VIDAS
PERDIDAS
Oh!
Minha nau...
Um
desejo confesso: leve-me por este mar adentro, pela noite, sem meu quadrante;
onde o desconhecido aterrorizante será menos que o amor me perseguindo e
ferindo.
Quero
esvaziar-me de todos os meus sonhos. Desejo jogá-los, um a um, nas águas
escuras; perdê-los de vez para nunca mais encontrá-los.
A
que ponto cheguei: roubar e fugir como pirata, com algo que sempre me
pertenceu...
Aquela
sombra no cais?... por pouco
cheguei a imaginar que fosse a dela. Mas
é somente uma sombra...
Ainda
insisto em me enganar ao pensar que ela viria; ou para rir de mim, ou pedir a
esta nau fúnebre não partir, ou por fim me denunciar.
No
que errei?
No
que pequei?
Por
amar demais?
Enquanto
houverem lágrimas rolando pelas minhas faces é sinal que ainda se escondem
sombras de um passado dentro de mim.
Minhas
lágrimas não secam de vez, por quê? Deixem-me livre das torturas.
Não
pude mais segurar: coloquei-me a chorar copiosamente, para logo secar...
Oh!
Senhor dos Ventos! Conceda-me o último desejo: sopre estas velas com todas as
forças; tire-me destas terras que somente fizeram-me sofrer...
Singrar
numa noite sem estrelas, onde posso ter a sorte de encontrar um rochedo; é o
que me apraz agora, meu destino.
Oh!
Minha nau, minha Vênus...
Ao
menos você, minha deusa, mereceria melhor sorte do que levar os restos de um
homem que já desistiu de viver...
O
barulho dos ventos e das águas oferece caminho; minha loucura acalmou.
Pego-me
acariciando o timão; minhas mãos agora menos trêmulas levam a roda do leme de
um lado ao outro, sem cuidados e sem destino.
Zarpei
da vida para encontrar a morte, sozinho, sem tripulação.
Lembro-me
de quando cheguei, no outono passado, a este maldito porto: estava o céu todo
cinza, anunciando um inverno sem piedade.
As
águas que tomavam este mesmo porto foram as mais difíceis que naveguei, pois são
todas “machucadas” por pedras submersas e rochedos desafiadores.
Como
em todo porto, partidas e chegadas faziam todo o movimento.
Estava
ansioso para conhecer a cidade, o comércio e, sem dúvida, a alcatéia de
senhoritas que devoram homens vindos do mar.
Pareceram-me
estreitos demais os caminhos que as carruagens tomavam para desfilar, contudo os
cavalos se entendiam.
Estava
todo atrapalhado ao atravessar aquele
desvario, com sorte ainda com vida,
quando percebi um riso frenético de mulher; divertia-se com o meu jeito
desastrado. No primeiro momento fiquei incomodado, no segundo mantive a fleuma.
Pensei:
mas que recepção para um cavalheiro! No entanto, acho que ela tem razão; eu
sou um forasteiro, cômico nas
tentativas, ainda que um cavalheiro...
Observando
melhor, aquela senhorita era o ser mais lindo que os meus olhos já mergulharam.
O vestido em rendas branco rendia todas as homenagens por envolverem aquela
formosura; sua altura provavelmente era no exato ponto de nossas bocas se
tocarem sem artimanhas e esforços; sua pele, alva como a neve que viria na próxima
estação.
E
sua voz, como seria?
Dirigi-me
em sua direção arquitetando tática para provocar algum diálogo:
-
Com meus respeitos, Senhorita! Ao chegar nesta manhã a esta cidade o meu
intento era abastecer minha nau e dar meia volta, no entanto, reparei que meu
coração está tão oco, tão vazio, tão sem vida... precisa muito mais ser
abastecido de amor de uma mulher; foi o que pensei assim que lhe vi. O meu
destino está em suas mãos...
Ela
ouviu espantada e disparou sem cerimônia:
-
Cavalheiro, é mister que as embarcações que aqui aportam, tomem todas as
provisões necessárias para seguirem viagem; quanto ao seu coração oco, vai
continuar fazendo par com sua cabeça.
