (1983), Damatta (1990), Andrews (1992), d’Adesky (1998), Carvalho (1998), Gonçalves & Silva (1998) e Heringer (1999), dentre tantos outros. Entretanto, entendo como interessante e bastante válida a investigação da aplicação das “Affirmative Action” naquele país porque, ainda que se guarde as devidas diferenças entre essas duas realidades, a sua aplicação e os resultados dela decorrentes podem nos servir de modelo, uma vez existirem similitudes significativas entre as desigualdades raciais existentes naquela sociedade e na brasileira.

As políticas de ação afirmativa vêm sendo implementadas, entretanto, em outros países e não só nos EUA. Jacques d’Adesky (1998) por exemplo, afirma que a Índia, após tornar-se independente em 1947, adotou um sistema baseado em cotas, o qual destinou, aos chamados “intocáveis”, cerca de “22.5% das vagas na administração e no ensino públicos..” Essa medida tinha como objetivo a correção das desigualdades advindas do sistema de castas e da subordinação de “origem divina”. Na Malásia, a etnia bimiputra recebeu tratamento etnicamente diferenciado, com o objetivo de que fosse promovido seu desenvolvimento econômico. Rosana Queiróz Dias (1997), por sua vez, afirma que cerca de 25 países, entre os anos de 1982 e 1996 adotaram, de acordo com dados fornecidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), intervenções políticas visando a eliminar as discriminações sexual e racial ou implementado mecanismos de “de discriminação positiva nas relações de trabalho”. Nos anos noventa, países como Ilhas Fidji, Malásia, Canadá, Índia e Austrália adotaram políticas de ação afirmativa no combate às desigualdades culturais. Na Europa, é possível encontrá-las, aplicadas às desigualdades de gênero.

No caso dos Estados Unidos, as políticas de ação afirmativa surgiram, pela primeira vez, em 1935 no bojo da legislação trabalhista (The 1935 National Labor Relations Act). Ela dispunha que o empregador que discriminasse sindicalistas ou operários sindicalizados seriam obrigados a cessar de discriminá-los, além de tomar ações afirmativas com vistas a colocar as vítimas discriminadas naquelas posições que estariam ocupando atualmente, caso o ato discriminatório não tivesse ocorrido. Essa iniciativa política tinha como objetivo reparar situações, ou de violação legal ou de injustiça já perpetradas. Esse termo aparece também mais à frente, na dinâmica da luta pelos direitos civis naquele país, em 6 de março de 1961, na Ordem Executiva 10925 do presidente J. F. Kennedy. Por ela, além de proibir ele às diferentes instituições governamentais norte-americanas de cometerem atos discriminatórios contra candidatos a empregos orientados por suas cor, religião ou nacionalidade, estimulava ainda essas diferentes agências a fazerem uso da ação afirmativa na contratação de seus funcionários.

Entretanto, será no governo de Lyndon Johnson (1963-1968) que serão criados mecanismos e estratégias importantes de combate e de superação das desigualdades raciais e de gênero, principalmente. A partir de 1964, com base no artigo VII do Civil Rights Act, são criadas e implementadas políticas anti-discriminatórias com vistas a inibir discriminações no mercado de trabalho, que tivessem por substrato a raça ou etnia, a religião, o sexo ou a origem nacional dos trabalhadores. Nesse período, as empresas que possuíssem contratos com o governo daquele país foram estimuladas a usarem de ação afirmativa, com o objetivo de garantir o princípio da igualdade de oportunidade na contratação e promoção de seus empregados, membros de “minorias” ou portadores de deficiências físicas, além da proibição de discriminar.

Em Washington, em 1965, discursando na Howard University, tradicional universidade que, historicamente forma e concentra parcela significativa de intelectuais afro-americanos, Johnson afirmou enfaticamente não se poder pegar uma pessoa a qual, durante anos permaneceu acorrentada, libertá-la e trazê-la à linha de partida de uma corrida e depois afirmar: “- Você está livre para competir com os outros” e ainda acreditar que se está agindo com justiça. Nesse seu discurso, Johnson afirmava que não bastava que os portões da oportunidade fossem abertos a todos, mas que todas as pessoas estivessem habilitadas a passar por entre eles. Podemos facilmente perceber aqui que, a ênfase estava centrada, não apenas na igualdade de direitos mas, principalmente, na igualdade de resultados. Por outro lado, não é difícil percebermos, também que, esse discurso do então Presidente Johnson proferido em uma universidade negra, estabelecia uma relação sagital com a ação coletiva dos afro-americanos em direção da conquista de uma cidadania igualitária. Guimarães (1999) entende que as políticas de ação afirmativa percebidas como iniciativas racialmente definidas e implementadas pelo Estado e pela iniciativa privada, é fato mais recente, diferindo da antiga noção que dela se tinha, quando do seu surgimento em 1935, no contexto da legislação trabalhista. Enfatiza o autor que “ A antiga noção de ação afirmativa tem até os dias de hoje, inspirado decisões de Cortes americanas, conservando o sentido de reparação por uma injustiça passada. A noção moderna se refere a um programa de políticas públicas ordenado pelo executivo ou pelo legislativo, ou implementado por empresas privadas para garantir a ascensão de minorias étnicas, raciais e sexuais (Guimarães, 1999, p. 154). “

