O Problema do Enovelamento de Proteína

 

As proteínas são polímeros de unidades monoméricas contendo um grupo amina (-NH2), um grupo ácido carboxilico (-COOH) e um radical R ligados a um átomo de carbono, monômeros estes denominados aminoácidos. Desta forma, podemos definir uma proteína como uma cadeia de aminoácidos ligados covalentemente uns aos outros semelhantes às contas de um colar, sendo que esta ligação ocorre entre o grupo amina de um aminoácido e o grupo carboxila do aminoácido seguinte, denominada ligação peptídica.

Na natureza, há vinte tipos de aminoácidos que diferem pelo radical R e que compõem cada tipo de proteína. Diferentes proteínas apresentam diferentes sequências de aminoácidos constituindo o que é conhecido como sua estrutura primária.

As proteínas podem ser classificadas em três tipos: fibrosas, de membrana e globulares onde cada tipo de proteína apresenta sub-estruturas estáveis designadas por a - hélice, b - folhas e fita aleatória que constituem motivos estruturais que formam a estrutura secundária da proteína. Esta estrutura de motivos se rearranja espacialmente, enovelando-se na chamada estrutura terciária da proteína. Estes monômeros protéicos podem por sua vez associarem-se formando dímeros, trímeros, tetrâmeros, etc..., dando origem à estrutura quaternária da proteína.

As proteínas geralmente mantem a estrutura nativa (estado biologicamente ativo) em soluções com pH próximo do pH neutro e temperatura entre 20-40 ° C, sendo estas as condições típicas no ambiente celular (Chan & Dill, 1993). Sob condições não fisiológicas as proteínas perdem sua conformação, desenovelando-se, processo este conhecido como desnaturação.

Estudos de conformação protéica vem sendo realizados desde o início deste século. Em 1902, Emil Fisher e Frans Hofmeister concluíram independentemente e de forma inédita, que proteínas são cadeias de aminoácidos ligados uns aos outros por meio de interações covalentes (Haschemeyer & Haschemeyer, 1973; apud Dill, 1990). Em 1911, Chick e Martin foram os primeiros a descobrir o processo de desnaturação e distinguí-lo do processo de agregação (Dill, 1990). Por volta de 1925, o processo de desnaturação protéica era atribuido à hidrólise da ligação do peptídio (Wu & Wu, 1925; Anson & Mirsky, 1925; apud Dill, 1990) ou então à desidratação da proteína (Robertson, 1918; apud Dill, 1990).

Foram levantadas então, várias hipóteses a fim de explicar o processo de desnaturação protéica. O fisiologista chinês Wu propôs a hipótese de que a proteína nativa envolve um padrão de enovelamento da cadeia regular e repetido em uma rede tridimensional estabilizado por ligações covalentes, um tanto semelhante a um cristal. Wu afirmou: "Desnaturação é a quebra de ligações frágeis. Em vez de a proteína estar compacta, torna-se uma estrutura difusa. A superfície é alterada e as moléculas do interior são expostas" (Wu, 1929). "Desnaturação é a desorganização da estrutura da molécula de proteína, ocorrendo uma mudança de um arranjo regular rígido para um arranjo irregular difuso, de cadeia flexível e aberta" (Wu, 1931).

O interesse pelo processo de desnaturação fez com que alguns pesquisadores estudassem conformações de proteínas em solução aquosa. Eles supunham que neste tipo de solução, que é o habitat natural da maioria das proteínas, a afinidade das moléculas de água por pontes de hidrogênio endógenas à proteína arrebentaria as a - hélices e levaria a cadeia polipeptídica ao estado de fita aleatória.

Esta afirmação foi investigada por Poul Doty e seus colaboradores na Harvard University, em conjunto com E.R.Blout, da Children's Cancer Research Foundation, em Boston, na década de 50.

Nessa investigação foram empregados polipeptídios sintéticos como modelos de laboratório para as proteínas mais complexas e sensíveis. Quando Blout e colaboradores aprenderam a polimerizá-los em um comprimento suficiente (de 100 a 1000 unidades de aminoácidos) e analizaram através de polarimetria seu comportamento em solução, imediatamente puderam observar que os polipeptídios podiam conservar suas a - hélices. Observaram também que podiam desenovelar a a - hélice ajustando a acidez da solução, sendo este um processo que podia ser revertido fazendo os polipeptídios, de novelos desordenados (random coil), enrolarem-se novamente em hélice (Doty, 1957).

Destes experimentos, puderam confirmar que polipeptídios em solução aquosa, apresentam duas conformações naturais que transitam reversivelmente de uma para outra, dependendo das condições do meio.