Virou-se
e foi desfilando lentamente, com ar de vencedora, indo embora.
Que
mulher! Não me importei em absoluto com aquela resposta, pois só queria o
pretexto para ouvi-la. Que voz mais feminina! Imagino aquela voz invadindo meus
ouvidos, eu sentindo o calor de sua respiração em minha nuca, próxima ao meu
colo.
Oh!
Doces desejos!
Visitei,
logo após, o
diretor da
Companhia Marítima de
Abastecimento, Senhor Ducart.
Pude
observar que era um homem sexagenário, nobre, culto e aguçado comerciante.
Parecia possuir grande conceito na sociedade local. Muito simpático, houve uma
identidade imediata de gênios entre nós dois.
Após
acertarmos os últimos pormenores - quantidades, valores e entregas das
mercadorias para minha nau -, ele
convidou-me para um sarau em sua residência, logo mais ao entrar da noite.
Por
que não aceitar? Iria conhecer novas pessoas, ouvir músicas e, ainda, não
haveria desfeita a tão honroso convite.
-
Aceito, com prazer, Senhor Ducart. - respondi de forma agradecida.
Não
sei ao certo, mas estava ansioso pela noite; tanto tempo ao mar...
Banhei-me
como nunca e gastei o espelho biseauté
provando peças de roupas que nunca estavam totalmente de meu agrado.
Por
não conhecer a cidade e pelo excesso de vaidade, atrasei-me.
Cheguei
e tomei o último assento da sala principal, completamente lotada.
O
lume das velas dava um encanto especial ao lugar.
O
recital já havia começado. A pianista, de costas, sobressaía-se na sua
performance no lindo piano preto. Ao terminar magnificamente a execução
daquelas obras dos mais expressivos mestres, levantou-se para agradecer. Os
aplausos ensurdeciam....
Para
minha surpresa, era a mesma senhorita que havia desembainhado a língua contra
mim, pela manhã, na rua estreita.
Entre
os vãos da massa humana meus olhos, feito estrada, traziam para perto de mim
aquele encanto de mulher com gestos delicados e sorriso sem modéstia.
No
escuro mesclado com a intrépida claridade das velas, deu-se um quadro vivo que
me deixou boquiaberto.
O
que um homem não faria para conquistar as atenções de uma mulher assim:
linda, com mais volume do que faltas, de opinião própria, iniciada nas artes
musicais que enaltecem a alma e com os olhos que denunciam uma natureza briosa.
Percebi
que naquela platéia muitos outros estavam enfeitiçados.
Seria
uma luta épica.
O
anfitrião tomou conta da cena e fez todos os elogios de forma esfuziante,
apresentando-a a quem não sabia, como sua jovem e preciosa mulher: Madalaine.
-
O quê! - pensei indignado em voz alta.
Todos
à minha volta olharam-se sem entender.
Fui
arrastado por um turbilhão levantando ondas esmagadoras. Levaram-me ao fundo
sem nenhuma chance de reação. Não conseguia mais ficar naquele lugar, ouvindo
o burburinho das vozes excitadas.
Quando
estava prestes a tomar o caminho de volta, fui impedido por uma voz feminina, já
conhecida:
-
Cavalheiro, por que a pressa? Por acaso já abasteceu tudo o que estava vazio:
sua nau e algo mais?
Fiquei
completamente mudo e gélido. Por minha sorte, o anfitrião interveio:
-
Ah! Senhor Valois! Agradeço ao atender meu convite. Vejo que minha mulher já
está fazendo as honras da casa. Peço mil desculpas; tenho que deixá-los, pois
são tantos os convidados...
Que
situação mais embaraçosa! Disse-lhe então:
-
Madame, quero desculpar-me pelo atrevimento desta manhã; eu não sabia...
-
Esquece! - disse ela tranqüilamente, interrompendo-me - Eu é que na verdade,
pela primeira vez, não me comportei ao rir dos seus passos fora de compasso.
Aliás, não foram só seus passos que me entretiveram. Ainda me percorre um
frio de mistério que me intriga desde então; um dia conto-lhe um segredo... -
sussurrou no meu ouvido.