Entretanto, ainda em meados dos anos sessenta do século passado, tomou vulto o pensamento de que “os efeitos historicamente acumulados da discriminação” permaneceriam incólumes, mesmo em presença desse aparato legal que, inclusive não se revelava capaz de atuar preventivamente em relação a futuras situações discriminatórias. Daí a necessidade de elaboração de medidas adicionais. A Ordem Executiva 11746 de 1965, promulgada pela administração Kennedy-Johnson, implementando as políticas de ação afirmativa é considerada como uma eficiente resposta a essa situação de incerteza pois, “a legislação inicial dos direitos civis, promulgada na administração Kennedy-Johnson, era composta por leis que coibiam a segregação e a discriminação raciais, e que visavam, assim, criar as condições de igualdade de oportunidades educacionais, de vida e de trabalho entre todos os americanos. Eram leis e políticas que se coadunavam com o que Lipset (1993) chama de ações compensatórias, ou seja “que compreendem medidas para ajudar grupos em desvantagem a se alinhar aos padrões de competição aceitos pela sociedade mais abrangente”. São políticas com esse espírito que Lipset contrasta com políticas que ele chama de tratamento preferencial, e para os quais o termo “Ação Afirmativa” passou a ser um codinome (Guimarães, 1999, p. 155)”.

Para monitorar a implementação das políticas de ação afirmativa naquelas empresas que possuíam contratos com o governo federal, foi criado o Office of Federal Contract Compliance Progrms – (OFCCP) - Escritório de Fiscalização dos Contratos com o Governo Federal. Já a "Equal Employment Opportunity Comission – (EEOC)" - Comissão pela Igualdade de Oportunidade no Emprego -, foi criada pelo Congresso, na década de 70, com o objetivo de implementar mais rapidamente o programa das políticas de ação afirmativa, bem como de acelerar seus resultados. Essas duas organizações funcionaram, inclusive, como agências fiscalizadoras do processo de recrutamento e de promoção dos membros das “minorias”. Skidmore (1997) afirma que, dentre as numerosas opções de implementação da ação afirmativa nos EUA, três delas se destacaram. A primeira delas e, segundo a opinião do autor, a “menos controversa”, sugeria que no processo de admissão de dois candidatos a um mesmo emprego ou cargo, ambos com igual qualificação, se um deles fosse “minoria” ou “mulher”, então sobre este último deveria recair a preferência para admissão ao cargo ou emprego. O autor salienta que, essa situação era a menos freqüente.

Na segunda posição de destaque estava aquela que propunha o aumento genérico da quantidade numérica dos “pretendentes bem-sucedidos do grupo das minorias” sem, contudo, estabelecer uma proporção quantitativa entre eles. A terceira e última opção era aquela que propunha uma “razão numérica, ou cota, baseada em algum princípio de representação”. Aqui havia também diferentes propostas de se quantificar essa representação. Uma delas consistia em tomar-se a “razão” entre as chamadas “minorias” e mulheres de uma determinada localidade e tomá-la como cota. Uma segunda alternativa porém, propunha que se estabelecesse como cota “a porcentagem de mulheres e minorias no universo de candidatos aceitáveis”. Segundo Skidmore, todas essas técnicas e ainda outras vêm sendo adotadas, com o objetivo de se atingir os fins a que as políticas de ação afirmativa se propõem.

Não obstante, na sua implementação, a política de ação afirmativa não requer, obrigatoriamente, a adoção do critério de cotas numéricas rígidas, a serem preenchidas pelos diferentes segmentos da população, havendo diferentes formas ou mecanismos de sua efetivação. Quanto à sua permanência, não se prevê aqui sua implementação por tempo indefinido, ou permanente. É fato que a adoção de mecanismos que estimulem as empresas a recrutar, qualificar ou promover a postos elevados os membros das chamadas “minorias” é sem dúvida, parte importante desse processo. Isso porém “(...) não significa que uma dada empresa deva ter um percentual fixo de empregados negros, por exemplo, mas, sim, que esta empresa está demonstrando a preocupação em criar formas de acesso ao emprego e ascensão profissional para as pessoas não ligadas aos grupos tradicionalmente hegemônicos em determinadas funções (as mais qualificadas e remuneradas) e cargos (os hierarquicamente superiores). A ação afirmativa parte do reconhecimento de que a competência para exercer funções de responsabilidade não é exclusiva de um determinado grupo étnico, racial ou de gênero. Também considera que os fatores que impedem a ascensão social de determinados grupos estão imbricados numa complexa rede de motivações, explícita ou implicitamente, preconceituosas (Sant'Anna & Paixão, on line, 1998)”.

