UMA LEITURA CRÍTICA DE "DUELA A QUIEN DUELA"

 

Ana Cristina Fernández (USP)

 

 

O homem está condenado

a significar

Orlandi

 

 

A linguagem informativa, consumista e política não é simplesmente uma linguagem técnica que se possa caracterizar univocamente. Como a própria política, ela é plurisignificativa, penetra todas as esferas da vida social e se ajusta a diferentes tarefas requeridas por ela. É por isso que qualquer tipo de discurso sempre permite muitas leituras que, por sua vez, justificam sua análise.

Nosso objetivo, na elaboração deste estudo, consiste em uma leitura a partir de um enunciado que se apresenta com as características de uma charge política, sob a ótica da Análise de Discurso (AD), que contempla o discurso a partir do contexto histórico-social que o constitui.

O artigo "Duela a quien duela" foi publicado na revista VEJA (9 de setembro de 1992) como crítica feita por Jô Soares -quem periodicamente escreve numa seção de esta revista- depois do então presidente Fernando Collor de Melo ter dado uma entrevista para um jornalista argentino, que segundo o Jô Soares inaugurava um novo tipo de mídia, a fonevisão -união do telefone e da televisão. Durante a entrevista, Collor tentou mostrar sua erudição em idiomas estrangeiros, assim como fez quando a vinda do Príncipe Charles ao dispensar o intérprete.

A escolha desse texto deveu-se ao fato de que, dentro do universo imenso de material divulgado pela mídia a que estamos expostos, interessava-nos verificar de que maneira se apresenta a persuasão do autor (Jô Soares) com enfoque na imagem do presidente Collor, especificamente em função do contexto histórico-social, de modo a suscitar um posicionamento político do leitor em relação a pessoa do homem público Fernando Collor de Melo.

Consideramos pertinente definir o que entendemos por "persuasão"; ou seja "uma mudança de posicionamento por parte do interlocutor, em relação a um posicionamento tomado anteriormente" segundo Dugaich (1993:57), ao considerar o ato de persuadir no contexto da estrutura argumentativa do discurso político.

De modo a procedermos à análise do corpus, centramos-nos em três características em particular: leitor virtual; argumentação (seja pela retórica ou pela antecipação); e credibilidade, aspectos estes que se complementam. Em nosso entender o significado de uma palavra só pode ser julgado no contexto argumentativo se inserido numa determinada relação de enunciado (autor-leitor); e esta relação, se fundamenta na credibilidade, que por sua vez, sustenta a direção argumentativa (persuasão).

Este novo enfoque não fica na simples decodificação do texto, mas sim o questiona através de um processo de decomposição-recomposição que permite a aquisição de conhecimentos lingüísticos e comunicativos compreendidos numa perspectiva discursiva. Todo discurso -"efeito de sentido entre interlocutores" (Pêcheux 1990)- é um conjunto de relações sociais, tanto históricas como de produção e interpretação; ou seja, uma interação intrínseca do texto com o seu contexto histórico-social. Por conseguinte, a coerência permite materializar processos cognitivos que os interlocutores interceptam e justapõem, criando relações para obter as construções de uma unidade altamente significativa como a macroestrutura.

A noção de macroestrutura é vital para explicar o processo de produção-comprensão de significado do discurso, e, pelo seu caráter semântico, pressupõe uma base conceitual que deve permitir especificar as distintas operações cognitivas necessárias na teoria

de interação social. (Ver Quadro I.)

 

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| Condições socias de produção |

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| | Processo de produção | |

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| | | Texto | | |

| | --------- | |

| | Processo de interpretação | |

| | Interação | |

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| Condições sociais de interpretação |

| Contexto |

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Quadro I: Esquema proposto por Fairclough (1989:25). (Trad. nossa.)

 

 

 

É necessário, contudo, perceber que em qualquer texto existe a relação de imagens eu-outro-referente, segundo Pêcheux (1990) que, a nosso ver, permite a negociação que sustenta a argumentação:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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| REFERENTE |

| Tema |

| Assunto |

| EU <-----------------------------------> OUTRO |

| Escritor Leitor |

| Falante Ouvinte |

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Quadro II: Relação de imagens segundo Pêcheux (1990).

 

Através das relações imaginárias pode-se entender que existe uma espécie de banco de dados que permite ao sujeito elaborar seus argumentos com relativa precisão para atingir seu objetivo na direção do seu interlocutor virtual.

No texto "Duela a Quien Duela", o EU está representado pelo autor Jô Soares, que, por sua vez, representa o enunciador Collor. O satirizador, colocando-se no lugar do presidente, apresenta de forma jocosa os diversos episódios políticos em trânsito na ocasião. Como Collor sempre afirmou que falava muitas línguas, Jô Soares o critica fazendo uso do "portunhol", um híbrido de português e espanhol.

