ANIVERSÁRIO
Um velho senhor arrasta os pés em direção ao portão de sua casa. Difícil
definir-lhe a idade. O seu aspecto senil parece resultar mais de maus
tratos do que da idade.
Ao
peso que arca seus ombros alia-se a desmotivação.
Passos
e mais passos, sonolentos.
O
portão do pequeno quintal de entrada era do outro lado do mundo.
Em
silêncio reprovador, ouve o funcionário dos Correios com uma entrega
nas mãos. Não reage. Não sente um mínimo de curiosidade.
Nada mais
neste mundo lhe interessa. Assina o recibo. Não responde ao
agradecimento do carteiro.
Mórbido,
leva para dentro de casa uma pequena caixa.
Um
pouco pesada até. Pragueja.
Não
procura nem mesmo saber o remetente.
Colocou
o embrulho em cima da mesa da sala.
Sentou-se e ficou ali, fitando sua
visita. Na certa não recebia alguém, ou alguma coisa, o que quer
que se seja, há muito.
O
que se passava em sua cabeça, afinal?
Sua
casa, um grande cômodo, aos moldes de um loft, porém sem intenção
arquitetônica.
Apenas uma casualidade.
Levantou-se.
Foi até a cozinha e encheu, lentamente, um copo grande com água, sem
contudo tirar os olhos, agora mais cuidadosos, de sobre a pequena caixa.
O
velho, aparentemente de alma deserta, boca seca, secou até a última
gota sem perceber.
Ficou
novamente sentado, com o copo vazio na mão trêmula, olhando o intruso
objeto, ou olhando o vazio. Quem sabe?
Era
um homem só e solitário. Sem amigos ou vizinhos que se importassem. A
casa limpa de lembranças. Sem fotos. Sem memória. Parentes próximos não
os tinha, ao que se sabia.
Um
cachorro tão velho quanto o dono; mal enxergava. Dormia profundamente,
naquele momento, na única poltrona.
O
homem colocou as mãos apoiando as têmporas, vigiando por longos
minutos, com a cabeça pesada.
Aquele
acontecimento tumultuou o seu dia. Ele não se lembrava de nada de
extraordinário que modificasse a inércia de seus dias, dos últimos
anos. Tudo muito sem vida. Esperar a visita da morte, era a única
rotina do dia a dia.
Pegou
seu canivete sem fio, e começou a despelar, folha por folha, camada por
camada.
Aquilo lhe deu um certo prazer. Papel de embrulho retalhado,
logo depois folhas de jornal, e, como última epiderme, uma linda folha
de papel de presente.
Abriu
a caixa com alguma delicadeza, e, agora, já com curiosidade mais
evidente.
Ao
projetar sua visão sobre o conteúdo, suas pupilas cresceram de tamanho
em larga surpresa.
Uma
lápide.
Sim,
uma lápide. Não uma qualquer, mas, ao que parecia, a sua própria.
Era
de mármore, na forma de um quadrado de dois palmos, com espessura de
poucos centímetros. Havia sua foto em estilo oval; inscritos o seu nome
completo, data de nascimento - aquele súbito desassossego fez-lhe
lembrar, afinal, que era dia de seu aniversário.
Quantos anos mesmo?,
pensou sem emoção alguma – e, por fim, a data de sua morte.
Mecanicamente, olhou para o calendário pendurado na parede à sua
frente; constatou que a data de seu passamento indicada na lápide
coincidia - dia, mês e ano - com o presente instante que estava vivendo
aquele absurdo.
Um incômodo tomou-lhe, de súbito, a alma.
Um
barulho na maçaneta envelhecida e malcuidada da porta de entrada da
sala fez acordar o cão que dormia, pela aparência de minutos atrás,
esparramado no seu melhor sono.
Seus
latidos eram firmes. Apesar de quase cego, seu instinto deixou-o alerta
contra algo, ou alguém, por detrás da porta.
O
velho colocou a lápide sobre a mesa, fitando ao mesmo tempo a maçaneta
que girava disfarçadamente, em segundos intermináveis, em ruídos
amplificados pela tensão.
O
velho coloca suas mãos ainda trêmulas sobre a mesa.
O
cão ensaia alguns passos de ataque.
A
porta, por fim, fica entreaberta.
O
velho senhor engole seco, olha arregalado em direção de alguém que se
aproxima. O invasor chega lentamente, calmamente, sem precipitação
alguma. Quando bem próximo do homem envelhecido sentado à mesa,
o sinistro mostra-lhe a face. Em uma das mãos carrega um punhal e na
outra um revólver. Com extrema lentidão, olhos nos olhos, assinala ao
velho, em linguagem muda, para uma e outra arma, dando a entender que
era uma escolha a ser feita. Pavorosa escolha. O velho, com as mãos
ainda grudadas sobre a mesa, num esforço terrível, quase sem forças,
entende a deixa, aponta com a cabeça na direção do revólver. O
intruso aproxima-se mais e mais. O cachorro enlouquece, mas sem coragem
suficiente de tentar alguma investida mais agressiva. Sem se importar
com o cão, rosquea com delicadeza um silenciador na arma de fogo,
volta por volta, sem barulho, sem tirar o olhar congelante de cima da
presa sem ação.
Ouve-se
um som seco, e secamente cai o velho corpo ao chão, sem vida.
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