Nos Estados Unidos, esse tipo de intervenção política vêm sendo aplicada em situações específicas, naquelas esferas onde as desigualdades se manifestam de forma violenta, ou seja, elas têm sido aplicadas em situações particulares. Nesses casos, elas têm sido adotadas quando a justiça daquele país entende que instituições ou firmas vem discriminando visivelmente. No âmbito daquela sociedade sua aplicação se justifica por se perceber tal intervenção como mecanismo eficaz na busca pela equidade. Essa é a meta que essa intervenção se propõe alcançar e a duração dessa intervenção busca ser diretamente proporcional à durabilidade da discriminação perpetuada. A distinção entre cotas numéricas inflexíveis e política de ação afirmativa tem se constituído, na perspectiva de Guimarães (1999), em um dos principais objetivos das Cortes, nos EUA. Operar essa distinção, segundo esse autor, torna-se necessário porque, em caso contrário, os princípios do mérito e do valor individual, tão caros àquela sociedade seriam contrariados, e afirma: “A injustiça de um sistema como este torna-se clara quando impede o acesso de pessoas a certos postos ou recursos baseado em características grupais (imagine-se alguém impedido de entrar numa universidade porque é negro, branco, mulher ou homem, apenas porque já se esgotaram as cotas destes grupos). Sua incoerência encontra-se na pressuposição de que a distribuição encontrada, não proporcional, é produto de mecanismos ilegítimos de discriminação, independentes de comprovação e da distribuição dos grupos envolvidos (Guimarães, op.cit. p. 157).”

É importante perceber-se que as categorias gênero, classe, raça ou etnia por exemplo, são socialmente construídas e que são geralmente acionadas com o objetivo de monopolizar recursos coletivos das mais diversas ordens. As desigualdades são, portanto produzidas e reproduzidas no contexto das relações de gênero, classe, raça ou etnia dentre outros. Elas não são naturalmente dadas e nem existem de forma absoluta, mas são sempre desigualdade em relação, continuamente atualizadas, principalmente no processo de apropriação de recursos. As políticas de ação afirmativa, nos EUA, são acionadas para garantir o acesso a esses recursos, sempre que for evidenciado que “mecanismos ilegítimos de discriminação” funcionam como controladores do acesso a tais recursos. No que diz respeito ao estabelecimento de metas enquanto mecanismo redistribuidor de recursos, Guimarães pontua que “A atribuição de metas de redistribuição é apenas um recurso de correção de mecanismos bastante entranhados de discriminação que impedem, por exemplo, que uma pessoa com certos atributos físicos ou culturais seja membro de diretorias ou admitida em algumas profissões, etc. Em qualquer caso, é necessário acreditar que existem mecanismos de discriminação atuando na distribuição observada; segundo, que existe vontade, por parte de indivíduos com tais atributos, de concorrer a esses postos; terceiro, que sua qualificação para o desempenho dessas funções não esteja aquém do que é, em geral, requerido. Ou seja, políticas afirmativas visam corrigir, e não eliminar, mecanismos de seleção por mérito, e garantir o respeito à liberdade e à vontade individuais (Guimarães, op. cit. p.159)”.

A partir de 1964 e até o início dos anos 80, as políticas de ação afirmativa, nos EUA, passaram por um processo de crescimento gradual, sendo sistematicamente implementadas ao longo desses anos. Na administração do Presidente Ronald Reagan, entretanto, elas sofreram forte refluxo, voltando a fortalecer-se na administração do Presidente Clinton e pelo Ato de Diretos Civis (Civil Rights Act) de 1991. Como se pode facilmente deduzir, as políticas de ação afirmativa não gozam de um consenso absoluto na sociedade norte-americana, principalmente no segmento formado pelo grupo racial branco. Ainda que os partidários dessas políticas demonstrem o importante papel que elas desempenham no processo da conquista da cidadania dos afro-americanos; ainda que eles reafirmem concorrerem elas para a criação de uma sociedade menos desigual e ainda que sua dimensão educativa no que diz respeito às diversidades seja caracterizada por seus defensores, aqueles que se opõem à implementação de tais políticas vêm lançando a elas incessantes ataques, questionando seu caráter de justiça, sua necessidade, e a validade de sua continuidade.

São muitos e de natureza variada, os argumentos brandidos pelos opositores*** e pelos defensores das políticas de ação afirmativa nos EUA. Sem a pretensão de esgotar todos eles apresento, a seguir, apenas aqueles que me parecem serem os principais e que são constantemente esgrimidos nesse debate, tanto pelos opositores, quanto pelos defensores de tais políticas. A análise desses argumentos pode ser útil para que se possa perceber a dimensão dos argumentos e a especificidade desse debate. O primeiro e mais forte argumento esgrimido contra as políticas de ação afirmativa é aquele conhecido como argumento meritocrático. Aqui, estudiosos como Seymour Martin Lipset (1993) argumentam que tais políticas caminham no sentido contrário ao sistema meritocrático. Eles afirmam que essas políticas, ao estabelecerem outras características ou critérios de eleição dos sujeitos dessas políticas que não aqueles lastrados nas habilidade, qualificação profissional e educacional dos indivíduos, elas contrariam fortemente o “credo americano no mérito individual, demonstrado na competição entre os indivíduos a partir de oportunidades iguais.” A ideologia do individualismo e da meritocracia constituem o núcleo central desse argumento. Direitos individuais e direitos coletivos estão aqui em confronto direto.

