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TEXTOS SELECIONADOS
Como Escrever Histórias em Quadrinhos
- Parte II
Por Alan Moore
N. do T.: Para esta segunda parte, tenha à mão,
se possível, novamente as edições Monstro do Pântano,
Volumes 1e 2, publicada recentemente pela editora Brainstore,
as antigas edições de American Flag da Abril
e o ótimo livro A Balada De Halo Jones, publicado a pouco
tempo pela Pandora Books.
Admitindo que agora você tenha alguma idéia das reais possibilidades
abertas para você em como contar uma história, então
o próximo estágio é nos movermos em relacionar os
elementos dentro do verdadeiro trabalho de ficção em si.
Por razão de conveniência, os principais elementos nessa
categoria podem ser divididos em três importantes áreas:
caracterização, descrição do ambiente
e, finalmente, enredo. Comecemos primeiro com o ambiente,
pois a natureza do enredo e as motivações dos personagens
serão determinados em grande parte pelo mundo no qual eles vivem.
O trabalho do(a) escritor(a), se ele ou ela estiver tentando descrever
uma colônia em Netuno no ano 3020 ou a vida social de Londres por
volta de 1890, terá que explorar um senso de realidade ambiental
tão completa e desapercebidamente quanto possível. O caminho
mais óbvio para fazer isso é explicar os rudimentos de seu
mundo para seus leitores através de legendas com textos explicativos
ou diálogo expositório, mas para mim é também
o método mais artificial e em muitos casos o menos efetivo. Ele
apenas parece ser o mais fácil, o qual seja o porquê de ser
usado tão freqüentemente. Por outro lado, o melhor modo de
dar a seus leitores um senso de ambientação e localização
no tempo e espaço é, na minha opinião, o mais difícil,
mas também o mais recompensador a longo prazo.
A melhor maneira, para mim, é primeiro considerar o ambiente com
o qual você está trabalhando como um todo e em detalhes antes
mesmo de você pegar caneta e papel. Antes de escrever V de Vingança,
por exemplo, me peguei com um volume de informações sobre
o mundo e as pessoas que nele vivem, muitas das quais jamais seriam reveladas
na HQ pela simples razão de não serem essenciais para o
conhecimento dos leitores e provavelmente por não haver espaço
suficiente onde colocá-las. Isso não é importante.
O que é importante é que o escritor ou escritora deve ter
uma clara imagem do mundo imaginado em todos os seus detalhes dentro de
sua cabeça durante todo o tempo. Retornado a nossa colônia
Netuniana, por enquanto, vamos nos mover através dos tipos de detalhes
que são essenciais para se chegar a uma clara imagem do mundo.
Primeiro, como os seres humanos conseguem viver em Netuno? Quais os problemas
físicos que devem ser superados antes que as pessoas possam viver
em tal mundo e quais métodos parecem ser possíveis para
solucionar tais dificuldades? Pode o fato de Netuno ser na sua maior parte
feito de gás exigir um certo número de ambientes artificiais
flutuantes ligados talvez por uma rede doméstica de teleportação?
Como o sistema de teleportação funciona? Que efeitos a enorme
gravidade do planeta tem sobre os seres vivos e a psicologia das pessoas
que vivem ali? Qual é o propósito de uma colônia em
Netuno? Talvez seja explorar minerais para serem usados na Terra? Quais
as situações políticas que prevalecem na Terra neste
ponto da História e como ela afetam as vidas dos colonizadores?
Há quanto tempo eles estão ali? Estão há um
tempo suficientemente longo para desenvolverem adequadamente uma cultura
isolada? Se assim for, que tipo de pinturas eles produzem e que tipo de
musica compõem? É uma arte opressiva e claustrofóbica,
resultante das pressões de viver em tal ambiente fechado, ou serão
as pinturas e peças musicais plenas de luz e espaço para
compensar os arredores deprimentes que os colonizadores são forçados
a suportar? Como é mantida a Lei na colônia? Que tipos de
problemas sociais existem? Os terráqueos são a única
espécie que administram a colônia ou há outras raças
de alienígenas envolvidas? Terá a humanidade encontrado
outras raças de alienígenas durante todas as décadas
de exploração espacial de nossa história ou ainda
estarão sozinhos no universo até onde sabemos? Que tipo
de economia é adotada num lugar como esse? Como as pessoas se vestem?
Como as famílias são fundadas?
Esse foi o processo que usei quando descrevi o mundo dos Warpsmiths
e o modo como sua cultura foi construída. Também foi o mesmo
processo usado em a Balada de Halo Jones e V de Vingança.
