LEITURA CRÍTICA SOBRE O VERBO NA GRAMÁTICA DE ANDRÉS BELLO

 

Ana Cristina FERNÁNDEZ (Universidade de São Paulo)

 

ABSTRACT: This paper presents some aspects of the grammatical classification of the category verb made by Andrés Bello, compared to another one where it is considered also the verbal aspect, inspired by the usual distribution of tenses of the Latin verb.

 

KEY WORDS: Língua espanhola, Andrés Bello; Verbo, Aspecto, Nomenclatura.

 

Andrés Bello (1791-1865), filólogo e gramático venezuelano, publicou em 1847 a primeira gramática da língua castelhana destinada ao uso dos americanos, inspirado em obra análoga do filósofo francês, abade Condillac (1715-1789), Cours des Etudes, para a língua francesa. Sua gramática é ainda adotada em diversos países hispano-americanos, ao lado da versão da gramática da Real Academia Espanhola.

Nesta comunicação apresentamos a classificação da categoria gramatical verbo feita por Bello (2ª ed., 1949; com notas de Rufino José Cuervo), em contraposição a uma classificação em que levamos em consideração também o aspecto verbal, característica fundamental normalmente negligenciada. Tomamos como modelo a classificação dos tempos do verbo latino, pois parece-nos a mais conveniente por sua notável clareza.

Como definição de verbo, Bello escreve:

 

"Clase de palabras que significan el atributo de la proposición, indicando juntamente la persona y número del sujeto, el tiempo y modo del atributo." (p. 170)

 

Entretanto, o verbo pode ser melhor definido como sendo a classe de palavras que traz as noções de aspecto, tempo, modo, voz, número e pessoa. O aspecto do verbo diz respeito à ação verbal, se completa ou incompleta.

Bello classifica o verbo sob as seguintes categorias:

 

Tempos: Presente, Pretérito, Futuro, Co-Pretérito e Pós-Pretérito (para os tempos simples) e Ante-Presente, Ante-Pretérito, Ante-Futuro, Ante-Co-Pretérito e Ante-Pós-Pretérito (para os tempos compostos).

Modos: Indicativo, Subjuntivo e Optativo.

Vozes: Ativa e Passiva.

Número: Singular e Plural.

Pessoa: 1ª,2ª e 3ª.

 

Já em latim, distinguiam-se no verbo:

 

Aspectos: Perfectum e Infectum. O verbo no aspecto Perfectum denota uma ação completa e no aspecto Infectum uma ação incompleta. Na maioria dos verbos latinos, raízes verbais diferentes do mesmo verbo estão associadas a cada aspecto.

Tempos: presente, imperfeito e futuro (tempos do Infectum) e perfeito, mais-que-perfeito e futuro-perfeito (tempos do Perfectum).

Modos: Indicativo, Subjuntivo e Imperativo.

Vozes: Ativa e Passiva. Alguns autores consideram também a voz depoente, que é entretanto um resquício da voz média do indo-europeu.

Número: Singular e Plural.

Pessoa: 1ª,2ª e 3ª.

 

Vamos nos restringir a uma comparação dos tempos verbais de Bello e as características aspecto-temporais do verbo latino.

Vejamos um exemplo com o verbo amare, no modo indicativo, voz ativa, 1ª pessoa do singular:

 

Raiz do Infectum: AM-o (Presente), AM-abam (Imperfeito) e AM-abo (Futuro).

Raiz do Perfectum: AMAV-i (Perfeito), AMAV-eram (Mais-que-perfeito), AMAV-ero (Futuro perfeito).