Mas
o que é isso? Devo estar tendo alucinações, pensei.
-
Ah! Deixe-me apresentá-lo aos demais...
E,
com graça, começou:
-
Amigos, este é o Senhor Valois que vai ficar em nossa hospitaleira cidade por
alguns meses, não é mesmo, Senhor Valois?
Após
os cumprimentos cordiais, queria mais do que nunca um momento a sós com este
esplendor de mulher. Que história era esta de ficar alguns meses?!
No
final da noite, ao despedir-me dos anfitriões, o Senhor Ducart convidou-me, com
o consentimento de Madalaine, para hospedar-me em sua casa de campo, em princípio, por uma semana, pois ansiavam um descanso mais
prolongado.
Aceitei,
sem pestanejar, assustado e excitado.
Não
pude dormir naquela noite.
Madalaine,
beldade etérea, não saía da minha mente. Meu coração já não estava mais
vazio, jorrava desejos inconfessáveis.
Os
meus planos iniciais eram permanecer nesta cidade por uma semana, mas agora já
não sabia mais...
Providenciei
para que tudo estivesse organizado até o dia da viagem à casa dos Ducart.
Como
uma mulher pode derrubar todas as certezas, todas as carreiras, todos os planos
pré-estabelecidos de um homem?
Onde
estas águas da aventura estão me levando?
Devo
dizer que muitas vezes fui devorado, feliz, nas alcatéias dos portos onde
atracava minha velha nau. No entanto, era mais fome que sentimentos.
Agora
tudo era diferente: havia fome, febre e sentimentos. Inclinação afetiva e
sensual.
No
dia marcado, a carruagem levou-me para meu sonho, meu pesadelo particular.
Observei
pelo caminho o verde se avolumando e habitações bem cuidadas.
Distanciava-me
do mar, meu hábitat, onde sei muito bem me cuidar; contudo em terra...
Após
algumas horas, finalmente chegamos a uma vistosa propriedade, cuja arquitetura
barroca seguia a severidade clássica francesa.
Os
criados apressaram-se em carregar a bagagem.
A
porta principal abriu-se; Madalaine, sorrindo, veio recepcionar-me como se fosse
uma velha conhecida. Desinibida, pegou-me pelo braço e caminhamos, agora a
passos coordenados e lentos.
-
E o Senhor Ducart? - perguntei curioso.
-
Foi a Paris às pressas, porém deve voltar ainda hoje. Pediu-me para ser
portadora de mil desculpas ao Senhor. - respondeu Madalaine com naturalidade.
Fiquei
um pouco desconsertado, porém satisfeito.
Sorri
e comentei que, em tão pouco tempo, o Senhor Ducart já estava em débito
comigo em duas mil desculpas...
Continuamos
passeando pela propriedade; ao sentir a lateral de seu seio em pequenos atritos
no meu braço comecei a transpirar
na testa delatora.
-
Posso chamar-lhe somente de Valois? – perguntou-me Madalaine a queima-roupa.
-
Claro! - respondi cordialmente.
-
Valois, você está com tanto calor assim? - perguntou-me com sorriso maroto, de
loba que sai determinada à caça.
Por
um instante empalideci.
Madalaine
estreitou nossos corpos a ponto de ficar estabelecido claramente, entre nós,
que nos roçávamos despudoradamente.
-
Madalaine!
-
Valois!
Chamamo-nos
ao mesmo tempo e, também, nos calamos.
Podíamos
sentir nossos corações aos pulos, agitados.
Corremos
para dentro do bosque e nos beijamos de forma estonteante; nossas línguas
duelavam incansavelmente.
Deitamo-nos
sobre as folhas secas do outono e fechamos os olhos para o mundo.
Despimo-nos
com o desespero dos náufragos e nos conhecemos durante horas, de todas as
formas, já sem pressa alguma.
Já
vestidos, retiramos todas as folhas de nossas roupas, brincando de
“bem-e-mal-me-quer”, como crianças; a cada folha retirada o direito a um
beijo; uns inocentes outros indecentes, porém beijos, muitos beijos...
-
E os criados? - indaguei tardiamente afobado e assustado.