O segundo argumento contrário às políticas de ação afirmativa, deriva diretamente do anterior. Aqui está presente a idéia de que tais políticas ao levantarem o critério do mérito, levam necessariamente ao estabelecimento de baixos padrões de desempenho. Outro argumento freqüentemente esgrimido é o da estigmatização dos sujeitos dessas políticas. Aqui, afirma-se que os que se beneficiam das políticas de ação afirmativa tendem a serem percebidos e a perceberem-se a si mesmos em termos de inferioridade, quando comparados aos que foram selecionados pelo princípio do mérito individual. A concepção de que as ações afirmativas têm sido benéficas apenas para imigrantes e para afro-americanos que possuam maior índice de escolaridade, não atingindo portanto à maioria dos membros desse segmento racial, constitui-se em outro importante argumento que vem impregnando o imaginário social norte-americano.

As ações afirmativas são criticadas ainda, por serem identificadas como responsáveis pela formação de uma underclass nos EUA, caracterizada como um segmento populacional que seria formada, em grande parte, por afro-americanos que, “tornou-se altamente dependente do welfare – previdência social, afastou-se do mercado de trabalho, e possui uma alta incidência de mães solteiras e/ ou adolescentes” (Heringer, 1999, p. 55). Argumenta-se que seria inútil a criação de oportunidades para os membros da underclass, uma vez que eles, ou não estão dispostos, ou não podem usufruir destas oportunidades. A autora frisa ainda que parcela significativa dos afro-americanos tendem a perceber as iniciativas racialmente definidas, apenas como um estratagema ilusório, funcionando muito mais para prejudicar os afro-americanos. Há os que sugerem que as políticas de ação afirmativa devem ser eliminadas porque elas não funcionam, ou seja, porque elas não têm obtido sucesso em afetar, de forma substantiva, “o nível de pobreza das classes inferiores minoritárias”. Se são pois, inoperantes, nada justifica a continuidade de sua implementação.

Argumenta-se também, que a discriminação racial no mercado de trabalho, nos EUA, acabou e que os afro-americanos não estão mais sub-representados nesse setor, o que torna desnecessária a existência da aplicação das iniciativas racialmente definidas e que a implementação de políticas de cunho universalista seria mais eficaz, por beneficiar todos os segmentos sociais empobrecidos. Há os que argumentam que as políticas de ação afirmativa caminham na contramão dos direitos consagrados pela Constituição norte-americana, ao se sentirem penalizados ou excluídos em função da aplicação dessas políticas. Essa seria uma conseqüência perversa da aplicação de tais políticas: ao tentar instituir uma democracia de oportunidade, ela acabam operando uma discriminação inversa, ainda que involuntária, ao excluir membros do grupo racial branco do processo de competição. Argumentam que, a responsabilidade pelos crimes cometidos no passado não deveriam ser imputada às gerações atuais, as quais não deveriam ser penalizadas por tais crimes.

Outro argumento muito forte, freqüentemente acionado pelos opositores das políticas de ação afirmativa é o que diz respeito à suposta tradição colorblind norte-americana. Esse argumento baseia-se no princípio “liberal” da Constituição desse país, que protege pessoas e não grupos. Os EUA seriam portanto, constitucionalmente, uma nação “cega à cor” de seus membros. As políticas de ação afirmativa operariam então uma ruptura com a tradição “colorblind, ao privilegiarem sujeitos coletivos, caracterizados por sua cor de pele ou pelo seu pertencimento a grupos minoritários. Por outro lado, os defensores das políticas de ação afirmativa, ao mesmo em que rebatem essa constelação de argumentos contrários a essas políticas, tecem contra-argumentos como por exemplo, o da inexistência, de fato, de esferas sociais cuja funcionamento se baseie no puro “mérito”, se é que existe “puro mérito”, até mesmo porque se desconhece qualquer conjunção de “habilidades e qualidades e traços” que possam definir o que seja “mérito”, em abstrato. Eles reconhecem a necessidade das competências individuais; não obstante, afirmam que os segmentos sociais que funcionam como fornecedores da força de trabalho nos Estados Unidos são fortemente enviesados por relações de parentesco, pela classe social, pela etnicidade, por relações pessoais ou ainda por diferentes formas de dinâmica social dessa natureza. Walters (1995, p.133) afirma que em uma “sociedade em que a separação racial é significativa, a falta de acesso dos negros a essas interações sociais com os brancos em termos de igualdade tem-lhes sido desvantajosa com respeito à estrutura da competição por empregos e outros recursos sociais”. Constitui-se em ingenuidade política esperar-se existir competição justa no âmbito de uma sociedade racista. Tanto é assim que até recentemente, afro-americanos possuidores de diplomas de curso superior recebiam salários inferiores aos dos brancos portadores de diplomas de ensino médio (o que não é privilégio dos Estados Unidos, ocorrendo também entre nós, como vimos no decorrer dessa pesquisa). Walters afirma que, muito embora o índice de conclusão do ensino médio seja praticamente o mesmo para afro-americanos e brancos, situando-se em torno de 5% da paridade entre eles, o índice de desemprego entre os jovens afro-americanos vem aumentando consideravelmente, quando comparados aos jovens brancos. Daí as políticas de ação afirmativa se constituírem como o mecanismo mais adequado de correção das distorções que ocorrem nos instrumentos de alocação de recursos, através da competição, no sistema meritocrático. Elas funcionam como tentativas de tornar mais igualitárias, tanto as oportunidades, quanto a própria sociedade.

