AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO


Para Durkheim, a reflexão é anterior à ciência, porém, ao utilizar de maneira metódica esta reflexão, o homem passa a regular sua conduta a partir das noções que utilizam para compreender as coisas e não a partir da coisa em si.

Em lugar de observar as coisas, descrevê-las, compará-las, contentamo-nos em tomar consciência de nossas idéias, analisá-las, combiná-las. Em lugar de ciências das realidades, nada mais fazemos do que análise ideológica.(...) Não há dúvida de que tal análise não exclui necessariamente toda e qualquer observação. Pode-se apelar para os fatos com o fim de confirmar as noções ou as conclusões que dele tiramos. Mas os fatos não intervêm então de maneira secundária, a título de exemplos ou de provas confirmatórias; não são objeto de ciência. Esta vai então das idéias para as coisas, e não das coisas para as idéias. (p. 13-14)

Ele considera que os conceitos não podem tomar o lugar das coisas, pois os mesmos somente têm como objetivo "harmonizar nossas ações com o mundo que nos cerca; são formados pela prática e para a prática. (...) Constituem elas, ao contrário, como que um véu interposto entre as coisas e nós, e que no-la mascaram tanto mais quanto julgamos transparente o véu." (p. 14)

Segundo o autor, este modo de proceder é uma inclinação natural do homem e dominou também a própria ciência natural em sua origem. A sociologia, para Durkheim tratava de conceitos, não de coisas. Daí a sua crítica ao evolucionismo de Comte, que estaria assentado sobre as idéias, não sobre os fatos.

O que existe, a única coisa que realmente é oferecida à observação, são sociedades particulares que nascem, se desenvolvem, morrem, independentemente umas das outras. Se as mais recentes fossem ainda continuação daquelas que as precederam, cada tipo superior poderia ser considerado como a simples repetição do tipo imediatamente inferior, acrescido de alguma coisa; seria possível, então, alinhá-las, por assim dizer, umas após outras, confundindo as que se encontram no mesmo grau de desenvolvimento, e a série assim formada seria encarada como representativa da humanidade. Mas os fatos não se apresentam com esta simplicidade extrema. Um povo que substitui o outro não é um simples prolongamento do anterior com o acréscimo de alguns caracteres novos; é diferente, ora tem propriedades a mais, ora a menos; constitui uma nova individualidade e todas as individualidades distintas, sendo heterogêneas, não podem se fundir numa mesma série contínua, nem sobretudo numa série única. Pois a sequência de sociedades não poderia ser figurada por uma linha geométrica; ela se parece antes com uma árvore cujos ramos se dirigem em direções divergentes. (p. 17-18)

Uma outra crítica feita por Durkheim se dirige à teoria formulada por Spencer, que estabeleceu como característica básica de uma sociedade a cooperação (cooperação de caráter privado, predominante em sociedades industriais, e de caráter público, em sociedades militares). De acordo com Durkheim, ele também teria se deixado levar por prenoções e não observado as coisas em si.

...a definição é apresentada como a expressão de um fato imediatamente visível, que basta constatar através da observação, uma vez que é formulada como um axioma já no início da ciência. E toda via é impossível saber por simples inspeção se realmente a cooperação forma o todo da vida social. Tal afirmação só se tornaria cientificamente legítima passando-se em revista todas as manifestações da existência coletiva, e fazendo-se ver que todas elas constituem formas diversas da cooperação. Assim, uma certa maneira de conceber a realidade de novo se substitui a esta realidade. (p. 19)

Os fatos que Spencer inscreve em sua sociologia são, para Durkheim, apenas uma forma de ilustrar suas prenoções. O mesmo acontece no que ele vai chamar de "ramos especiais da sociologia": a moral e a economia política. Segundo ele, ...toma-se como base da moral a maneira pela qual ela se prolonga nas consciências individuais e nelas repercute – isto é, aquilo que não lhe constitui senão o cume. (p. 21) No que se refere à economia política, não é ...a partir da observação das condições de que depende a coisa que estuda que vai reconhecer a existência dos fatos; pois senão teria começado por expor as experiências das quais tirou esta conclusão. (p. 21-22) É assim que ele diz ser necessário ir à coisa para daí então deduzir os conceitos, realizando assim o método indutivo. Ele exemplifica com o modo como é construída a noção de valor:

Se o valor fosse estudado como uma realidade, ver-se-ia o economista, em primeiro lugar, indicar segundo que traços reconhecer a coisa que responde por esse nome, classificar-lhe as espécies, procurar por meio de induções metódicas as causas em função das quais variam, comparar finalmente esses diversos resultados para chegar a desvendar uma formulação geral. A teoria não poderia, pois, existir senão quando a ciência já tivesse sido levada assaz avante. (p. 22)

Durkheim afirma que muito do que é tido como ciência não é nada mais nada menos que arte, pois o cientista não se atém à coisa em si, mas às idéias que ela suscita. Para ele ...estas especulações abstratas não constituem ainda uma ciência, uma vez que, na verdade, têm por objeto determinar, não em que consiste a regra suprema da moral, e sim o que deve ser tal regra. (p. 23) Assim é que, para ele, as leis econômicas e da moral tidas como naturais são meros "conselhos de sabedoria prática", não podendo ser chamada cada uma delas de lei natural porque não são constatadas indutivamente.

