Atualização na Pesquisa da Ataxia de Friedreich

Dr Massimo Pandolfo
(publicado em Generations/NAF - Fall/2000)

O Dr Pandolfo recebeu seu doutorado na Universidade de Milão - Itália, em 1980, e seu pós-doutorado em genética molecular na Universidade da Califórnia, Irvine. De 1988 a 1993, trabalhou na Divisão de Bioquímica e Genética do Sistema Nervoso no Instituto Nacional de Neurologia em Milão, Itália. De 1994 a 1996, trabalhou como Professor Assistente de Neurologia na Escola de Medicina de Baylor em Houston, no Texas - EUA. Desde 1996 é Professor Adjunto da Universidade McGill, Departamento de Neurologia e Neurocirurgia, em Montreal - Canadá. É também Professor de Pesquisa Associada no Departamento de Medicina. O Dr Pandolfo, trabalhando em colaboração com outros pesquisadores, descobriu o gene da ataxia de Friedreich, em 1996.

Vou dar uma visão geral da ataxia de Friedreich no ano passado. Quero também mencionar a importante descoberta de um novo gene recessivo de ataxia, ARSACS (Autosomal Recessive Spastic Ataxia of Charlevoix Sanguenay). O crédito desta descoberta deve ser dado a Andrea Richter, de Montreal. O Dr Richter dedicou muitos anos mapeando e identificando esse gene. ARSACS é uma doença muito rara encontrada em uma parte remota do nordeste do continente norte-americano (região de Charlevoix Sanguenay, em Quebec). Esta é um ataxia espástica recessiva, provavelmente existente também em alguma outra parte do mundo. Existem descrições de casos clinicamente semelhantes e o mapeamento do gene se encontra na mesma região do cromossomo, assim supomos que seja a mesma encontrada em famílias da Tunísia. É provável que esta doença seja encontrada com alguma freqüência em outras famílias de origem européia e do norte da África. Esse novo tipo de gene não se assemelha com nenhum outro de função conhecida. Sabemos que tem uma alta expressão no cerebelo e que o cerebelo se torna severamente atrofiado.
Encontrar os genes responsáveis pelas doenças genéticas é um pouco como achar a caixa preta após um acidente aéreo. Encontramos "a caixa preta", essencial para a compreensão das causas do acidente, mas ela ainda necessita ser decodificada para entendermos exatamente o que saiu errado e que medidas podemos tomar para que o desastre não ocorra novamente. Quando descobrimos os genes, encontramos a anormalidade preliminar em uma doença genética. Ainda temos que percorrer todas as etapas, da mutação do gene ao desenvolvimento da doença, a fim de compreendermos que medidas podemos tomar para deter e prevenir o desenvolvimento da doença em pessoas mais jovens que estejam em risco.
O que nós estamos fazendo para compreender os dados da "caixa preta" da ataxia de Friedreich? Houve um progresso substancial no ano passado, em todos os níveis, desde a compreensão da mutação no nível do DNA que causou a doença até alguns indícios sobre a função da proteína codificada pelo gene. Estamos definindo sua função; estamos começando a ter alguma idéia dos processos celulares que ocorrem de forma errada. E alguns tratamentos estão sendo propostos a fim corrigir esse defeito. Há muitos laboratórios que estão trabalhando ativamente para gerar um modelo animal para esta doença. Eu penso que estamos próximos de obtê-lo.
A ataxia de Friedreich é causada pela expansão da repetição do trinucleotídeo GAA no gene frataxina. Esta doença está provavelmente restrita às pessoas com origem na Europa, no norte da África e no Oriente Médio. A doença é essencialmente ausente no leste da Ásia, não é encontrada na China, Japão, sudoeste da Ásia ou no sul da África, e não é encontrada em americanos nativos. É o que nós chamamos de uma doença indo-européia. E temos uma idéia do porquê disso. Encontramos repetições mais longas (com risco de expandir-se) somente nos povos essencialmente da Europa e do norte da África. Basicamente, por alguma razão, esta mutação foi introduzida somente nessa população, provavelmente quando os povos estavam começando a emigrar da África. Isso não é apenas uma curiosidade, mas é também importante ao diagnosticar-se pessoas de diferentes origens.