O ponto é que uma vez que você tenha começado a trabalhar
no mundo em seus mínimos detalhes, você será capaz
de falar sobre ele despreocupadamente e com completa segurança
sem atingir as cabeças de seus leitores com enormes volumes de
explicações.
Howard Chaykin fez isso em American Flagg. Ele trabalhou
nas marcas registradas e nos programas de TV e nas tendências da
moda e nos problemas políticos e então ele simplesmente
foi franco em seu modo de contar sua história e deixou seus leitores
capazes de captá-la naturalmente. Na primeira edição
de American Flagg, vemos flashes de programas televisivos e um
bombardeio de comerciais que nos dão uma impressão muito
mais real do modo como essas pessoas pensam e vivem que qualquer quantidade
de legendas explicativas poderiam fazer. Além disso, tem a vantagem
de parecer muito mais natural, uma vez que segue quase exatamente o modo
pelo qual entendemos uma cultura estrangeira quando viajamos para outros
países durante nossos feriados. Não entendemos necessariamente
tudo sobre a cultura de imediato, mas gradualmente, quando captamos os
detalhes ao nosso redor até termos uma completa sensação
de todo o ambiente sua atmosfera exclusiva e os elementos sociais que
a formam. Quando um escritor lida com o ambiente dessa forma, não
temos a sensação de ter uma abundância de estranhos
detalhes empurrados em nossa direção apenas porque o escritor
quer que saibamos perfeitamente como ele pensou em tudo. Em vez disso,
temos a sensação de um mundo perfeitamente concreto e de
detalhada credibilidade, onde coisas ainda se desenrolam fora de nossa
visão mesmo se a história não está focalizada
nelas. Um mundo construído logicamente para nossa história
estará pronto e irá por um bom tempo suspender a descrença
de nossos leitores, levando-os a um estado de hipnose que mencionei no
capítulo anterior.
Os comentários acima referem-se especificamente em criar ambientes,
mas se você pretende usar um lugar que realmente exista, você
tem conhecer todos os detalhes da sua concepção do mundo
que você está querendo mostrar. Quando comecei a escrever
o Monstro do Pântano, comecei a ler sobre a Louisiana e o
bayou tanto quanto pude e consegui colher, através de um
árduo trabalho, conhecimento de sua fauna e flora e do lugar em
geral. Sei que jacintos aquáticos formam um espesso lençol
sobre a superfície da água que parece ser uma base sólida,
e que crescem tão rápido que às vezes, no passado,
havia a necessidade de queimá-los para que não cobrissem,
literalmente, todo o pântano. Sei que os crocodilos engolem pedras
acreditando serem tartarugas e que são incapazes de digeri-las.
É por isso que os crocodilos tem um temperamento tão irascível.
Sei que os cajuns, habitantes locais, são chamados de Coonass
por aqueles que não são cajuns como um tipo de
ofensa local e que eles, os cajuns, têm feito desse insulto
uma virtude, trazendo em seus pára-choques um adesivo onde se lê
"Orgulho de ser Coonass". Sei que o mais popular nome
cajun é Boudreaux. Se quero um nome que soe verdadeiro
para um cidadão comum da Louisiana, procuro em meu catálogo
telefônico de Houma até encontrar um que me pareça
adequado: Hatie Duplantis é um bom nome. Jody Herbert
também. Se quero saber qual estrada um personagem deve tomar
para se dirigir de Houma a Alexandria, então procuro em um mapa
dos Estados Unidos. São pequenos detalhes como esses que farão
da sua descrição de um lugar qualquer convincente e realista.
Eles podem ser colocados casualmente nas imagens do diálogos sem
estardalhaço e provavelmente serão mais convincentes e mais
triviais e insignificantes do que parecem ser.
Naturalmente, quando consideramos um ambiente, não é apenas
a realidade física do lugar que deve ser entendida, mas também
a atmosfera e a realidade emocional. Tomemos Gotham City, do Batman,
como exemplo. É apenas outra versão de Nova York? É
um enorme pátio de esquisitices para crianças crescidas
lotarem de máquinas de escrever gigantes e enormes Jack-in-the-boxes,
povoada por criaturas como Bat-Mirin e bufões excentricamente
maliciosos como o Pingüim ou o Coringa dos anos cinqüenta?
É uma paisagem urbana sombria e paranóica francamente baseada
em Fritz Lang, aterrorizada por monstros e criaturas deformadas,
onde a única defesa é um frio e impiedoso vigilante que
se veste de morcego? A maneira que você escolhe lidar com o ambiente
irá alterar toda a atmosfera da história, e é tão
importante o efeito final quanto um entendimento dos verdadeiros fatores
físicos que moldam o mundo sobre o qual você está
escrevendo.
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