Consideramos que esse tipo de linguagem apresenta características do falante brasileiro ao tentar se exprimir em espanhol, incorrendo em: ditongação (ruêxo, razión), uso excessivo do fonema espanhol /j/ (jente, jo), forma de diminutivo (passejatitas, Cooperzito), léxico misto e com ortografia adulterada (entrebista, inbentar) e versões cômicas de expressões idiomáticas coloquiais do português em espanhol (no soy buebo, la bueca nel trombone). Este jogo de palavras parece-nos articulado por um autor, no caso Jô Soares, que denota conhecer bem as duas línguas em questão.

No que se refere ao fato do texto apresentar-se constituído por um leitor virtual no ato da escrita, Orlandi (1988:9) considera que:

 

"Há um leitor virtual inserido no texto. Um leitor constituído no próprio ato da escrita. Em termos do que denominamos 'formações imaginárias' em análise do discurso, trata-se do leitor imaginário, aquele que o autor imagina (destina) para o seu texto e para quem ele de dirige. Tanto pode ser um seu 'cúmplice' quanto um seu 'adversário'".

 

O OUTRO, o leitor virtual no contexto deste estudo aparecerá como indireto -o público argentino, supostamente ativo em política, e para o qual era dirigida a entrevista dada pelo então presidente Collor; ou direto -o leitor da revista VEJA, seja o homem público ou um cidadão comum (brasileiros), que se interessa por este tipo de leitura ou pelos tópicos abordados pelo autor Jô Soares.

No que se refere ao discurso de homem público e à formação de opinião pública, Fantinati (1990:3) afirma que:

 

"Quando se pensa, porém, nas exposições e intervenções realizadas no Parlamento [pelos presidentes], onde os discursos devem ser acompanhados pela maioria da opinião pública, tais falas são, no geral, formuladas pelo emissor de forma distinta. Seu intuito, agora, é informar, conquistar o apoio do seu povo e procurar derruir a influência do opositor sobre essa mesma opinião pública". (Grifo nosso.)

 

A partir dessas considerações pudemos observar que pessoas com diferentes posições políticas no Brasil afirmavam encontrar nas palavras do presidente uma "pré-confirmação de seus delitos".

A pergunta que norteia nossa análise, desde o início, é: o que quer e o que pode o autor alcançar através dos sentidos do discurso? A resposta está dada através de todo o texto, com o uso da argumentação pela retórica (Perelman 1982) e a credibilidade que se pode descobrir o objetivo do autor e o interesse que o orienta: ou seja, mostrar como poderia ser a reação do presidente ao informar determinado interlocutor, de modo a conquistar o apoio dos interlocutores virtuais (argentinos e brasileiros) e procurar destruir a influência da oposição sobre essa mesma opinião pública, a partir da conquista de seu objetivo.

Da argumentação pela retórica, apesar de satírica, podem ser extraídas idéias concernentes, como o fato da política não ser mais do que um processo polêmico, uma luta pelo poder, uma luta pela própria auto-afirmação e pela imposição e legitimação de um anseio de domínio. Collor busca enunciar um discurso eloqüente e efusivo para persuadir pela palavra. Apesar do conteúdo vazio, "insosso" do texto, que parece caracterizar a maneira tradicional de Collor se expressar, acentua-se sua tentativa de ludibriar seus interlocutores. Para isso, ele, no exercício de presidente, usa o direito da palavra em mídia nacional, recurso que, anteriormente, também foi significativo e eficaz para que ganhasse as eleções presidenciais.

Desde o título, Collor já demonstra através do provérbio "Duela a quien duela" (que ele disse de fato), ausência de culpabilidade, e, ainda, demonstra ser o primeiro interessado nos resultados. Na sátira apresentada pelo Jô Soares, o discurso do presidente é constituído de refrãos ("pán, pán, queço, queço", linha 44; "vocación para Amelia", linha 26) que enunciam verdades genéricas para exteriorizar uma imagem de verdade, com compacta conceituação. Entendemos que para Jô Soares, a superestima de Collor no texto é significada através da apreciação altamente positiva das ações (investigações, eleições de prefeitos), práticas (passeatas) e suas funções (como presidente). Isso se faz por meio de correspondentes qualificações mediante palavras ("tán calma", linha 47) ou um procedimento mais complexo onde se retoma como desinteressado, mas associado a valores positivos (Justiça e Liberdade). O que tenta é impedir uma revolta, fazendo com que o "legal" (linha 2) apareça para a população como legítimo, isto é, como justo e bom. Nas linhas 22-31, a referência ao destino inexorável é uma tática aparente para apaziguar o leitor virtual e reafirmar sua posição legítima de autoridade. O autor do texto (Jô Soares) mostra os pontos falhos de percurso de persuasão de Collor que residem em aspectos como diluir a seriedade das manifestações e mostrar o controle absoluto da situação.