Através de uma colaboração nossa com Houston, Texas, Universidade AM, Instituto de Biociências e Tecnologia e a Universidade Chapell Hill da Carolina do Norte, descobrimos que a repetição que causa a ataxia de Friedreich forma um nó na molécula do DNA. É chamado DNA "aderente" porque faz com que duas moléculas do DNA se juntem na região que contém a repetição GAA. Interpretamos que esse nó na fita do DNA é a causa do problema nos pacientes porque impede que o gene seja expresso corretamente. Para que um gene seja expresso, uma cópia da molécula de DNA tem que ser feita em um ácido diferente, o RNA, a seguir a cópia RNA do DNA é usada para direcionar a síntese da proteína codificada pelo gene. Para copiar um segmento do DNA no RNA, uma molécula chamada RNA polimerase desliza ao longo da molécula do DNA e sintetiza uma cópia dela. Se o RNA polimerase alcançar um nó provavelmente parará e terá dificuldades em atravessá-lo. Esta é provavelmente a causa da doença.
Isso é importante para todos os biólogos moleculares e pacientes por várias razões. Primeiro, porque representa um progresso na compreensão da base molecular da doença. Segundo, com esta descoberta veio a idéia de que alterando apenas algumas bases da seqüência repetida pode desestabilizar completamente a estrutura e permitir que a expressão do gene prossiga normalmente. Esta é uma possibilidade para o futuro: intervir na doença tentando introduzir mudanças nessa seqüência e desestabilizá-la. A nível humano, isto não vai ocorrer no próximo ano ou nos próximos cinco anos. É uma direção para a pesquisa de um tratamento da doença. É nova e muito interessante. Esse foi um importante avanço que ocorreu no ano passado.
Há uma informação nova sobre a função bioquímica da frataxina, a proteína deficiente em pacientes com ataxia de Friedreich. A frataxina é uma proteína mitocondrial localizada nas estruturas que existem em cada célula do nosso corpo e necessária para a produção de energia. A frataxina, de uma maneira que ainda não compreendemos, controla o fluxo do ferro para dentro e para fora das mitocôndrias. Se houver deficiência de frataxina o paciente tem demasiado ferro. O ferro reage com o oxigênio e pode gerar moléculas tóxicas, os radicais livres. A maioria deste conhecimento vem dos estudos com o fermento, o qual possui um gene frataxina semelhante ao nosso.
Vários estudos do ano passado mostram que o mesmo mecanismo da levedura pode estar ocorrendo na doença humana, porquanto se encontraram resíduos de ferro mitocondrial nas células de pacientes com ataxia de Friedreich e evidências de danos por radicais livres. Além disso, outros estudos sugerem uma função bioquímica da frataxina. Estes estudos foram apresentados na Sociedade Americana de Genética Humana no mês de outubro, por um grupo da Clínica Mayo. Sua proposta é de que a frataxina é uma proteína capaz de se ligar ao ferro. Quando colocado em solução em um tubo de ensaio, o ferro precipita-se, sendo oxidado pelo oxigênio do ar e formando um precipitado insolúvel. Se houver frataxina no tubo de ensaio e se adicionar ferro, o ferro tingirá a solução, mas não será precipitado. Há uma evidência preliminar de que a frataxina pode se unir ao ferro e impedir sua precipitação. Conseqüentemente, a frataxina teria a função de impedir o ferro mitocondrial de reagir com o oxigênio formando radicais livres tóxicos, pois o ligaria e isolaria do ambiente circundante. Isto foi apresentado em uma reunião internacional e é ainda um trabalho em andamento. Ainda não está finalizado.
Maior progresso foi alcançado com a informação vinda a alguns dias de um grupo da Inglaterra que estudou a estrutura da frataxina. O que isso significa? Uma proteína é uma molécula composta de muitos aminoácidos assim como o DNA é composto por quatro unidades possíveis: A, C, G e T, encadeadas em uma longa fita. As proteínas são compostas por vinte diferentes possíveis unidades chamadas aminoácidos, arranjados também em uma cadeia, e o código para produzir a proteína está contido no DNA. O gene da ataxia de Friedreich contém o código para sintetizar a proteína chamada frataxina. Sabemos a seqüência de aminoácidos desta proteína porque, conhecendo o código, podemos deduzir qual a seqüência. Então, a cadeia da proteína não é apenas uma cadeia longa, flutuando livre no ambiente, ele dobra-se sobre si mesma de uma maneira específica, o que dá à proteína uma forma definida que determina sua função. Por causa de sua forma ela pode interagir com substâncias químicas, promover certas reações químicas ou participar na formação das estruturas das células.