-
Não se preocupe. Eles ouvem e vêem o que queremos. - tranqüilizou-me
Madalaine.
Aproveitando
o momento de intimidade em águas mansas, pedi com insistência a ela
me contar sobre o segredo que mencionara na noite do sarau.
Madalaine,
agora tensa, começou a procurar palavras:
-
Nem sei bem como começar. Há alguns meses uma cigana, famosa em nossa cidade,
leu-me o destino; viu que encontraria um marujo perdido em mar seco e
movimentado, mas que logo atracaria em meu coração sem dono, para sempre.
Disse mais, que nossa separação não poderia acontecer jamais, pois
faltar-nos-ia o ar, o sangue, os
sonhos e a vontade de viver. E, por fim, que a nau desse marujo levava o nome de
uma deusa...
-
Mas esta é uma história fantástica! –
exclamei – De fato minha
nau leva o nome de Vênus, deusa dos prazeres.
- Nunca acreditei nas
palavras fantasiosas da cigana até que vi você chegar no porto descendo de sua
nau, distribuindo ordens imperativas. Seu jeito altivo chamou-me a atenção.
Segui-o pelas ruas até deixar-me ser notada por você, meu amor - murmurou,
Madalaine.
-
Os céus nos abençoam, Madalaine! Quero-a toda para mim, para sempre! Viva a
sabedoria cigana! – bradei, eufórico.
Neste
clima de entusiasmo e espanto, a criada aproximou-se anunciando que um
mensageiro trazia notícias de Ducart.
Madalaine,
titubeando em pegar a mensagem, leu-a em voz alta, após a saída dos serviçais:
“Querida
Madalaine, não poderei voltar enquanto a dúvida perdurar.
Estou-lhe esperando, não importa quanto tempo; estou de coração
aberto para abrigá-la como sempre.
Se a vida tiver alguma coerência, alguma razão maior, você voltará,
ainda que para sermos somente bons
amigos; mas sempre juntos.
De seu
apaixonado,
DUCART”.
Madalaine
derramou algumas lágrimas sobre o papel.
-
Querida, o que está acontecendo? Ducart sempre soube da cigana, sobre nós?
Fale Madalaine, fale! - gritei feito louco.
Sem
alterar a voz, Madalaine descortinou-se diante de mim:
-
Ducart é muito mais velho do que eu, temos um relacionamento aberto, sem
mentiras. Ele sempre me protegeu mais do que realmente me amou. Acredite, eu
sempre o respeitei. Unimo-nos, eu ainda uma menina. Ensinou-me sobre a amizade,
sobre homem e mulher, enfim até sobre seus próprios negócios.
Tomando fôlego, continuou:
-
No dia em que visitei a cigana, contei-lhe tudo. Lembro-me que Ducart ficou
impressionado; ele é muito místico. E o tempo passou... Quando o vi no porto,
percebi que você era em carne e osso o personagem daquela visão. Imediatamente
fui falar com Ducart na Cia. Marítima de Abastecimento. A certeza do destino
foi marcando presença quando logo depois você também esteve no mesmo lugar,
sem saber que eu me escondia na sala ao lado, com a cumplicidade de Ducart.
Olhou-me
com certo desespero e disse:
- Não sei mais o que dizer, no entanto, não abdico do meu amor por você,
que assume proporção incontrolável.
Num
estalo de euforia, ela pegou-me
pela mão, induzindo-me a dançar pela casa, incentivando nosso romance:
-
Venha, Valois, venha brindar e dançar. A vida é saborosa, porém curta demais.
Como Ducart escreveu que “esperaria, não importando quanto tempo...” Então
o que temer? Vamos passar juntos o inverno todo nesta casa, refúgio dos
amantes.
Acuando-me
e indicando-me o quarto no andar acima, indagou ansiosa:
-
Você fica comigo, Valois?
Devoramo-nos
como se o mundo fosse acabar naqueles minutos.
E
assim foi durante quase todo o inverno.
À
distância, dispensei minha tripulação e cancelei todos os meus compromissos.
Ah!