A argumentação não verbal se dá pela fotografia de Collor montado em um cavalo (vestido como um gaúcho), com expressão de calma, lembrando a imagem de um caudilho.

Pêcheux (1990) levanta a questão da antecipação que se fundamenta na necessidade de "A" (ou destinador) de trabalhar antecipadamente sobre as possíveis respostas de "B" (ou destinatário). No corpus do nossa análise, a relevância da antecipação está no fato de permitir ao EU (Fernando Collor) trazer para o seu discurso o argumento do OUTRO (leitor virtual), de maneira a enfraquecê-lo ou refutâ-lo antes que o OUTRO tivesse o direito de contra-argumentar.

A credibilidade do texto pode ser dividida em duas partes:

1. A entrevista de fato se deu e foi televisionada. Isto é importante em um lugar e em um momento específico já que constitui as condições sócio-históricas, que fazem que o ato comunicativo seja apropriado para os interlocutores. A data-fonte permite ao leitor virtual relacionar o tempo e a situação que constitui o próprio texto.

2. A credibilidade do nome da revista (VEJA); a data de tiragem (9 de setembro de 1992); o nome do autor do texto (Jô Soares); nomes de instituições (PT, CUT, OAB, CNBB, UNE, CPI); nomes de países (Argentina, Brasil, Uruguai); e, nomes genéricos de grupos (oposição, jornalistas, população), constituem elementos que sustêm a direção argumentativa.

Em suma, apesar de ser um texto satírico e irônico, a credibilidade funciona como uma fonte de verossimilhança.

Para finalizar, verificamos, conforme nos propusemos, que a persuasão deste texto se deu através da antecipação de contra-argumentos, da argumentação pela retórica e das fontes de credibilidade que atribuem ao texto um aspecto verossímil que o argumenta. Jô Soares mostra como o percurso de persuasão de Collor não atinge seu objetivo e tenta convencer o leitor virtual a um posicionamento contra o próprio Collor.

Podemos concluir que a análise do discurso é um importante instrumento de exploração de textos:

 

 

 

 

 

 

"Todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, deslocar-se discursivamente de seu sentido para derivar para um outro. Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois, como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação. É nesse espaço que pretende trabalhar a análise do discurso" (Pêcheux 1990b:53).

 

Assim, todo texto tem diferentes entradas e é o professor quem determina os aspectos a trabalhar segundo a compêtencia discursiva e os intereses dos alunos, sob a perspectiva da leitura crítica.

As interpretações que partem desse texto ora percebem toda a colocação e a utilizam conforme seja seu ponto de vista, ora não conseguem compreender todo o processo de sedução estabelecido. Segundo Fairclough (1989) esse aspecto pode ser denominado "poder que subjaz ao discurso" que é um poder escondido, cujas relações residem na opacidade do texto. Portanto, um procedimento de leitura como este se mostra relevante à medida que permita expor o "olhar-leitor" aos níveis opacos e estratégias de um sujeito (Pêcheux 1984, apud Dugaich 1993).

Ao propor este tipo de atividade em sala de aula, seja esta de idiomas estrangeiros ou de língua materna, pretende-se sensibilizar o aluno para perceber a significação do texto. E, portanto, permitir-lhe uma leitura mais reflexiva (capaz de valorizar e confrontar pontos de vista) e menos suscetível a enganos, que mascaram os textos, procedimento este que parece estar muito em moda em nossos tempos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

 

 

DUGAICH, Cibele Mara. "A Estrutura Argumentativa no Discurso Político: Uma Análise de Heterogeneidade Discursiva do Pronunciamento de Posse do Presidente Kennedy" (Dissertação de Mestrado). São Paulo, PUC, 1993. Mimeo.

 

 

FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. Londres, Longman, 1989.

 

 

FANTINATI, Carlos Erivany. "Sobre o Discurso Político", in ALFA, São Paulo, 34:1-10,1990.

 

ORLANDI, E.P. Discurso e Leitura. Campinas, Unicamp, 1988.

 

PÊCHEUX, Michael. "Análise Automática do Discurso (AAD-69)", in GADET, S. e HAK, T. (orgs.), Por uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de M. Pêcheux. Trad. Bethânia S. Marieni et al. Campinas, Ed. Cortes/Unicamp, 1990.

 

_________________ O Discurso -Estrutura ou Acontecimento. São Paulo, Ed. Cortes, 1990b.

 

PERELMAN, C.H. The Realm of Rhethoric. Trad. William Klubock. Londres, Notre Dame Press, 1982.

 

SOARES, Jô. "Duela a Quien Duela", em VEJA, São Paulo, 9 de setembro de 1992. p. 13.