 

QUADRO I

 

     

 

INDICATIVO

 

 

SUBJUNTIVO

 

 

P

R

E

S

E

N

T

E

 

 

 

amo

 

am o

am as

am at

am amus

am atis

am ant

 

ame, amaria

 

am em

am es

am et

am emus

am etis

am ent

 

I

N

F

E

C

T

U

M

 

I

MP

E

R

F

E

I

T

O

 

 

amava

 

am abam

am abas

am abat

am abamus

am abatis

am abant

 

amasse, amaria

 

amarem

amares

amaret

amaremus

amaretis

amarent

 

 

FUTURO

 

S

I

M

P

L

E

S

 

amarei

 

am abo

am abis

am abit

am abimus

am abitis

am abunt

 

 
 

 

P

E

R

F

E

I

T

O

 

 

 

 

amei, tenho amado

 

amav i

amav isti

amav it

amav imus

amav istis

amav erunt

 

 

tenha amado

 

amav erim

amav eris

amav erit

amav erimus

amav eritis

amav erint

P

E

R

F

E

C

T

U

M

 

MAIS

 

QUE

 

P

E

R

F

E

I

T

O

 

 

 

amara, tinha amado

 

amav eram

amav eras

amav erat

amav eramus

amav eratis

amav erant

 

 

tivesse amado, teria amado

 

amav issem

amav isses

amav isset

amav issemus

amav issetis

amav issent

 

 

FUTURO

 

A

N

T

E

R

I

O

R

 

terei amado, tiver amado

 

amav ero

amav eris

amav erit

amav erimus

amav eritis

amav erint

 

 

Quadro I - Conjugação do verbo latino amare, nos modos indicativo e subjuntivo, voz ativa (Cart et al. , 1985:54).

 

No quadro, observemos que todos os tempos derivados da raiz do Infectum (aspecto imperfeito) denotam ações incompletas e os da raiz do Perfectum (aspecto perfeito) denotam ações completas.

A existência do aspecto verbal não se limita ao verbo latino, mas está também presente no grego e no eslavo (três aspectos: imperfeito, perfeito e aoristo).

Nas línguas neo-latinas, as gramáticas tradicionais fundiram as noções de aspecto verbal e tempo, gerando nomes diversos para os "tempos verbais", tanto na Gramática de Bello como em gramáticas tradicionais da língua portuguesa.

Isso, porém, não ocorre em línguas como as eslavas modernas (p. ex. russo, polonês), onde a noção de aspecto verbal é ainda mais importante que a de tempo. No russo, os verbos são fornecidos usualmente em pares, uma raíz do imperfeito e outra para o perfeito.

Se tomarmos a nomenclatura de Bello, podemos fazer um paralelo entre cada um de seus "tempos" e a correspondente nomenclatura latina, classificada quanto ao aspecto e tempo. No Quadro II, como se verá logo abaixo, também estão anotados os nomes dados na gramática tradicional portuguesa (segundo Cunha e Cintra, 1985). Apresentamos apenas o verbo amar no modo indicativo, modo que contém todas as combinações de aspecto e tempo. Isto é feito graças à independência entre as categorias aspecto/tempo/modo/voz/pessoa/número.

 

Quadro II - Tabela com as formas do verbo amar, no modo indicativo, voz ativa, primeira pessoa do singular segundo Bello (1949) e a corresponde comparação com as nomenclaturas do português (Cunha e Cintra, 1985) e do latim (Cart et al., 1985).

 

 

 

ESPANHOL

 

 

PORTUGUÊS

 

LATIM

 

   

 

ASPECTO

 

 

TEMPO

Presente

(amo)

Presente Simples

(amo)

Infectum

Presente

 

Pretérito

(amé)

Pretérito Perfeito

(amei)

Perfectum

Perfeito

 

Futuro

(amaré)

Futuro Simples

(amarei)

Infectum

 

Futuro

Co-pretérito

(amaba)

Pretérito Imperfeito (amava)

Infectum

Imperfeito

Pos-pretérito

(amaría)

Futuro do Pretérito (amaria)

Infectum

Pres./Imperfeito

(Subjuntivo)

Ante-presente

(he amado)

Pretérito Perfeito Composto

(tenho amado)

 

Perfectum

 

Perfeito

Ante-pretérito

(hube amado)

_

_

_

Ante-futuro

(habré amado)

Futuro do Presente Composto

(terei amado)

 

Perfectum

Futuro Perfeito

Ante-co-pretérito

(había amado)

Pretérito Mais-que-Perfeito Composto

(terei amado)