Ao contrário do postulado de que a implementação das políticas de ação afirmativa levam necessariamente a um baixo desempenho, o resultado das análises sobre o impacto da implementação dessas políticas nos EUA, efetuados por estudiosos como Jonathan Leonard (1997) e Michael Rosenfeld (1997), apontam na direção de que, a partir do final da década de 70, elas proporcionaram uma elevada contratação de mão-de-obra especializada das chamadas “minorias”. Para Leonard, esse fato reflete uma crescente oferta de afro-americanos e mulheres especializados, o que resultou em um alto padrão de desempenho dos membros dessas minorias. Walters (1997) por sua vez chama a atenção para o fato de que, os resultados da pesquisa realizada em meados dos anos noventa, na Universidade de Harvard, por Rosabeth Moss Kaner apontam na direção de que “o desempenho em termos de fortuna das 500 firmas que seguiram o programa de ações afirmativas superou o daquelas que não o possuem”. Dessa forma, vê-se que a relação de necessidade entre ação afirmativa e baixo desempenho não se sustenta.

O argumento de que as ações afirmativas são estigmatizadoras dos grupos sociais por ela beneficiados é rechaçado por aqueles que defendem a implementação dessas políticas ao postularem que elas cumprem o importante papel de fornecer erdadeiros “espelhos sociais” responsáveis pela formatação de “imagens sociais positivas” ou, colocando-se de outra forma, que elas são as principais responsáveis por criarem exemplos vivos de afro-americanos bem-sucedidos, que tiveram êxito em suas carreiras profissionais. Tais exemplos vivos funcionariam como incentivo social para os demais membros das chamadas “minorias” na luta por posições sociais as quais eram julgadas inalcançáveis por seus antepassados. De forma contrária, não teriam eles “em quem se espelhar” de forma positiva, na busca de sua mobilidade vertical ascendente.

Contra o argumento de as ações afirmativas beneficiarem apenas os imigrantes e a afro-americanos que possuam maior índice de escolaridade, vários contra-argumentos são acionados. Em relação aos imigrantes, cuja origem racial ou étnica os tornam candidatos às políticas de ação afirmativa nos EUA, como o postulado por Eastland (1996), argumenta-se que os Estados Unidos, desde a sua fundação como nação, vem recebendo imigrantes de diferentes origens étnicas ou raciais em grande escala. Esses imigrantes, na perspectiva de Takaki (1993), ajudaram a construir aquela nação e, ao longo do tempo foram naturalizados, “tornando-se americanos”, não havendo hoje, como se traçar com objetividade, uma linha divisória entre americanos natos ou não. Tal fato, para esse autor, confere aos EUA a característica de uma sociedade multicultural. Por outro lado, é fato que os afro-americanos que possuem maior escolaridade estão entre os maiores beneficiados com a implementação das políticas de ação afirmativa naquele país, como o demonstram os estudos de Andrews (1997), dentre outros. Entretanto, não o foram, de forma exclusiva como o demonstra, por exemplo Walters (1997), dentre outros. Esse autor afirma que os afro-americanos como um todo e principalmente as mulheres - ainda que com índices diferenciados entre eles - , tiveram ganhos inegáveis com a implementação das ações afirmativas. Em 1988 por exemplo, e segundo esses autor, a força de trabalho nos EUA absorvia cerca de 65% dos afro-americanos, sendo que 30% deles percebiam salários considerados dentro da renda média nacional. Ainda nesse ano, cerca de 17.5% das mulheres negras ocupava cargos de gerência ou eram profissionais liberais. A participação das mulheres brancas, no mercado de trabalho, por sua vez, cresceu cerca de 14% entre 1972 e 1987, enquanto a participação dos afro-americanos cresceu apenas 2% nesse mesmo período.

Muitos estudiosos das políticas de ação afirmativa naquele país, como Andrews (1997), Walters (1997) e Gilliam (1997) não duvidam de que o surgimento e a solidificação de uma classe média negra naquele país seja conseqüência da implementação de políticas de ação afirmativa. Angela Gilliam afirma que, durante a década de 60, a porcentagem de mulheres negras prestadoras de serviços, estava na casa dos 23%, sendo que 38.1% das afro-americanas estavam empregadas nos serviços domésticos. No final da década de 70 porém, 28.5% delas estavam alocadas no setor de serviços, enquanto que o número delas empregadas em serviços domésticos baixara para 19.5%. A autora pontua que no século XX, pela primeira vez, o percentual combinado entre as afro-americanas empregadas no setor de serviços e aquelas empregados no serviço doméstico era inferior a 50% do total de toda a “força de trabalho feminina negra”.