Eu não quero acordar deste sonho; quanto mais fazemos amor, mais sentimos
falta. Suspirava o tempo todo o nome de Madalaine.
Na
última semana antes de findar o inverno, fazíamos o desjejum ainda na cama,
quando Ducart rompeu quarto adentro e fitou-nos com ar ameaçador.
Madalaine
me abraçou com força.
Seria
o dia do juízo final?
-
Senhor Valois, tenha a dignidade de vestir-se. Espero-o na biblioteca em cinco
minutos. - ordenou Ducart com
timbre grave, saindo em seguida.
-
Valois, o que será de nós? Jura
seu amor incondicional por mim? Jura agora, meu amor, jura?
Abracei
Madalaine e disse-lhe:
-
Nada nos separará!
Ao
chegar na biblioteca, Ducart estava de costas para a porta consultando um livro
qualquer.
-
Eis-me aqui, Senhor Ducart. - a voz quase não me saiu.
-
Vejo que o Senhor, em minha ausência, ocupou-se muito bem em zelar pela minha
casa e de Madalaine. -contra-atacou com sarcasmo Ducart.
No
fundo, aquele momento já era esperado por mim, desde o dia em que aceitei o
convite para vir à casa de campo. Parecia-me já ter vivido toda aquela situação,
“déjà vu”.
-
Senhor Ducart, tenho que lhe devolver não duas mil desculpas, mas duzentas mil,
ou melhor, milhões de desculpas por ter desonrado sua casa e a confiança em
mim depositada. No entanto, o Senhor é homem vivido, experiente, que muito deve
ter visto nesta vida, sabe que os assuntos do coração estão acima da razão.
O meu coração foi dominado antes mesmo que eu pudesse ter
consciência de que Madalaine era casada. E ela, também, não sabia o
que se passava em mim, em meu coração. Aconteceu... Depois do seu bilhete a
Madalaine, motivei-me em tentar este amor... é toda a verdade, Senhor Ducart.
Um
silêncio providencial tomou conta de tudo naquela biblioteca. Nem os pássaros
gorjeavam do lado de fora.
Ducart
ficou olhando contemplativo pela janela. E eu ali parado querendo imaginar o que
se passava na cabeça daquele homem.
-
Senhor Valois, que palavras bonitas e românticas; que desprezíveis! Não
importa o que faça. Pensando melhor, tem algo que o Senhor pode fazer para
reparar toda essa desgraça - falou Ducart.
-
O que seria? Fala-me, Senhor Ducart, como posso reparar tamanho estrago?
- Senhor Valois, que futuro vislumbra
para Madalaine? Como o Senhor disse, eu sou um homem experiente e até
certo ponto prático. Eu e Madalaine mantemos
que somos
“casados” somente para
satisfazer a curiosidade do
povo, contudo não há
vínculo jurídico
algum. Ela é minha protegida, entendeu? Estava próximo nosso casamento,
em segredo, porém o Senhor apareceu... Para ficar com Madalaine, quero uma
prova de amor sem hesitação, inconteste: um dote. Mas antes que se surpreenda,
esclareço: quero um dote para ser entregue
integralmente a Madalaine.
- Mas qual seria o montante deste dote? - perguntei.
- Todos os seus bens, inclusive sua nau. – sentenciou, impassível. E,
com um sorriso, complementou Ducart, fazendo uso de "argumento ad
hominem": - Ora, Senhor Valois! Vai me dizer que o seu amor esfriou agora?
Era justamente o que ia fazer após
meu casamento com Madalaine, caso
o Senhor
não tivesse atrapalhado...
Achei extravagante e, ao mesmo tempo, compreensível tal sentença. Para
falar a verdade faria qualquer coisa para sair daquela pressão terrível.
- Aceito e concedo o dote a Madalaine.
- pronunciei convicto, sem pensar
em mais nada.
Apertamos nossas mãos como cavalheiros.
Expusemos, logo em seguida, toda
a situação à pivô do acordo que nos esperava, aflita,
do lado
de fora,
grudada à porta.
- Como pode ser uma coisa destas? Eu não posso aceitar. - reclamou
Madalaine.