As mudanças conformacionais dos polipeptídeos em solução aquosa levaram os cientistas a questionar quais são as forças que induzem o enovelamento de proteínas e estabiliza o estado nativo. Para achar este estado nativo estável da proteína, dever-se-ia calcular todas as possíveis conformações da cadeia polipeptídica e fazer-se-ia o somatório da energia livre de todas as interações interatômicas da proteína e interações da proteína com o solvente. Mas isto não é possível, devido ao fato do número de conformações estatisticamente possíveis ( N ) de uma cadeia crescer exponencialmente com o comprimento desta cadeia: N=a . m n ; onde n é o número de monômeros da cadeia, a é uma contante de proporcionalidade e m » 2-6 é o número de isômeros rotacionais, determinado para cada tipo de monômero que compõe o polímero (Chan & Dill, 1990). A fim de exemplificar o grau de dificuldade em encontrar o estado nativo estável, suponhamos uma proteína com cerca de 170 aminoácidos e apenas um tipo de ligação entre eles, formando uma cadeia linear, na qual calculamos todos os possíveis isômeros variando apenas a posição na cadeia de qualquer dos vinte aminoácidos. O número de possibilidades para este polipeptídio é tal que teríamos moléculas suficientes para encher um cubo de aresta 1050 anos-luz (Raw & Colli, 1967) ! Considerando que esta proteína leve um tempo mínimo da ordem de 10-9s para atingir cada conformação, o tempo necessário para que ela passe por todas as conformações é da ordem de 1034 anos, tempo este equivalente a 1024 vezes a idade estimada do universo físico conhecido. Esta escala de tempo e o número de conformações não é compatível com as observações experimentais, na qual a cadeia polipeptídica flutua entre conformações alternativas e colapsa para uma estrutura única numa escala de tempo variando desde nanosegundo até segundo. Há, portanto, uma discordância em relação a escala de tempo e ao número de conformações estatisticamente possíveis previstos pelo modelo de enovelamento aleatório. Esta discordâcia é conhecida como "paradoxo de Levinthal", nome dado em homenagem a Cyrus Levinthal, quem primeiro levantou esta questão (Levinthal, 1968).

Portanto, na tentativa de explicar quais são as forças e qual a natureza dessas forças que direcionam o colapso da cadeia polipeptídica, modelos vem sendo propostos. Linderstrom-Lang, em 1924, foi quem propôs o primeiro modelo quantitativo das interações eletrostáticas na proteína nativa. Neste modelo, baseado na teoria de Debye-Huckel, se demonstra que os processos eletrostáticos são função do pH e/ou da força iônica do meio (Linderstrom-Lang, 1924; apud Dill, 1990). A partir de novas descobertas sobre enovelamento de proteínas, o modelo de Linderstrom-Lang foi aperfeiçoado e complementado a tal ponto que, na década de 30, o pareamento de íons (interações eletrostáticas) foi considerado o fator dominante para a estabilidade de proteínas (Mirsky & Pauling, 1936; Eyring & Stearn, 1939 & Cohn et al, 1933; apud Dill, 1990).

A partir do final da década de 30, percebeu-se que não só as forças de longo alcance (interações eletrostáticas) mas também as forças de curto alcance (interação do tipo íon-dipolo, dipolo-dipolo, dipolo-dipolo induzido, íon-dipolo induzido, London-Van der Walls e as pontes de hidrogênio) contribuiam para estabilizar a estrutura protéica [CLICK AQUI PARA VER A ENERGIA DE INTERAÇÃO DAS FORÇAS DE CURTO E LONGO ALCANCE]. Hoje, considera-se que as forças eletrostáticas e o efeito hidrofóbico (tendência que alguns grupos químicos apresentam em minimizar sua supefície de contato com água) são os principais fatores que conduzem o enovelamento de proteínas (Dill, 1990).

 

A importância das forças de curto alcance no enovelamento protéico

 

Ao estudarmos as forças que conduzem o enovelamento da proteína bem como sua estabilidade, devemos colocar a seguinte questão: Se as interações de curto alcance são extremamente fracas quando comparadas com as ligações iônicas e covalentes, porque elas são tão importantes? A resposta é que sendo as interações de curto alcance fracas em relação as interações iônicas e covalentes, elas podem ser facilmente quebradas e reconstruídas sob condições fisiológicas onde os processos dinâmicos que envolvem as macromoléculas biológicas necessitam de uma mudança rápida das interações intra e inter-molecular na qual sem isto, seria impossível ter surgido a vida na Terra (ou talvez em qualquer outro planeta do universo!?).

O Segundo Código Genético

 

O balanço das forças responsáveis pelo enovelamento da proteína numa estrutura altamente compacta (estrutura nativa) está codificado na sequência de aminoácidos. Caso conhecessemos com detalhes os fatores e forças que determinam este balanço, estaríamos aptos a predizer a estrutura secundária, terciária e quaternária da proteína a partir da primária. Essa correspondência entre sequência e estrutura é conhecida como "segundo código genético", haja visto que o primeiro código genético é a correspondência entre as sequências de bases nitrogenadas do DNA e a sequência de aminoácidos da proteína formada. Portanto, conhecer as forças responsáveis pelo enovelamento da proteína e o equilíbrio dessas forças é de fundamental importância para entendermos este segundo código genético, e desta forma, podermos inferir as leis básicas da física e da química que são responsáveis para manter a proteína na sua estrutura nativa

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Para tanto, devemos conhecer a estrutura tridimensional da proteína no estado nativo, o que não é um processo simples. Hoje já são conhecidas milhares de estruturas de proteína definidas com resolução atômica a partir de cristalografia de raio-x e experimento de ressonância magnética nuclear (NMR) multidimensional (Chan & Dill, 1993).