Nesse processo, o aumento de escolaridade dos afro-americanos e das afro-americanas, exerceu papel importantíssimo. Ao longo dessa pesquisa, venho demonstrando que a educação, escolarizada ou não, é uma esfera propícia à produção, reprodução e cristalização das desigualdades, sejam elas de classe, de gênero, étnicas ou raciais, dentre outras. Ela constitui-se como uma arena mestra para as iniciativas que se propõem a reduzir, senão eliminar os mecanismos que impactam fortemente e de forma negativa, as trajetórias individual e social dos membros dos grupos sociais colocados em posição de subalternização. Não é pois de se estranhar que parcela significativa de afro-americanos tenham se valido das políticas de ação afirmativa aplicadas à esfera da educação para aumentar seu capital educacional. O incremento positivo da educação dos afro-americanos, tanto qualitativa quanto quantitativamente vêm se configurando como regra fundamental no progresso econômico desse contingente populacional.

A União da Liberdade civil Americana (ACLU), por sua vez, afirma que, assistidos pela ação afirmativa, as mulheres, os latinos e os afro-americanos, todos eles elevaram seus índices percentuais de ingresso nas várias Instituições de Ensino Superior, não só como graduandos, mas também como professores e pós-graduandos. Walters (1997) afirma que, graças ao incentivo das ações afirmativas na esfera da educação, em 1970, 23% dos afro-americanos se matricularam em cursos de nível superior. Em 1980, eles já somam 8% do total dos graduados em todas as faculdades e universidades daquele país. Em 1993, o índice de ingresso dos afro-americanos em algum curso superior girava em torno dos 33%. Até mesmo os opositores das políticas de ação afirmativa, nos EUA, afirmam não discordarem do fato de que, aproximadamente “20% da lacuna dos reduzidos ganhos raciais podem ser atribuídos às melhorias no contingente na educação de negros, e uma proporção similar a melhorias na qualidade da educação” dos afro-americanos sob a proteção da ação afirmativa.

Contra o argumento que identifica, na implementação das políticas de ação afirmativa a responsabilidade pela formação de uma underclass nos EUA, os trabalhos de Wacquant (1996 e 1997), dentre outros, são paradigmáticos. Esse autor, em seus trabalhos, postula que a chamada underclass não se constitui como fenômeno recente, posto que “a desorganização das famílias, o consumo de tóxicos e o recurso à economia subterrânea” não são fatos recentes na história dos Estados Unidos, sendo possível localizá-los já em fins do século XIX entre o operariado fabril norte-americano, bem como entre imigrantes de diversas origens. Wacquant (1997), coloca mesmo em dúvida a existência de uma underclass, formada por jovens afro-americanos em situação de anomia social e moral, que seriam indiferentes ao sucesso social, sem motivação para o trabalho e “ansiosos por figurarem entre os beneficiários da previdência”. Para esse autor, esses três mitos estão na base da noção de uma fictícia underclass, na forma pela qual ela ressurge, no início da década de 80, nos campos midiáticos e políticos. Ele afirma ainda que “ (...) as categorias esparsas e variáveis habitualmente colocadas sob a etiqueta de underclass não exibem nem a consistência morfológica, nem a “homogeneidade moral” e a “tendência à unidade” que embasam um coletivo social segundo Durkheim. Grupo fictício que só é constituído como tal por jornalistas e outros experts em gestão de populações dependentes, que comungam a crença em sua existência, a underclass é, no máximo, uma classe-imagem que se mostra àqueles e que é o espetáculo horripilante que todo bom norte-americano deve se esforçar para não ser (Wacquant, 1997, pg. 46)”.

Afirmar que a underclass, enquanto realidade concreta não exista, não significa que se possa ignorar, segundo Wacquant, os choques pelos quais a estrutura social norte-americana vem passando e que impactam seus diferentes segmentos de forma diversificada. Esse autor identifica, no refluxo do estado de bem-estar, ocorrido nos anos setenta e oitenta, uma das importantes causas políticas do crescente empobrecimento e “da contínua deterioração das oportunidades de vida” de uma grande parcela de afro-americanos, fato esse que tem sido omitido nos estudos mais recentes sobre a formação da chamada “subclasse”. Dessa forma, a acreditar-se na existência de uma underclass norte-americana, suas origem devem ser buscadas, não na implementação das políticas de ação afirmativa, mas sim na ausência delas.