Ducart, frívolo, pediu-nos para
discutir o assunto entre nós. E, ainda, solicitou-nos que desocupássemos a
propriedade.
Busquei argumentar e convencer Madalaine,
pois agora
tínhamos a
chance de sermos livres para nos unir para sempre.
Consegui convencê-la e
partimos para a minha cidade natal: Calais, ao Norte do país.
Tempos depois,
efetuado o dote,
incluindo a
nau Vênus, estava
pronto para encontrar-me com Ducart.
Por todo o tempo, em todos os lugares, amávamo-nos ardentemente.
Deixávamos talhados nas árvores mais frondosas nossos nomes.
Era o registro do nosso amor para futuras gerações.
Dias depois, Ducart nos recebeu. Perguntou a Madalaine se estava feliz.
Ela respondeu afirmativamente.
Ducart disse estar com o coração despedaçado, porém satisfeito ao vê-la
denotando grande alegria.
Tudo transcorreu com cortesia.
Habitávamos, temporariamente,
com muita
discrição a
“Vênus” até
nos
organizar por uns poucos dias. Fizemos dela onosso templo de amor.
Começamos a fazer planos: casamento, moradia, filhos...
Numa manhã, ainda ancorados no
porto, Madalaine disse
que iria a terra comprar
tecidos para confeccionar as vestes da moda, que nunca podem esperar. Coisas
explicáveis somente no mundo feminino.
Preocupado com as preparações da viagem, entrei no camarote para checar
todas as relações e planos, quando percebi que a bolsa com dinheiro de
Madalaine estava bem ali, solitária.
Mais do que depressa fui atrás de minha amada, tão esquecida, levar sua
bolsa.
Ao cruzar a esquina do comércio, vejo Madalaine com Ducart...
Só pode ser uma coincidência. Fiquei à distância observando.
Cumprimentaram uma mulher que se adicionou à dupla em rápida conversa.
Não resisti e interceptei-a, logo depois:
- Madame, poderia
dizer-me os nomes das pessoas com as quais há pouco conversava?
É que
desejo também cumprimentá-los,
mas fogem-me seus nomes...
- Ah! É o casal Ducart. Ele
é um próspero comerciante local e Madame Madalaine é uma linda mulher, porém com estranhos modos: todo final de outono e
inverno ela se confina em sua casa
de campo. Isso já vem
acontecendo há
pelo menos quatro anos, sempre da mesma forma. Dizem até que o Senhor
Ducart não aparece por lá nesses períodos, por saber que não são somente as
cobertas que a esquentam, compreendeu? Acho que falei
demais, até logo, Senhor...
- Valois, Madame, Valois. - respondi semimorto.
Uma bala de canhão acertou-me em cheio.
Não era possível que uma alcoviteira estragasse minha vida com uma história
de má-fé. No entanto, não tive coragem de me aproximar, chamar por Madalaine
e entregar-lhe
a bolsa, civilizadamente.
Minha cabeça estava com zumbidos terríveis. Segui-os.
Eles caminharam em direção ao depósito da Cia.
Marítima de Abastecimento.
Pulei a janela, esgueirando-me feito um gato, sem fazer barulho.
Que situação mais humilhante; estou
envergonhado só de imaginar em ser descoberto. Como um gatuno, estiquei os
ouvidos para a conversa que vinha da sala de Ducart:
- Minha adorável Madalaine!
Você mais uma vez foi brilhante. A metade dos bens de Valois caíram
muito bem nos meus domínios; quanto à outra
metade faça bom proveito, querida. Ah! não podemos nos esquecer da parte
merecidamente pertencente a Richelieu.
Meu coração quase saiu pela boca. Tive enjôos horríveis e doloridos.
O que era tudo aquilo?
Madalaine, não. Não era a mesma mulher que amo; não pode ser.
Voltei à rua, precisava de ar. Tudo girava.
Ainda tive tempo de ver Madalaine que saía chorando. Chorando? Não
estou entendendo nada.
Será que
estes patifes,
desumanos e criminosos,
aplicaram este sórdido golpe em mim? Não, não posso crer.
Acompanhei Madalaine à distância.