O investigador usou uma técnica muito refinada para determinar como a molécula da frataxina é dobrada e qual a sua forma. A frataxina é uma proteína globular e tem uma superfície altamente conservada em todas os seres vivos. Uma determinada parte da superfície da molécula é basicamente idêntica, indicando que esta parte pode interagir com algo que ainda não identificamos, mas essencialmente da mesma forma em todos os organismos. Foi identificado também que alguns dos pontos de mutação, que raramente causam a doença, desestabilizam a produção da estrutura da proteína, impedindo que a proteína adote sua estrutura apropriada. Este é um importante achado que não estamos ainda prontos para interpretar, mas fornecerá ferramentas importantes para descobrir a função da proteína.
Houve também um esforço no desenvolvimento de um modelo de camundongo para a ataxia de Friedreich, a fim de se estudar a patologia e a patogênese da doença (como se desenvolve e que tipo de dano causa). Podemos dissecar um animal em diferentes estágios de desenvolvimento para ver o que acontece em seu corpo enquanto a doença está se desenvolvendo e progredindo. Podemos observar tecidos específicos que são difíceis de se obter de pacientes, como os do coração e os do sistema nervoso. Podemos gerar camundongos (em cerca de apenas três semanas) e assim a pesquisa progride mais rapidamente. Podemos cruzar camundongos que tenham uma variação específica de outros genes, como metabolismo de ferro e radicais livres, para observar a ação da frataxina e que genes interagem com o gene da frataxina. Podemos também testar em camundongos tratamentos, drogas, substituição de genes, terapia gênica aproximada, desestabilização de repetições, e assim por diante. É muito importante termos um modelo de camundongo.
Não há um modelo de camundongo natural para a ataxia de Friedreich. A primeira tentativa para fazer um camundongo modelo mostrou que a completa ausência da frataxina é letal. Então, se houvesse uma mutação espontânea no camundongo que conduzisse à ausência de frataxina, os camundongos não se desenvolveriam. A expansão GAA específica que encontramos em seres humanos não pode desenvolver-se em camundongos porque a seqüência inicial não está presente no camundongo. Temos que produzir um camundongo, não podemos encontrar um. Há vários problemas para desenvolver este modelo. Temos que reproduzir o defeito tanto quanto possível para que se aproxime ao encontrado em pacientes. Temos que criar uma deficiência, mas não uma falta completa de frataxina, e reproduzir a distribuição dessa deficiência nos tecidos. Precisamos ter camundongos que adoeçam dentro de um tempo razoável e reproduzir todas as principais características da doença humana, incluindo o envolvimento do sistema nervoso, cardiopatia e risco de desenvolver diabetes.
Que tipo de investigação podemos seguir? Uma é chamada de "knock out", desenvolvida pelo Dr Michel Koenig: é uma forma de romper totalmente o gene. Isto foi feito e conduziu a fatalidade, os camundongos não se desenvolveram. Assim mesmo, é um importante modelo para se ter em laboratório, esses camundongos podem ainda ser usados em várias experiências. Por exemplo, podemos tentar tratamentos ou drogas em fêmeas prenhes para ver se ajudam no desenvolvimento dos embriões deficientes em frataxina. Essa pesquisa foi financiada pela National Ataxia Foundation. Estamos seguindo também esse tipo de trabalho em meu laboratório. Estamos tentando tratar as fêmeas mães com antioxidantes ou dietas deficientes em ferro para ver o que acontece, se o desenvolvimento dos embriões muda de alguma forma. Outra coisa que estamos fazendo: cruzando-os com outros camundongos deficientes em genes necessários para as células se suicidarem, para verificar se isso altera alguma coisa na letalidade do modelo.
Em camundongos heterozigotos, uma cópia do gene é rompida e a outra é normal, como nos portadores da ataxia de Friedreich. Com 50% da proteína pode-se avançar com manipulações nos camundongos até atingir o déficit significativo que conduza à enfermidade. Começa-se com uma deficiência de 50% em vez de 100%. Isso pode ser útil para criar um modelo de deficiência.
