Raja Singh – Sangue, Suor e Solidão

Cap 01 - Comungando com os Mortos

São poucas as lembranças que tenho do passado, ainda mais com uma vida tão longa, as vezes me recordo de algumas como que para me lembrar de que apesar de tudo, o que passou, passou. As vezes elas voltam para me chicotear a mente, lembrando que eu não faço mais parte do que muitos chamam de mundo.
Mas algo de que me lembro nitidamente, assim como algumas outras coisas, é o porque me tornei o que sou hoje, um necromante.

Quase nada, era assim que eu me sentia na tribo de nômades, os Nadim. Era um povo amigável, mas ainda assim um povo e sua ignorância igualada a de todos humanos. Meu pai era o líder deles, e por mais que fosse alvo do escárnio de muitos, não ligava, chamava isso de inveja por ter se casado com a mais bela de todas, Zainah, uma elfa, e posso dizer com muito orgulho, a mais bela elfa do Deserto da Solidão. Falo eu com orgulho, mas não me orgulho de ser essa tamanha beleza que causou a destruição de minha tribo.

Havia entre nós um estrangeiro chamado Lanmir, e ele era o responsável por negociar coisas, todo tipo de coisas, não havia nada que ele não pudesse negociar, e isso para os olhos de meu pai era muito importante, pois com ele conseguíamos sempre altos preços nas tapeçarias que produzíamos e os menores preços no alimento que comprávamos, ele era um vendedor nato, e um trambiqueiro de mão cheia, tão cheia que foi preciso algumas moedas de ouro, terras, e uma posição em um reino próximo para que Lanmir negociasse com o Sultão, a venda de minha mãe para ser mais uma em seu Harém.

Levou muito tempo depois de sua venda para que a “encomenda” fosse entregue ao Sultão, pois Lanmir conhecia bem as capacidades dos nômades do deserto de se mudar rapidamente de um ponto para outro, mas assim como ele, o sultão também estava decidido a possuir a mais rara das jóias que o Deserto da Solidão pode produzir.
Seis meses o Sultão esperou exultante, e Seis dias foram necessários para que tudo ocorresse. E foi quando as seis estrelas mais importantes despontaram no negro céu de Zanaria, o sultão deu inicio ao banquete que preparara especialmente para fechar a compra de todos os nossos tapetes e outras mercadorias que havíamos produzido em todo esse tempo, afinal, ele não precisava se preocupar com nada, já que no final de tudo, todos estariam mortos.

E foi com todos embriagados pela deliciosa bebida que foi oferecida, que ao topo da noite, o sultão ordenou que seus soldados matassem todos, menos Lanmir que também já se encontrava bêbado, meu pai, Fahad Singh (pois o próprio sultão queria puni-lo por tê-lo feito esperar tanto tempo) e Zainah, o motivo de tudo...

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Fogo, quando acordei era tudo o que via... Corpos sendo empilhados e muito sangue no chão, não só no chão como em minhas mãos e até hoje eu não sei como a lança não perfurou meus órgãos vitais, mas já não sentia nem dor, nem nada entorpecido pela bebida.
Na época eu era muito novo para um elfo, tinha apenas 22 anos de idade e isso para um alguém de minha raça, é quase ser um recém nascido. Lembro-me agora de meu pai falando comigo, dizendo que não importa a raça ou a idade, um homem do deserto será sempre um homem do deserto e deverá sempre aprender a se virar sozinho, pois as areias não tem piedade só porque se nasceu de um jeito ou de outro.

A bebida foi fulminante e eu dou graças a isso, pois sem sentir muita dor, sem saber que metade do meu corpo fora todo espetado por lanças e cortado por espadas eu tratei de me afundar nas areias que estavam próximas, e com o pouco de forças que me restavam cavei minha própria cova, pois tinha certeza de que morreria em uma ou duas horas, mas de maneira nenhuma queria entregar meu corpo as várias fogueiras que fizeram para queimar os corpos dos guerreiros mortos. Eu, Raja, filho de Fahad, um Nadim nato, jamais me entregaria desse jeito.

E ali deitei, e ali dormi, e com o tempo passando senti a dor crescendo cada vez mais e a areia que se acumulava misturada com sangue ressecado pelos muitos de meus ferimentos, eu era um cadáver vivo, eu era um moribundo que não tinha mais a mínima chance de viver, e a dor cada vez mais forte por todo o meu corpo, a respiração já não era mais o suficiente, e o desespero era cada vez mais evidente, não havia mais chance de vida naquele corpo, mas apesar da minha mente querer morrer junto com todos os outros que eu sabia estarem mortos, meu corpo relutava em continuar vivendo e eu não sabia por quanto tempo agüentaria essa situação até dar meu ultimo suspiro nesta terra maldita. Amaldiçoei todos, amaldiçoei a tudo, a homens e a elfos, os grandes em seus grandes palácios e a pequenos em suas vendas malditas em busca de dinheiro e poder, pedi perdão as pessoas simples e de uma certa forma, naquele dia, comunguei com os mortos e seus espíritos que jaziam naquela terra sobre fogueiras que a seus corpos consumiam. Eu estava quase morto mas pude escutar minha alma clamando por vingança, não só a minha mas várias delas, amigos e conhecidos, nomes que um dia estiveram sobre a terra e agora não passavam de cinzas ao vento, misturados nas areias do deserto e esquecidos pelas areias do tempo.

Então a força voltou aos meus braços, e a consciência voltou a minha mente, e aos poucos eu comecei a cavar a terra que pesava em cima de meu corpo, para meu infortúnio era muito mais pesada do que quando eu fora enterrado, mas ainda assim o desespero e o ímpeto de vingar a tribo era maior que tudo, a dor era inigualável, mas não parei nem quando senti um osso partir ao debater minhas pernas, senti aquela dor calado, tinha que poupar fôlego e assim continuei. Eu não podia respirar e aquilo me causou um pânico imenso, tão imenso que eu tratava de escavar cada vez mais, mas o céu nunca se mostrava para meus olhos que começaram a se encher de lágrimas e conseqüentemente da areia que me cegava. Estava quase desistindo quando meus dedos apontaram para o céu, negro e sorridente, senti o prazer da brisa noturna mas minhas forças me traíram e rapidamente se esvaíram e eu novamente cai em sono profundo, pensei estar morto e confesso, a partir daquele dia eu morri para o mundo.

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Acordei em uma carroça, e abri parcialmente os olhos que me revelaram um velho cuidando de meus ferimentos.

- Não vamos precisar Exauri-lo – Falou ele – Este vai dar um bom escravo...

- É bom que dê mesmo, é difícil achar escravos totalmente vivos hoje em dia, tem coisas que não se pode mandar um morto fazer, e alem do mais tem traços élficos.

E desmaiei novamente...