Ela foi
para a parte alta
da cidade. Sustentava
seu olhar
sobre o porto. Percebi que ela se demorava atentamente na direção de
nossa nau, a Vênus, ou melhor, agora não mais minha.
Madalaine estava aos soluços que não cessavam.
O que será que esta diabólica mulher está pensando?
Em silêncio postei-me diante dela.
- Valois, o que faz aqui?
Não importa, tenho que lhe
revelar uma traição terrível, mesmo correndo o risco de nunca ser perdoada
por você, meu amor.
Continuei em silêncio, sempre em silêncio.
Madalaine pediu-me
para não
a interromper, pois queria
contar uma história que começa há muitos anos:
- Valois, eu sou
do interior, filha de
camponeses. Trabalhavam enquanto a luz do dia permitia, e, à noite, outras
tarefas lhes tomavam o tempo. Lembro minha
mãe dizer
que eu
era uma criança muito
bonita para
viver naquele lugar. Achava que eu tinha vindo
para a família errada; não
queria que eu tivesse a mesma má sorte dela. E assim fui crescendo, preocupada
em não ser deixada neste
lugar esquecido pelo Rei e pelos
homens de melhor futuro.
Com um sorriso triste, prosseguiu:
- De certo modo as
coisas começaram a melhorar
no reinado
de Luís XV: os camponeses compravam
terras, os
burgueses e
magistrados adquiriam castelos, a indústria e o comércio
desenvolviam-se, como você bem sabe, meu amor. No
governo do
cardeal Fleury, preocupado
em estabilizar a moeda, até com certo êxito,
porém quando
do lançamento
dos “vigésimos”,
contribuição fiscal
no montante da
vigésima parte da renda
individual, minha família começou a sofrer terrivelmente. Este imposto, mal
repartido e
mal cobrado, privilegiava
nobres e clérigos, que não pagam ou pouco pagam e ainda olham
com indiferença o povo sofrido. Nesta
época, nosso
país perdeu o domínio sobre Quebec e Montreal, no Canadá, fustigado
pela Inglaterra.
Neste clima
terrível, conheci
Ducart que havia
se interessado em comprar as terras dos meus pais.
Fez uma pausa e, como se estivesse vendo as cenas, continuou:
- Ele encantou-se
comigo e
prometeu à
minha família
levar-me a
Paris para introduzir-me na
corte do bisneto
do Rei Sol. Para falar
a verdade
ficamos próximos das
fronteiras do poder,
apenas por algum tempo, logo
depois nos
mudamos para esta cidade: Le Havre. Confiaram-me a Ducart, como sua protegida.
Adquiri o gosto pela cultura, pelo mundo civilizado, pelas últimas novidades;
estas seriam minhas únicas preocupações. Com a convivência,
Ducart colocou-me
em seus planos
cujo único objetivo era lesar os desavisados.
Havia uma expressão de ódio em seu olhar, quando disse:
- Dizia-me para não me penalizar, pois as fortunas somente são
transferidas das mãos daqueles que não sabem segurá-las, portanto não as
merecem. Com o tempo, fui apresentada ao Duque Richelieu; homens espalhados em
todas as partes prestam todos os tipos
de serviços
a ele, principalmente em Nantes
e Bordeaux, onde estão os grandes e prósperos armadores e navegantes.
Richelieu informa,
então, ao Ducart
com antecipação sobre as embarcações que chegam a
esta cidade, o
perfil de seus
proprietários, se gosta de
mulheres, de jogos, assim, assim...
Diante dessas informações, Ducart arquiteta
cuidadosamente um
plano qualquer para
rapinar o “escolhido”:
Respirou fundo e explicou:
- Contrata pessoas, promove saraus... Está entendendo, Valois?
Num suspiro, prosseguiu:
- Eu que fui uma menina campesina
querendo ser
descoberta por
outros olhos, preocupada em não ser esquecida no deserto da civilização,
me envolvi sem grandes esforços nessas
tramas macabras; jóias,
vestidos, propriedades,
viagens, os homens que quis...
uma grande festa
para uma
deslumbrada do
interior querendo o que tinha de melhor neste século XVIII.