Conseguimos inserir a expansão GAA no gene do camundongo na mesma posição que é encontrada no gene humano. Este trabalho foi realizado em estreita colaboração com o Dr Jerry Kaplan, da Universidade de Utah, um esforço comum entre nossos laboratórios. Sabemos que as repetições são estáveis no camundongo. Pudemos inserir uma repetição pequena no gene, o que é importante porque obtivemos camundongos viáveis, homozigotos com duas repetições. Eles nasceram e começaram a crescer, mas ainda são muito jovens e é muito cedo para dizer se eles têm a doença ou não. Nós cruzamos esses camundongos com camundongos "knock out" obtendo camundongos com repetição GAA em um cromossomo e o gene rompido no outro. Estamos fazendo estudos patológicos para verificar possíveis problemas de desenvolvimento nesses animais, o que poderia sugerir a mesma coisa na ataxia de Friedreich.
Suspeitamos que parte do problema na ataxia de Friedreich ocorre muito cedo e possivelmente durante o desenvolvimento, em particular a perda das fibras sensoriais dos nervos. Estamos fazendo esse tipo de estudo nos camundongos como uma caracterização inicial que nos dirá se estamos no rumo certo para desenvolver o camundongo modelo. Estamos também fazendo estudos da deficiência de frataxina e seus efeitos na diferenciação celular das células que se tornam neurônios. Temos evidências de que as células deficientes em frataxina podem morrer enquanto tentam diferenciar-se para converte-se em neurônios. Essa pode ser a base para a perda de neurônios sensoriais em pacientes com ataxia de Friedreich, o que causaria a neuropatia sensorial.
Assim, agora aquilo que todos querem ouvir: o tratamento. As tentativas estão baseadas no fato de que assumimos que o problema é devido à produção de radicais livres gerados pelo excesso de ferro nas mitocôndrias. Há várias drogas que podem, teoricamente, ser utilizadas para este propósito. Pode-se usar medicamentos para remover ferro do sistema, e no fermento é possível que isso possa funcionar. Outra descoberta importante é a de que células de fermento deficientes em frataxina se desenvolvem bem sem ferro. Se você adicionar ferro, então, elas começam a ter anormalidades. Isso sugere que os problemas em ataxia de Friedreich possam ser dependentes do ferro, mas os seres humanos não são levedura e não sabemos se é possível retirar ferro do corpo humano sem matá-lo ou criar outros problemas. Podemos tirar bastante ferro do sistema para prevenir os problemas devido a deficiência de frataxina. Um experimento foi realizado na Universidade de Utah para tratar alguns pacientes com quelação de ferro. Aos pacientes foram ministradas altas doses de medicação para induzir a anemia. Eles foram avaliados durante um ano, principalmente para problemas cardíacos. Estamos ansiosos para saber os resultados desse estudo. Ainda estão sendo avaliados, saberemos algo nos próximos meses.
Outras drogas que podem ser usadas são os antioxidantes. Há um grupo francês que propôs o uso de uma substância que se assemelha a coenzima Q. A coenzima Q é normalmente encontrada ativa nas mitocôndrias e tem algo a ver com o processo respiratório. Esta substância pode ativar funções mitocondriais e ser um antioxidante ao mesmo tempo. Foi demonstrado em tubo de ensaio seu efeito protetor contra danos causados pelo ferro em amostras de tecidos. Ministrado a pacientes, dados preliminares sugerem que pode ter alguma eficácia, particularmente no controle da doença cardíaca de pacientes com ataxia de Friedreich. É ainda incerto se ajuda na ataxia. Por isso estamos realizando experimentos para responder a esta questão. Em vários centros se realizam estudos pilotos com coenzima Q e idebenone, inclusive em Montreal. Esses são estudos pilotos, muito preliminares para avaliar se a medicação apresenta problemas de toxicidade em pacientes com ataxia de Friedreich e para verificar se podemos obter algum indício prévio sobre a sua eficácia.
Talvez no próximo ano tenhamos resultados que esclareçam até que ponto essas drogas realmente são efetivas no tratamento da doença. Com fé, seguiremos adiante, acrescentando medicações aos tratamentos para ver se conseguimos melhorar a situação. Muitas coisas interessantes estão acorrendo e logo teremos modelos animais e resultados dos experimentos clínicos. Podemos dizer que entramos em uma nova fase do estudo e, esperançosamente, no conhecimento da doença.


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