Agora, a I.S.

   “Cada período forja seu material humano, e se nossa época tivesse verdadeira necessidade de trabalhos teóricos criaria as forças necessárias para sua satisfação.”

Rosa Luxemburgo, em Vorwäts, em 14 de março de 1903.        

 

Agora que os situacionistas já têm uma história e parece que sua atividade tem forjado um papel muito particular, mas seguramente central no debate cultural dos últimos anos, uns repreendem a I.S. por ter triunfado, e outro por ter fracassado.

Para compreender a situação real destes termos, assim como todos os juízos da intelligentsia assentada sobre a I.S., há primeiro que investir-los. O fracasso da I.S.S é o que comumente se considera seu êxito: o valor artístico que se começa a apreciar em nós, a primeira moda sociológica ou urbanística que chega a encontrar certas nossas teses, ou simplesmente o êxito pessoal praticamente garantido a todo situacionista a partir do momento de sua exclusão. Nosso êxito mais profundo é ter resistido à grande quantidade de compromissos que nos ofereciam; não permanecendo resumido o nosso primeiro programa, e sim provando que seu principal caráter vanguardista, apesar de alguns outros ser mais percebíveis, estava no que devia nos levar mais distantes, e por tanto não ser tomados em consideração ainda por nada nos marcos estabelecidos atualmente.

Sem dúvida nossos erros tem sido numerosos. Temo-os corrigido a mude, o temos abandonado quando havia precisamente elementos que triunfavam ou que recebiam melhores apoios para triunfar. É fácil perceber em nossas primeiras publicações as deficiências, a verborréia, as fantasias surgidas do velho mundo artístico e as aproximações da antiga política; por outro lado, é a partir das conclusões posteriores da I.S. que se tornam mais facilmente criticáveis. Um fator inverso tem deixado naturalmente menos impresso em nossos escritos, porem tem um grande peso: o abstencionismo niilista, a grave incapacidade de muitos de nós para pensar e atuar mais além dos primeiros ensaios do diálogo positivo, acompanhada quase sempre da exigência mais abstrata e mentirosa de radicalismo desencarnado.

Existe uma divergência, porém, que nos ameaça mais gravemente que todas as demais: o risco à não nos diferenciar com bastante nitidez das tendências modernas nas explicações e proposições sobre a nova sociedade na qual o capitalismo tem nos levado, tendências todas essas que, com diferentes máscaras, servem à integração nesta sociedade. Desde a interpretação do urbanismo unitário por Constant, esta tendência tem se expressado  na I.S. e é infinitamente mais perigosa que a velha concepção artística que tanto temos combatido. É mais moderna, por tanto menos evidente, e certamente tem mais futuro. Nosso projeto tem formado ao mesmo tempo em que as tendências modernas fazem a integração. Há por tanto um oposição direta e um ar de semelhança no que temos realmente de contemporâneos. Não temos nos atentado suficientemente este aspecto, nem sequer recentemente. De forma que não é impossível ler as proposições de Alexander Trocchi no número 8 desta revista, apesar do espírito evidentemente oposto que encarnam, como algo que poderia se aparentar com essas pobres tentativas de salvamento “psicodramático” da arte descomposta que expressava, por exemplo, a ridícula Workshop da Livre-Expressão em Paris em maio passado. Porém o ponto que chegamos clarifica nosso projeto, e inversamente o projeto de integração. Todos os casos de investigações realmente modernas e não revolucionárias devem ser agora contemplados e tratados como nosso inimigo número um. Contribuem ao reforçar todos os controles existentes.

Não devemos por tanto abandonar a ponta de lança do mundo moderno com o único fim de não parecermos a ele em nada ou de não dar idéias que possa utilizar contra nós. É muito normal que nossos inimigos cheguem a nos utilizar parcialmente. Não vamos deixar-lhes o campo atual da cultura nem mesclarmos com eles: está claro que os mesmo bons apóstolos que querem admirar-nos e compreender-nos a uma distância respeitosa nos aconselharão de boa vontade a ver a pureza da primeira atitude para adotar elas na segunda. Rechaçamos este formalismo suspeito: como o proletariado, não podemos pretender ser inaceitáveis nas condições atuais. Isto deve se fazer em todo caso com riscos e perigos para os exploradores. A I.S. se situa claramente como alternativa à cultura dominante, e particularmente a suas formas chamadas de vanguarda. Os situacionistas estimam que têm que herdar a arte morta -  ou a reflexão filosófica separada, cujo cadáver ninguém, apesar dos esforços atuais, chegará a “reanimar” –, porque o espetáculo que substitui esta arte e este pensamento é o derdeiro da religião. E como foi a “crítica da religião” (crítica que a esquerda atual abandonou ao mesmo tempo que todo pensamento e toda ação), a crítica do espetáculo, é hoje, a condição primeira de toda crítica.

A via do controle policial perfeito de todas as atividades humanas e a via da criação livre e infinita de todas as atividades humanas são a mesma: a via das descobertas modernas. Estamos forçosamente no mesmo caminho que nosso inimigo – os antecedendo a maioria das vezes –, porém devemos ser, sem qualquer confusão, inimigos. O melhor ganhará.