Olhando ternamente para mim, disse:
- Contudo me apaixonei por você. Você
despertou em mim sentimentos que julgava não possuir. Percebi o que as outras
pessoas sentiram ao serem enganadas. Estou arrependida.
Havia determinação em sua voz, ao falar:
- Eu prefiro a morte a ser desprezada por você, Valois. Agora, sou eu
que vou dar-lhe todos os meus bens. É
muito mais do que lhe subtraí. Tudo será seu, meu amor. Tudo! Estou
abrindo meu
coração, pois
não suportava
toda essa mentira, toda essa maldade contra você, meu querido. Estive há
pouco com
Ducart, rompi com todos os
compromissos e acordos que me
desonram. Eu nunca mais quero vê-lo; nunca mais... Quero entregar-lhe tudo,
Valois...
- Tudo? - interrompi abruptamente - Você
poderá restituir-me
o calor
do meu amor por
você? Meus
sonhos e esperanças? E a
confiança gerada entre duas pessoas que se amam, que se perdeu? Ou melhor, foi
somente uma confiança unilateral. Não, Madalaine. Você é tão desprezível
que não merece nem as minhas ofensas.
- Mas, Valois, eu preciso terminar de falar. É muito importante. Nossas
vidas...
- Chega! Sua trapaceira! Não
perdeu ainda
a pele de tigre?
- mais uma
vez a interrompi, sem deixá-la reagir.
Deixei-a, não lhe dando importância alguma. Ouvi Madalaine gritar
meu nome várias vezes, em prantos.
Não sei como pude suportar tudo aquilo.
Andei sem rumo.
Para onde ir agora? pensava a cada passo.
Não tive coragem, nem ânimo para me embebedar.
Precisava ficar lúcido, decidir alguma coisa.
Já era madrugada, a
noite em
luto não permitiu nenhuma estrela, nem
mesmo o luar.
Decidi ir ao porto, ir à minha nau, velha companheira, refugiar-me. Melhor
fazer a última viagem, a última
epopéia, a última desgraça.
Mas, pelo caminho, um
sentimento terrível
de vingança
começou a
dar nós em minha alma.
As risadas de Ducart não saíam de minha cabeça.
Uma fúria
bestial tomou conta de mim.
Fui ao encontro dele, em sua casa.
- Senhor Valois? Qual o motivo
da visita,
a esta
hora? - indagou
Ducart com semblante de pavor.
- Não pude mais esperar e vim trazer-lhe a última peça que ficou fora
do dote, por esquecimento: minha arma. Porém,
temos que fazê-lo meio a meio, não, Senhor Ducart?
Enquanto eu falava Ducart se afastava, já fora de si.
- A arma será entregue a Madalaine e a bala será a sua parte, seu
patife.
Ducart tentou desesperadamente fugir, mas caiu morto com um tiro na nuca.
Tomei de assalto a Vênus, deusa dos iludidos, fugindo de tudo.
Olhei derradeiramente para o
cais, querendo
enganar-me com
uma sombra de mulher,
Madalaine. Estragos da imaginação...
Enlouquecido, zarpei mar adentro.
Após um espaço de tempo, quando já estava ouvindo o quebrar das águas
em algo, provavelmente algum
rochedo prestes a me despedaçar, gelei ao ouvir
a voz de Madalaine:
- Valois, perdoa-me!
- Sua louca, o que está fazendo aqui? Eu não posso ser responsável
pela sua morte! Não vê que navegamos para o fim de tudo? - berrei a plenos
pulmões, alucinado.
- Estou esperando um filho seu, meu amor...
Abraçamo-nos diante da morte iminente. Não havia tempo para mudar o
curso.
- Sim, eu lhe perdôo, Madalaine, meu único e grande amor.
As lágrimas uniram-se para
fazer frente àquela tragédia anunciada.
E antes mesmo de qualquer outra resposta ou de qualquer reação de
Valois, a nau chocou-se contra o
rochedo assassino, indo a pique a Vênus, deusa dos amantes, levando para o
fundo do mar, abraçados e inseparáveis, Valois, Madalaine e o fruto de um amor
perdido.
Vidas perdidas.
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