Os fenômenos sociais, para Durkheim, devem ser tratados como coisas, ou seja

...tratá-los na qualidade de data que constituem o ponto de partida da ciência. (...) Não nos é dada a idéia que os homens formulam a respeito do valor; esta é inacessível, e o que nos é dado são os próprios valores que se trocam realmente no decorrer das relações econômicas. Não é esta ou aquela concepção do ideal moral; é o conjunto de regras que determinam efetivamente a conduta. Não é a idéia do útil ou da riqueza; são todos os detalhes da organização econômica. (...) Não sabemos a priori que idéias estão na origem das diversas correntes entre as quais se reparte a vida social, nem se tais idéias existem; somente depois de ter subido até suas fontes, poderemos saber de onde provêm. (p. 24)

Por isso que para Durkheim é necessário que os fenômenos sejam estudados de fora, isto é, do exterior, ...destacados dos indivíduos conscientes que formulam representações a seu respeito (p. 24). Assim procedendo, o cientista poderá alcançar a objetividade dos fatos. Daí decorre a importância do postulado estabelecido por Durkheim: O caráter convencional de uma prática ou de uma instituição não deve jamais ser pressuposto.

Apesar da crítica que é feita a Durkheim no sentido de que sua teoria não contempla a mudança, vemos que a mudança é admitida, porém dentro de certas condições.

Com efeito, a coisa é reconhecida principalmente pelo sintoma de não poder ser modificada por intermédio de um simples decreto da vontade. Não que seja refratária a qualquer modificação. Mas não é suficiente exercer a vontade para produzir uma mudança, é preciso além disso um esforço mais ou menos laborioso, devido à resistência que nos opõe e que, outrossim, nem sempre pode ser vencida. Ora, já vimos que os fatos sociais apresentam esta propriedade. Longe de ser um produto de nossa vontade, eles a determinam a partir do exterior; constituem como que moldes dentro dos quais somos obrigados a plasmar nossas ações. Esta necessidade é muitas vezes de tal ordem que não temos jeito de escapar a ela. Mas, ainda mesmo que chegássemos a triunfar, a oposição encontrada seria suficiente para nos advertir de que estamos em presença de algo que não depende de nós. Considerando, então, os fenômenos sociais como coisas, não fazemos mais do que nos conformar com a natureza que apresentam. (p. 25)

Durkheim compara as reformas propostas por ele à Sociologia àquelas experimentadas pela Psicologia, que também era baseada nas idéias formuladas a respeito das sensações que os indivíduos experimentavam, não nas sensações em si. Mesmo reconhecendo esta similaridade, ele diferencia os fatos psíquicos dos fatos sociais:

...os fatos psíquicos são naturalmente encarados como estados do indivíduo, do qual não se parecem sequer separáveis. Interiores por definição, julga-se impossível tratá-los como exteriores, a não ser violentando-lhes a natureza. (...) Os fatos sociais, pelo contrário, apresentam de modo muito mais natural e imediato todos os caracteres de coisa. (...) Os fatos sociais são talvez mais difíceis de interpretar porque são mais complexos, mas são também mais fáceis de atingir. A psicologia, pelo contrário, não tem apenas dificuldade em elaborá-los, mas também em apreendê-los. (p. 26-27)

Após enunciar essa diferenciação, Durkheim estabelece as regras através das quais os fatos sociais seriam alcançados:

1. É preciso afastar sistematicamente todas as prenoções. (p. 27) – Durkheim sugere que todas as prenoções sejam abandonadas em nome da verdadeira ciência, mas reconhece, contudo, ser esta uma tarefa difícil

...porque o sentimento afetivo frequentemente intervém na questão. (...) O objeto em si e as idéias que a seu respeito formulamos nos tocam de perto e tomam assim tal autoridade que não suportam contradição. Toda opinião que as atrapalhe é tratada como inimiga. (...) O próprio fato de as submeter, assim como os fenômenos que exprimem, a uma fria e seca análise, revolta certos espíritos. (...) O sentimento é objeto de ciência, não é critério de verdade científica. De resto, não existe ciência que, em seus primórdios, não tenha encontrado resistências análogas. (p. 29)