A época atual pode provar múltiplas inovações, mas não emprega-las, porque está presa à conservação fundamental da velha ordem. A necessidade de transformação revolucionária da sociedade é o Delendas est Carthago de todos nossos discursos inovadores.

A crítica revolucionária das condições existentes não tem o monopólio da inteligência, e sim de seu emprego. Na crise atual da cultura, da sociedade, dos que não têm este emprego da inteligência não têm na realidade nenhuma inteligência discernível. Deixe de falar de inteligência sem emprego, nos façam um favor. Pobre Heidegger! Pobre Lukàcs! Pobres Sartre! Pobres Barthes! Pobres Le Febvre! Pobre Cardan! Tisc, tisc, e tisc. Sem o emprego da inteligência não se têm mais que fragmentos caricaturescos dessas idéias inovadoras que podem compreender a totalidade de nossa época no mesmo movimento com que a contestam. Não se sabe si quer plagiar harmoniosamente essas idéias quando as encontra onde já estava. Os pensadores especializados só sabem sair de seu domínio para arriscar ser espectadores beatos de uma especialização análoga, igualmente em falência, que ignoravam, mas que acaba de virar moda. O antigo especialista da política ultra-esquerda se maravilha ao descobrir, ao mesmo tempo que o estruturalismo e a psico-sociologia, uma ideologia etnológica completamente nova ele: o fato de que os índios Zuni não tivera história lhe parece a luminosa explicação de sua própria incapacidade para atuar na nossa (ver para rir um pouco as vinte e cinco primeiras páginas do n° 36 de Socialismo ou Barbarie), Os especialistas do pensamento não podem ser mais que pensadores da especialização. Não pretendemos ter o monopólio da dialética, de que o mundo fala; pretendemos somente ter o monopólio provisório de seu emprego.

Ainda ousam opor a nossas teorias a exigência da prática, e os que falam isto, nesse nível de delírio metodológico, se revelam abundantemente incapazes de alcançar a prática mais miserável. Quando a teoria revolucionária reaparece em nossa época e só pode contar consigo mesma para difundir-se em uma nova prática, nos parece que já existe uma base prática importante. Esta teoria se encontra, em princípio, no marco da nova ignorância diplomada que difunde a sociedade atual, muito mais radicalmente separada das massas que no século XIX. Nós compartilharemos normalmente seu isolamento, seu rico, sua sorte.

Para acompanhar o que falamos convém não estar comprometido e saber que, ainda que possamos estar equivocados momentaneamente em muitos detalhes, não admitiremos jamais estarmos equivocados no juízo negativo das pessoas. Nossos critérios qualitativos são demasiado seguros para que nos permitamos discuti-los. É inútil, por tanto, aproximar-se de nós sem estar de acordo teórico e praticamente com nossa condenação às personalidades e correntes contemporâneas. Parte dos pensadores que agora vêem comentar e a ajustar a sociedade moderna já a comentaram em termos mais arcaicos, e a conservaram finalmente, quando eram, por exemplo, stalinistas. Agora vêem reengajar-se de novo, imperturbáveis, ingênua e alegremente, a um segundo fracasso. Outros, que os combateram na fase anterior, se unem a eles agora para participar finalmente na novidade. Todas as especializações da ilusão podem ser ensinadas e discutidas em cátedras imutáveis. Mas os situacionistas se estabelecem no conhecimento que está fora do espetáculo: não somos pensadores assegurados pelo Estado.

Temos que organizar um encontro coerente entre elementos da crítica e da negação dispersos pelo mundo de fato e de idéias, entre esses elementos chegaram à consciência e toda a vida a seus emissários, e finalmente entre as pessoas ou os primeiros grupos que, aqui e ali, emergem a este nível de conhecimento intelectual, de contestação prática. A coordenação destas investigações e destas lutas no plano prático (uma nova união internacional) é neste momento inseparável da coordenação no plano teórico (que expressarão várias obras atualmente preparadas pelos situacionistas). Por exemplo, para explicar melhor o que às vezes se tem traçado de forma excessivamente abstrata na exposição de nossas teses, este número da revista deu um lugar amplo a uma apresentação coerente dos elementos que já existem na informação corrente. A continuação de nossos trabalhos terá que se expressar de formas mais amplas. Esta continuação excederá atrevidamente o que podíamos empreender pos nós mesmos.

Quando a impotência contemporânea gargarejar estes últimos anos com o projeto tardio de “entrar no século vinte”, estimamos que antes deverá por fim ao possível tempo morto que haverá dominado este século e toda a era cristã. Aqui como em qualquer outra parte se trata de estar à altura. Nossa trajetória é o melhor que se tem feito até agora para sair do século vinte.

I.S., 1964

Publicado na Internacional Situacionista n° 09 (1964). Tradução do espanhol por membros do Coletivo Gunh Anopetil (em www.geocities.yahoo.com.br/anopetil).

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