Os que sugerem que as políticas de ação afirmativa sejam eliminadas, por não serem eficazes em afetar, de forma substantiva, “o nível de pobreza das classes [ditas] inferiores minoritárias”, omitem o importante fato de que a ação afirmativa não foi a única iniciativa política criada nos anos sessenta com o objetivo de reduzir o nível de pobreza das “minorias”, havendo outras iniciativas políticas, tanto federais quanto estaduais, criadas para esse fim,, como por exemplo o “Programa Grande Sociedade”, criado por Johnson em meados dos anos sessenta, especificamente para atacar os elevados índices de pobreza. Por outro lado, a elevação do patamar de empobrecimento das chamadas “minorias” pode ser compreendida muito mais como resultado da “eliminação ou enfraquecimento dos programas federais e estatais” destinados a combater a pobreza nos EUA, que comprovação da inoperância ou sinais da falência da ação afirmativa. Em relação ao argumento de que a discriminação acabou e que, portanto, os afro-americanos não estão mais sub-representados no mercado de trabalho e que, por conseguinte, a continuidade da implementação das políticas de ação afirmativas não mais se justificam, os defensores da continuidade dessas políticas afirmam ser falsa a idéia de que a discriminação racial tenha terminado e que, pelo contrário, ela continua viva e atuante acarretando funestas conseqüências para os membros das “minorias”.

Os partidários ou defensores das políticas de ação afirmativa concordam com o fato de que a discriminação não é, contemporaneamente, tão cruel ou perversa, quanto o era em décadas passadas. Não obstante, eles afirmam também que as conseqüências da discriminação passada impactam de modo forte, negativo e desproporcionalmente as chances de vida dos membros das “minorias” no presente, limitando suas oportunidades em termos de educação, renda, saúde e empregos. Os resultados das análises de estudiosos dessa questão, como por exemplo Heringer (1999) e Walters (1997) dentre outros, apontam na direção de que, ainda que não se possa facilmente identificar individualmente os resultados acumulados desta “discriminação estrutural”, eles podem ser percebidos através das desigualdades sócio-econômica existentes entre os brancos e os pertencentes às “minorias”.

A sub-representação de afro-americanos e dos membros das “minorias” nas posições mais elevadas no mercado de trabalho é conseqüência direta da discriminação estrutural que limita a mobilidade vertical ascendente dos membros desses grupos. No contexto dos debates ocorridos no congresso dos EUA, relativos ao “Ato dos Direitos Civis de 1991”, foi criada uma Comissão sobre o “Glass Ceiling.” Composta por 21 pessoas indicadas por lideranças do congresso e pelo seu presidente, ela era presidida pelo Secretário de Trabalho. Um dos objetivos dessa Comissão foi o de identificar as “barreiras artificiais e invisíveis” que, como um “teto de vidro” obstaculizavam a promoção de indivíduos qualificados a postos elevados, como por exemplo os de gerência. Para além desse objetivo, cabia ainda a essa comissão expandir práticas e políticas que promovessem oportunidades para minorias e mulheres em posições de poder e responsabilidade no setor privado. Essa comissão, em seu relatório final, além de reconhecer e identificar a presença de “tetos e muros” interpostos às carreiras de afro-americanos e membros de grupos minoritários – resultantes de práticas discriminatórias institucionais e psicológicas – aponta ainda serem pertencentes ao grupo racial branco cerca de que 97% dos administradores senior das 1000 maiores empresas presentes na revista Fortune em 1995, não obstante os afro-americanos, mulheres e outros membros das “minorias” totalizarem 57% da força de trabalho norte-americana. Afro-americanos e mulheres continuam pois sub-representados em profissões de status mais elevado. Por outro lado, a implementação de medidas políticas universalistas, são incapazes de romper os mecanismos inerciais de discriminação e de exclusão.

Contra o argumento de que os programas de ação afirmativa penalizam os membros do grupo racial branco excluindo-os do processo de competição, aqueles que defendem esses programas argumentam que, segundo o Procurador-Geral para Direitos Civis na Administração Clinton, são raríssimos os casos envolvendo situações de discriminação contra homens brancos. Walters (1997), por sua vez, pontua que os homens brancos estão presentes em “80% das vagas de professores titulares, ocupam também 97% das vagas de superintendentes de escola, detendo ainda 63% das vagas de oficiais eleitos, além de dominarem 87% do total das vagas de editores dos principais jornais e revistas do país. Segundo esse autor, eles dominam ainda a totalidade dos “poderes políticos, econômicos e intelectuais nos Estados Unidos e podem-se estender também para os campos científico, tecnológico e legal com igual facilidade”. Conclui Walters não existir sinais de que os programas de ação afirmativa tenham ameaçado seriamente o “status” ocupado pelos homens brancos. O fato de nenhum tribunal norte-americano ter considerado como inconstitucional a implementação de políticas de ação afirmativa naquele país, sugere não existir danos aos direitos constitucionais daqueles não beneficiados por políticas desse tipo.

Quanto ao argumento que enfatiza serem os EUA, tradicionalmente, uma nação “colorblind”, aqueles que se posicionam favoravelmente às políticas de ação afirmativa contra-argumentam que os EUA nunca foram cegos à cor de seus membros; muito pelo contrário, a discriminação racial sempre existiu e se constituiu como um mecanismo de restrição do acesso dos membros dos diversos grupos étnicos às oportunidades sócio-econômicas, como o afirmam Tienda (!997) e Walters (1997) e outros. Sendo assim, continuam, os opositores dessas políticas jamais deveriam apelar a uma tradição que jamais existiu, na tentativa de justificar seus argumentos.