1.      Nunca tomar por objeto de pesquisa senão um grupo de fenômenos previamente definidos por certos caracteres exteriores que lhe são comuns, e compreender na mesma pesquisa todos aqueles que correspondem a esta definição. (p. 30-31)

...chamaremos crime todo ato que recebe uma punição, e fazemos do crime assim definido o objeto de uma ciência especial, a criminologia. Observamos, também, no interior de todas as sociedades conhecidas, uma sociedade parcial, reconhecível pelo sinal exterior de ser formada por indivíduos consanguíneos em sua maioria, e unidos entre si por laços jurídicos. (...) Chamaremos família todo agrupamento dessa espécie... (p. 31)

Durkheim diz ser imprescindível definir o objeto estudado porque em sociologia é comum a referência a coisas sem uma definição rigorosa do que se tratam. Este procedimento é necessário a fim eliminar as ambiguidades. Como exemplo, ele cita um autor, Garofalo que define como crime apenas uma espécie de crime, encontrada numa determinada sociedade. Para Durkheim, seria necessário localizar o crime em cada sociedade estudada, entendendo-o não como algo atrelado às regras de moralidade vigente, mas consideradas no contexto em que ocorre, seja uma sociedade "civilizada" ou "primitiva". Isto é o que leva, de acordo com Durkheim, à consideração de que os "selvagens" são desprovidos de quaisquer regras de moralidade.

Partem da idéia de que nossa moral é a moral, que é evidentemente desconhecida dos povos primitivos, ou que não existe entre eles senão em estado rudimentar. Definição arbitrária, porém. Apliquemos nossa regra e tudo se modifica. Para decidir se um preceito é moral ou não, examinaremos se apresenta ou não sinal exterior de moralidade; este consiste numa sanção repressiva difusa, isto é, numa condenação formulada pela opinião pública que vinga a violação do preceito. Todas as vezes que estivermos diante de um fato apresentando tal caráter, não temos o direito de lhe negar a qualificação de moral; pois é prova de que sua natureza é igual à dos outros fatos morais. (p. 35-36)

Para Durkheim, tais regras podem ser encontradas tanto nas sociedades consideradas "superiores" como nas "inferiores". À acusação de que estaria derivando o crime da punição, Durkheim rebate dizendo:

É claro que a punição não cria o crime, mas é pela punição que o crime se revela exteriormente a nós, e, por conseguinte, é dela que se deve partir se quisermos chegar a compreendê-lo. (...) a menos que o princípio de causalidade não passe de vã palavra, quando determinados caracteres são encontrados de maneira idêntica e sem nenhuma exceção em todos os fenômenos de uma certa ordem, podemos estar seguros de que se ligam estreitamente à natureza destes últimos e deles são solidários. (p. 36-37)

3. ...quando um sociólogo empreende a exploração de uma ordem qualquer de fatos sociais, deve se esforçar por considerá-los naquele aspecto em que se apresentam isolados de suas manifestações individuais. (p. 39)

Para Durkheim, tanto a ciência como o conhecimento vulgar partem da sensação, pois é dela que se originam todas as idéias, sejam científicas ou não. O que diferencia o saber científico do saber comum é o modo como vai ser elaborada esta matéria comum.

...a sensação é tanto mais objetiva quanto mais fixo for o objeto ao qual se liga; pois a condição de toda objetividade é a existência de um ponto de apoio constante e idêntico, ao qual a representação se possa ligar, e que permita eliminar tudo o que ela apresenta de variável e portanto de subjetivo. Se os únicos pontos de apoio dados são, eles mesmos variáveis, se são perpetuamente diferentes cm relação a si mesmo, fica faltando toda medida comum e não temos nenhum meio de distinguir, em nossas impressões, o que depende do exterior ou o que vem de nós mesmos. (...) Fora dos atos individuais que suscitam, os hábitos coletivos se exprimem por meio de formas definidas: regras jurídicas, morais, provérbios populares, fatos de estrutura social, etc. Como estas formas existem de maneira permanente, como não mudam com as diversas aplicações que delas são feitas, constituem um objeto fixo, uma medida constante que está sempre à disposição do observador e que não deixa lugar às impressões subjetivas e às observações pessoais. (p. 38-39)

DURKHEIM, Emile. "Regras relativas à observação dos fatos sociais". In : As regras do método sociológico. São Paulo : Nacional, 1990. (Biblioteca Universitária. Série 2. Ciências Sociais; v. 44). p. 13-39.

Zelinda Barros