PRECE
(Retirado do livro "As chaves do Reino interno" - Jorge Adoum)
Dá-me tua luz, Deus meu! porquanto anseio
ver-te em tudo: no tempo, nas criaturas,
na águia, na soberana das alturas,
ou no cadáver putrefato, feio,
nos marouços do mar, numa nascente,
nos desertos de areia ressequida,
na mão que mata, no que jaz sem vida,
na saúde do são, no mal do doente,
no ouro, nas ervas, no frescor das rosas,
nos tálamos, nos berços dos infantes
na lua, nas estrelas cintilantes,
ou no sol e nas noites tenebrosas.
E abre-me, para ouvir-te, meus ouvidos!
E então, sim, hei de ouvir-te, noite e dia,
quando o leão ruge e o pintainho pia,
nos risos do homem ou nos seus gemidos,
na lamúria do mocho quando plange,
no formoso gorjeio do canário,
na blasfêmia vilã do presidiário
ou quando a musa os guizos de ouro tange
na prece do sem lar, dos famulentos,
na rã coaxando sua torva toada
e no manso vaivém da madrugada
ou no sibilo rispído dos ventos.
Para viver do teu hausto divino,
vão-me as narinas e os pulmões tendendo
e tuas vibrações irei sorvendo,
desde a alva — teu alento matutino,
nas neblinas do mar ou dentro do ermo,
em todo segregar da mãe Natura,
no suor viscoso da camisa impura
do lavrador, do são, do próprio enfermo,
no inverno, outono e primavera inteira,
em todo mineral, em toda planta,
no puro respirar da virgem santa,
ou no hálito febrento da rameira.
Para apreender, Deus meu, tua Imanência
faze sensível meu sentir e aumenta,
no frio, no calor ou na tormenta,
em cada coisa real, tua aparência,
na chuva, neve, orvalho, relampejo,
nas folhas, nos espinhos ou na rosa,
no corte da ferida dolorosa
em todo coração, meu ou alheio.
em todo abalo do meu corpo, a esmo,
em cada variação da minha vida,
na matéria perempta, na nascida,
no meu externo ou dentro de mim mesmo.
Senhor! se nas entranhas tu me ateaste
este fogo da fome que devora,
por saborear-te, o paladar te escora
nos sabores com que me presenteaste.
Vem-me à boca tal qual maná celeste
e posso saborear-te, a meu contento,
em todas as bebidas e alimento,
nas água, neve, gelo ou geada agreste,
no pão, do mel na vivida doçura,
como ao libar dos vinhos generosos,
como ao beijar uns lábios amorosos
da mulher que me deu sua ternura.
Seja esta língua testemunha amiga,
fiscal e juiz; castigue-me a mentira,
defenda-me, Senhor, da cega ira
quando eu, sem peias, a verdade diga.
Do coração, Senhor, faze-me um prado
onde outros corações tenham venturas;
seja sua água a fé, suas culturas,
de esperança e de amor, fruto dourado,
Seja seu céu lealdade; seu sol tenha
raios de amor, bondade e de direito.
Se minha vida mingua de proveito,
ordena Tu, Deus meu, que a morte venha.