Beijos para Maria Carla – croniquinha erótica


Beijos para Maria Carla – croniquinha erótica de meio-de-tarde
Ana Beatriz S.
absbia-pagina@yahoo.com.br

São três da tarde a pino e penso como a vida é estranha. Deixo Ludwig a roncar – adoro seu ronco, para mim é música. Pego a hondinha de 125 cc, moto-de-moça, e desço a ladeira. Juiz de Fora, domingo dia-dos-pais. Cruzo ruas com inevitáveis nomes de políticos, evito a Rui Barbosa, ladeio a Getúlio Vargas, traspasso a Rio Branco, a Rio Branco que resume a cidade. Subo forçando o motorzinho na ladeira da catedral, o conhecido guardador acolhe, salto-lhe duas moedinhas de um real e ele se agarra ao, lambe o duas-rodas. Desdobro o mapa da cidade, tiro o e-mail impresso do bolso do jeans, começo, cidade-a-pé.

Um amigo internético me mandou mensagem. Orientou bem. Pega a rua Santo Antônio, escreveu ele, dobra na Avenida Independência. Logo ali tem uma ladeirinha, e em cima um clube. Leio: Club Caiçaras, no fundo de uma ruela. Na rua, um predinho, quatro andares. Penso: o prédio em que morava Maria Carla?

Mas adianto. Mensagem na mão, releio. Aspas. Era naqueles tempos, 1968. Olho, a cidade se achata, nove de cada dez prédios viram casas, os carros rareiam e quase todos são fusquinhas. Nada de idealização, eram tempos cinza, generais, ditadores, gritos. Também hippies, amor-e-paz, etc. Apóio a bolsa na mesinha do orelhão, o dono da quitanda na esquina sem fregueses boceja. Continuo.

Aspas Rafael amava Maria Carla. Namorava Maria Carla. Ia pegá-la no Stella. Turista na própria cidade, não tenho certeza de onde fica o Colégio Estrela da Manhã, Stella Matutina. Um rapaz de vinte orienta errado, um casal de cinqüenta orienta certo. Vou lá. É pertinho, como a cidade 68 era acanhada.

Rafael ia pegá-la no Stella. Iam de mãos dadas até a tal subidinha do tal Clube, ela morava ali, e faço o percurso de volta. Juro, talvez romântica em excesso, juro que os vejo, cinco passos e trinta e nove anos na minha frente, a saia plissada, a fardinha de colégio-de-moça.

À noite, na tal subida do tal clube, o tal desejo. Na rua mesmo, vestígios de tempo sem liberalidades nem motéis. E com pouca gente na rua, país mais vazio. Abraços, amassos, os bicos cor-se-rosa mais rosa ainda no escuro, cuidado-vem-gente, não quero e quero. E inexperiência, coisa de menina-e-menino, quase rio, língua beijando os lábios dela, outros lábios, outra boca, muito suave. Ela fazendo o mesmo nele, cheia de repulsa-e-vontade mas sem querer parar.

Sol no máximo, dono da quitanda bocejando pela trigésima, vejo a subidinha, o prédio. Em qual canto de moita eram os sarrinhos, cidade escura e apenas o céu como testemunha?

Na história entra um terceiro, Fábio. Amigo dos dois, morava sozinho, um apartamento só para ele, dádiva celestial para um casalzinho-cheio-de-ardor. Emprestava o lugar para eles. No carpete o corpo nu e ainda virgem de Maria Carla. Querendo-sem-querer, Rafael não passava do portal cor-de-rosa, jovens corpos a fremir. Amadores, não sabiam que o rio sempre acaba por descer a cachoeira. E ele plenificou-a de prazer e medo de gravidez.

Não relaxaram muito. Alguém bateu, forçou portas, era a Polícia. Rafael era acusado de subversivo, etc. Um coronel o ajudou a sair da cadeia, foi em férias forçadas ao exterior, exilado.

Segundo tempo, Fábio e Maria Carla. Ele a consolou. Abraçou, acariciou. E bem, casaram-se, filhos e tudo mais.

Setenta-e-nove, anistias, gente voltando no Galeão. Comissão de recepção do pessoal de Juiz de Fora. Maria Carla se adianta, tem nós a desatar com Rafael. Fábio fica para trás, por discrição ou medo, me escreve com bom humor o próprio.

De noite, falam de guerrilhas. Outras noites, falam das idéias novas que Rafael trouxe de fora, casamento aberto, liberdade, etc. Idéias, mais noites e mais vinho se misturaram até que aconteceu um coquetel de amor-a-três. Que era o que Fábio fantasiava.

E é ele quem me informa: hoje, Maria Carla não está com Rafael, não está com Fábio, está com os dois.

Dobro o papel, recolho o mapa à bolsa. A história de Maria Carla, Rafael e Fábio chegou ao fim. Ou não. São quase cinco, o sol iniciou sua quedinha e penso como a vida é estranha. Muito, muito mais variada que qualquer imaginação. Juro que vejo atrás de uma samambaia ou roseira a uma mocinha e um rapazinho numa noite qualquer quatro décadas para trás, querendo-sem-querer, desejando-querendo-conter.

Pego a moto, o guardador me sorri dobrado. Faço grande volta, paro no sinal da Independência para dobrar a Rio Branco, voltar-para-casa. O sinal abre, faço barulho no motor, mas antes mando um par de beijinhos para Maria Carla, saia plissada colégio e amor. E não sei por que me dá vontade de ser abraçada, ser menina de novo, dormir.

Eu acho que essa história foi...





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