 

Perfectum

 

Mais-que-Perfeito

Ante-pos-pretérito

(habría amado)

Futuro do Pretérito Composto

(teria amado)

 

Perfectum

Perfeito/Mais-que-

-Perfeito

(Subjuntivo)

 

Examinando o Quadro II, vejamos alguns exemplos:

 

Co-Pretérito:

O prefixo "co-", segundo Bello, significa "coexistencia en una época que se ve como tiempo pasado" (p. 239). Assim, por exemplo, o Co-Pretérito (amaba) corresponde ao pretérito imperfeito (no português). Na comparação com o latim, trata-se do Imperfeito do Infectum, ou seja, uma ação incompleta no tempo passado. Por ser esta uma ação incompleta, necessita de uma ação complementar na narrativa, "coexistindo" com a primeira. Entretanto, numa oração como: "Ayer esperaba el taxi", esta simultaneidade não ocorre, sendo uma ação durativa. Podemos dizer que esta definição de Co-Pretérito é limitada.

Pós-Pretérito:

O prefixo "pós-", segundo Bello, significa "posterioridade". Este tempo (amaría), que na nomenclatura portuguesa corresponde ao Futuro do Pretérito, no latim corresponde ao aspecto Infectum, tempo Presente ou Imperfeito, mas no modo Subjuntivo. O aspecto Infectum denota uma ação inacabada, logo também poderia necessitar de uma ação complementar, encaixando-se no caso do prefixo "co-" usado por Bello.

Na verdade, esse Pós-Pretérito do Indicativo, como vemos trata-se não de uma forma do modo Indicativo mas do Subjuntivo. Há pois uma fusão nesse termo das categorias aspecto, tempo e modo, classificado de maneira errônea.

 

Ante-Presente:

O prefixo "ante-" significa "anterioridade". O Ante-Presente (he amado), no português sendo o Pretérito Perfeito Composto do Indicativo, e no latim ao Perfeito do Perfectum, denota uma ação completa no tempo passado anterior a outra. Bello classifica a ação como passada, anterior a outra, também no passado.

Cabe observar que o Ante-Pretérito não tem correspondente no português, mas corresponde a um antigo perfectivo latino: Litteras habeo scriptas.

 

Ante-Pós-Pretérito:

Essa forma (habría amado), no português o Futuro do Pretérito Composto, no latim o Mais-que-Perfeito do Perfectum no modo Subjuntivo. Novamente na nomenclatura verbal de Bello, houve uma fusão de aspecto, tempo e modo: uma forma do Subjuntivo acabou sendo classificada no modo Indicativo, embora as formas não coincidam, pois as formas românicas são criações posteriores.

 

Em conclusão, o aspecto funciona subsidiarimante nas línguas românicas: o que predomina para a classificação da conjugação verbal é a categoria "tempo". O que Bello faz basicamente é usar os prefixos "co-", "pós-" e "ante-" a tempos verbais como "pretérito", "presente" e "futuro", associando termos em que prevalece a noção de tempo, mas que continuam a manter a combinações de aspecto, tempo e modo, que na verdade são características independentes do verbo.

Vemos então que uma análise aspecto-temporal do verbo é mais transparente e natural que a nomenclatura de Bello, tradicional na América Latina, instituida e difundida sem contestação.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BELLO, Andrés (1972) Análisis Ideológica de los Tiempos de la Conjugación Castellana. Reprodução fac-símile de 1841. Caracas: Cromotip C.A.

 

_____ (1949) Gramática de la Lengua Castellana (con notas de Rufino J. Cuervo). 2ª ed. Buenos Aires: Sopena. pp. 164-240.

 

CART, A. et al. (1985) Gramática Latina. Tradução e adaptação de Maria Evangelina Villa Nova Soeiro. São Paulo: T.A. Queiroz e EDUSP, pp. 50-75.

 

CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. (1985) Nova Gramática do Português Contemporâneo. 2ª ed. (21ªimpressão). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. pp. 367-472.

 

MURILLO, Fernando (1987) Andrés Bello. Madrid: Quorum.