Conjugada com outros mecanismos, as ações afirmativas, nos EUA, realmente têm funcionado positivamente quanto à inclusão social dos afro-americanos, bem como para ampliar as oportunidades igualitárias (Walters 1997). Colocadas sob a cobertura dos programas de ação afirmativa, afro-americanos, mulheres e outros membros das chamadas “minorias” – como os homens brancos idosos, os deficientes e os pertencentes a grupos religiosos - tiveram acesso à proteção contra as diversas discriminações passíveis de ocorrer, não só nos seus locais de trabalho mas também “em outros cenários” daquela sociedade.

Para além disso, esse autor entende que elas têm contribuído para a construção de uma sociedade mais democratizada. Pontua o autor que “aqueles que argumentam contra tais medidas, argumentam pela perpetuação dos desequilíbrios e, talvez, pela perpetuação da instabilidade social”. Leonard (1997), também concorda com o fato de que as ações afirmativas tem contribuído para “promover o emprego de afro-americanos, mulheres e outros membros das “minorias”, mesmo a despeito da tênue objetividade de tais políticas. Esse autor tem dúvidas, entretanto, quanto ao fato de serem elas eficazes ou não, para reduzir discriminações.

Para Skidmore (!997), a ação afirmativa é também uma questão moral, cujas bases estão fundamentadas em uma particular interpretação do que seja justiça social. “As mais óbvias são oportunidade igual e valor da diversidade”. Andrews (1997, p. 140, por sua vez, admite que a ação afirmativa constituiu-se em uma medida política, ao mesmo tempo imperiosa e benéfica para os Estados Unidos. E continua ele, “ (...) as conquistas da classe média negra nos anos 1970 e 1980 exigiram um custo muito alto, na forma do agravamento dos conflitos e tensões raciais no país. No fim das contas, foi justificado esse custo? Valeu a pena – e houve pena, sim – a política da ação afirmativa? Eu diria que sim, valeu, e que o custo foi justificado. Mesmo a partir de uma avaliação de hoje para o passado – já conhecendo, portanto, as conseqüências que os atores do momento não podiam prever – não vejo outra maneira de atingir as conquistas de outra forma: a entrada de uma significativa parcela da população negra nas estruturas centrais da sociedade norte-americana – universidades, empresas – e na grande classe média que constitui a base dessa sociedade. Depois de quase um século de segregação formal no Sul, e informal no Norte, as barreiras estruturais e de atitudes contra essa entrada foram tão grandes e tão profundamente arraigadas, que não houve outra maneira de superá-las, senão um programa de preferências raciais para favorecer a ascensão social e econômica da população de cor. Efetivamente houve um custo alto para essa ascensão; mas esse custo foi exigido, não tanto pela ação afirmativa, antes foi a resposta".

*)- Este texto integra o capítulo V do livro "AFRO-BRASILEIROS, Cotas e Ação Afirmativa: razões históricas", de Ahyas Siss, publicado pela editora Quartet. Tel.(0XX21)25165353.

**)- Professor Universitário, Pesquisador da área Educação e Desigualdades Raciais, Bacharel e Licenciado Pleno em Ciências Sociais, Mestre em Sociologia pelo IUPERJ e Doutor em Educação pela UFF.

***)- Angela Gilliam (1997,p.45) afirma que "entre os que financiam e participam do ataque pela ação afirmativa e organizam as idéias que formam esse assédio contra a ação afirmativa, estão grupos de pressão, filantrópicos, direitistas, representantes congressistas, e outras fundações (...). Acadêmicos filiados a essas instituições frequentemente produzem pesados e extensos volumes e periódicos que servem às agendas políticas de longo prazo dessas bases políticas". Skidmore (1997, p.130)por sua vez, afirma que "os opositores da ação afirmativa tornaram-se numerosos e altamente articulados". Esse autor cita os trabalhos de Terry Eastland e William J. Bennett(1979); de Clint Bolick(1996) e de Ward Connerl(1996), como exemplos de sua afirmativa. Rosana Heringer(1999), na p. 60 do livro por ela organizado, afirma que os argumentos contrários à ação afirmativa são construídos em tom irônico. "Frequentemente começam com uma narrativa de um caso de discriminação inversa. (...)Entretanto, em muitos desses casos o projeto de ação afirmativa, contra o qual alegou-se discriminação inversa, foi implementado após uma decisão judicial, a fim de combater uma discriminação anterior".

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SUMÁRIO

Prefácio 09

Introdução 13

Capítulo II - As Relações Raciais. A Educação e as Demandas Por Cidadania dos Afro-Brasileiros: do Pós-Abolição ao “Prá Frente Brasil" 25

Capítulo III – Afro-Brasileiros, Educação e os Processos de Construção de Cidadania. 66

Capítulo IV – Educação, Cidadania e Multiculturalismo 86

Capítulo V - Ação Afirmativa: Educando Para a Construção de Uma Sociedade Democrática 110

Capítulo VI – Ação Afirmativa no Brasil: Tensões, Propostas e Iniciativas 130

Capítulo VII - Relações Raciais, Academia e Cidadania dos Afro-Brasileiros 159

Considerações Finais 187

Referências 198


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