VIAGEM AO MEU QUINTAL

relato que nunca será publicado



Eu dou as boas-vindas a você que escolheu me acompanhar em minhas viagens de prazer-e-amor, e fiz muitas. Fiz sorrisos dizendo giz para o fotógrafo na frente de uma placa “Ponte Internacional – Arroio Chuí” e beijei com os tornozelos na agüinha morna do Oiapoque, a Guiana Francesa do outro lado. A primeira viagem porém não gastou mais que trinta passos, e foi talvez a mais funda. É a que você acompanha agora. Dê-me o braço, vamos juntos.

Drummond tem um poema chamado “Infância” no qual diz que o pai montava a cavalo, ia para o campo, a mãe ficava cosendo, a preta fazia o café, o irmão mais novo dormia. Lindo, muito lindo. Tremo os lábios. Minha história, bem, é linda também. Não tão poética, receio. Para começar éramos seis, o que parece o título de um famoso romance. Mas não seis de família, éramos seis irmãos. E se não fosse por mim, o “irmãos” seria literal. Eram cinco homens e eu, caçula e mulher.

Não tão poético. Meu pai ia para o escritoriozinho de contabilidade na avenida Rio Branco, a cidade era a Rio Branco e pouco mais. Minha mãe vigiava panelas e de noite dava aulas na escolinha do estado. Meus irmãos estudavam. E passavam longas, longuíssimas horas no banheiro. Meus pais eram tradicionais mas não tanto. Papai enterrava a cara na página de classificados, mamãe suspirava quando eu por um triz reclamava daquela fieira de machos ocupando o único banheiro da casa. Fazia cara de é-a-vida e não dizia nada.

O que eles faziam fora dali eu sabia, era a campeã da xeretagem. Rafael era o mais velho, o Rafa. É comum em recordações de caçulas o mais velho ser um bonitão, príncipe. Não era o caso. Rafa era alto, é certo, e pouco mais. Não sabia onde meter tanto braço, tanto excesso de perna.

Fizemos gozação em uníssono quando apareceu com a primeira namoradinha. Eu particularmente fiz. Ela estudava num colégio na avenida Independência. Glorinha, Maria da Glória, economizava palavras como se essas custassem dólares, lábios de muita carne sempre com o mesmo batonzinho leve-carmim, os vestidos unicores e terminando plissados na saia. Eu implicava com tudo, desde as roupas parecidas até a timidez da garota. Encaixavam-se numa ponta de sofá para assistir o Viva o Gordo e eu fazia ataques de beliscões, tática de guerrilha, atacava e me escondia atrás da geladeira, mamãe a me mandar parar com isso e a menina a sorrir com vontade de devolver com juros cada beliscada. E eu parava, durante dois minutos. Aí fazia de novo.

Nossa casa era velha e o terreno grande, atravessava o quarteirão quase dando com as costas no Paraibuna. Quintal comum, restos de madeira, mato, peças abandonadas de carro. Era o meu reino. Não havia tábuas velhas, e sim cidades muradas. Não mato, mas bosques de árvores com casinhas onde moravam princesas que não sabiam que eram. Não chassis ou arruelas, mas engenhos de cana e trigo.

E como todo reino, tinha um castelo. Claro, as outras pessoas o viam de forma completamente errada. Para elas, era um quartinho de despejos, rico apenas em poeira e restos de solvente e vassouras. Para mim era a Corte. Aias, mucamas, duques barbudos e bobos-da-corte piadistas povoavam as vidraças e ameias, e tramavam casamentos e saracoteavam em valsas.

Tão feliz era na minha Corte que muitas vezes não dava para esperar um baile marcado para o dia seguinte. Dez, dez e meia da noite, eu sem sono punha um pé para o lado de fora da janela, com cuidado punha o outro, pulo de meio metro e estava no quintal. Atravessava os bosques, com cuidado com os dragões passava ao lado das aldeias dos felizes camponeses e logo o castelo se iluminava de velas, e os casais de duques, marqueses e reis de reinos vizinhos eram anunciados por um pajem no portão de ouro.

Uma noite daquelas eu estava no castelo. O rei de Riolândia queria casar sua linda filha com o Imperador de Arvoristão e logo quando ele fazia o pedido eu ouvi um barulho fora. Podiam ser invasores bárbaros a tentar impedir o casamento, mas não. Eram dois, eram duas sombras, eram meu irmão e sua boba namoradinha, agachados, mão-dada, olhando para os cinco lados. Parecia que eles é que fugiam de bárbaros.

Dei pulo, a Corte toda se escondeu, eu me enrolei em sedas finas ou num pedaço de lona que meu pai amontoava desde o princípio da eternidade num canto. Pequenininha e contraída como gata-com-frio, apenas meus olhos acharam um buraco entre a lona.

Por esse buraco vi os fugitivos chegarem. (Logo os classifiquei fugitivos). Continuavam espichando pescoços, olhando lados. Arfavam como corredores das olimpíadas na TV. Congelei, se me pegassem ali era palmada certa. Eu estava de camisola e todo o Universo achava que eu dormia.

Pouco via, era penumbra. Pouco mais que os lábios grossos da Glorinha, a mão de Rafa que tremia um pouquinho ao segurar na dela. Demorou uns dois séculos para eles pararem de respirar alto e espiar pela porta, mas pararam. A garota me pareceu indecisa se sorria ou não, mas sorriu, meio, depois inteiro. Meu irmão também. E se grudaram num abraço, que achei que durou não dois, mas três séculos.

Desgrudaram, mas não muito. Glorinha roçou o rosto no rosto e a boca pareceu procurar a boca de meu irmão. Mas não era só. Um pedaço da pele bronzeada da menina apareceu enquanto a mão de meu irmão levantava a lateral da blusinha rosa.





Sempre tive boa memória mas não tem jeito, aí me deu amnésia. Não lembro de nada do que meu irmão e sua namoradinha fizeram depois. Jogaram dominó, creio. Ou discutiram as implicações da situação do Oriente Médio na conjuntura monetária que o país atravessava. Não, creio que jogaram dominó. Não lembro quem ganhou.





Lembro da Glorinha abotoando a última casa de cima da blusa rosa, que se abrira talvez durante o jogo. Meu irmão fez que penteava os cabelos com os dedos e deram uma última olhada em volta, de novo invasores bárbaros com medo do inimigo. Quanto a mim, contei até cento e dez pois minha matemática então só chegava até ali. Deixei a Corte, atravessei o bosque e meia dúzia de minutos depois dormia no melhor estilo pedra, estilo que cultivo até hoje. Não tive e nunca tive pesadelos, exceto quando mocinha fui assistir a um daqueles horríveis filmes do Freddie Krueger, mas aí é outra história.

Troco e-mails com meu irmão, técnico em Sampa. De vez em quando numa esquina do Centro encontro Glorinha, assistente social e um casal de filhos de um funcionário do INSS. Dizermos Oi uma à outra, mas creio que para ela eu ainda sou aquela menina beliscadeira no sofá em frente à TV. No que talvez tenha razão.





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