A importância de se conhecer e solucionar o problema do enovelamento de proteína acaba se refletindo de forma considerável sobre a biotecnologia e medicina, por exemplo, doenças amilóides (Alzheimer, Parkinson, alguns tipos de câncer, relacionadas com príon, etc.) ocorrem quando há o enovelamento incorreto de proteínas causando agregação e deposição das mesmas nos tecidos. Os agregados protéicos encontrados em tecidos são muitas vezes resultados de mutações que alteram o enovelamento correto destas proteínas. Em princípio, o conhecimento do problema do enovelamento protéico permitiria o desenvolvimento de novas proteínas com aplicações abrangendo um vasto campo como a produção de novos catalizadores químicos e biológicos, biosensores, produtos farmacêuticos e cosméticos, hormônios, conversores de energia luminosa em energia química ou energia química em energia cinética, estocagem de energia e/ou de informação, etc...

 

 

 

O papel da água na estrutura de proteínas

 

A água é o composto químico mais abundante encontrado nos organismos vivos perfazendo cerca de 60 a 90% do peso total das diferentes células, tecidos e organismos. A maioria dos tecidos apresentam em média 75% de água (Lehninger, 1977) o que implica que as estruturas moleculares como proteínas, lipídios, carboidratos, ácidos nucléicos e pequenos metabólitos se encontram em solução aquosa.

A água é indispensável aos seres vivos devido as seguintes propriedades físico-químicas:

Não são só pontes de hidrogênio que a água forma com os compostos em solução, apresentando também, uma interação do tipo íon-dipolo com compostos iônicos. Para um composto carregado eletricamente ou um composto iônico colocado em água, um sal, por exemplo, as interações entre os cátions e os ânions deste sal tornan-se relativamente fracas pois, a molécula de água (que é um dipolo) orienta-se em volta dos íons em solução. O átomo de oxigênio da água corresponde ao polo negativo e tende a se agrupar ao redor dos cátions existentes em solução enquanto o átomo de hidrogênio da água corresponde ao polo positivo e tende a se agrupar ao redor dos ânions, blindando desta forma, os íons da solução. Este efeito de blindagem é o responsável pela alta solubilidade de eletrólitos em solução aquosa fazendo com que tanto o cátion quanto o ânion da solução sejam hidratados. Esta camada de moléculas de água que cercam estes íons é denominada "água de hidratação".

As macromoléculas biológicas, como as proteínas, também apresentam cargas elétricas em sua superfície que são "blindadas" pela água de hidratação que as cercam.

Já as substâncias não polares são pouco solúveis na água ou até mesmo insolúveis, como os hidrocarbonetos, uma vez que estes não formam nem pontes de hidrogênio, nem interações iônicas com a água. De fato, a dissolução de um hidrocarboneto em água requer uma apreciável quantidade de energia para romper a estrutura organizada da água líquida, que se mantém estabilizada por pontes de hidrogênio, e criar cavidades na solução que acomodem este hidrocarboneto. Estas cavidades são criadas graças à reorganização da água em estruturas altamente organizadas denominadas clatratos. Assim sendo, os hidrocarbonetos em solução tendem a escapar da água, organizando-se de tal forma que sua superfície de contato com a água seja mínima. Esta interação é conhecida como interação hidrofóbica.

A interação hidrofóbica não tem uma descrição em termos de energia potencial e desta forma, alguns autores preferem designá-la como efeito hidrofóbico, que pode ser definido como as influências que substâncias não polares causam no solvente a fim de minimizar sua superfície de contato com a água. Por outro lado, moléculas anfifílicas que tem porções polares e apolares, como sabão e detergente, podem formar micelas em solução aquosa (Voet & Voet, 1990) onde a parte hidrofílica está exposta a agua e a parte hidrofóbica está escondida. Uma vez que a proteína nativa (clique aqui para ver um modelo de proteína nativa) em solução aquosa se comporta como uma micela onde grande parte dos resíduos não polares das cadeias laterais não estão em contato com a água, podemos deduzir que as interações hidrofóbicas devem ser um fator determinante na estruturação de proteína em solução aquosa. Hoje sabemos que as interações hidrofóbicas juntamente com as interações de longo alcance são as principais responsáveis pelo enovelamento da proteína e pela estabilidade do estado nativo .

 

PARTE B:

 

Para saber mais :