RETORNO
Retornei após muitos e muitos anos ao cenário da
minha infância...
De repente vi-me olhando, reparando nos detalhes
das ruas, das casas e nas fisionomias das pessoas. Procurava alguma coisa
que fosse familiar.
Eu já tinha passado por estes lugares milhares de
vezes descalço, com chinelos, com tênis, com sapatos e motorizado;
brincando, estudando, namorando, trabalhando...
Muitas épocas...
Tudo, porém, estava mudado.
Buscava algo que ligasse o hoje com os outros
tempos.
Mas não adiantava, tudo estava diferente, o tempo
passou: não havia mais o cinema do bairro, no qual o meu pai fôra ainda
menino assistir os seriados nas matinês; o campinho de terra pisada por
pés serelepes, verdadeira arena quando da disputa de flâmulas; o barbeiro
que contava as notícias da semana, um verdadeiro agente do SNI; Dna. Maria
peluda; o bandolim de uma corda só e vocais à base de cebola; a bailarina
do Municipal; “seu” Abraão que fazia sapatos, de quem comprei meu primeiro
par de chuteiras para o qual servi euforicamente como cobaia; o peixeiro
feirante, pai do Vadinho, que nos fornecia temporariamente caixotes para
nossas cabanas; o “Fifi”, o primeiro homossexual declarado; a “maloca”, um
cortiço dos primeiros excluídos; dna. Carmem que aplicava injeções; “seu”
Camilo, de camiseta e com sua cadeira na calçada vendo o tempo passar;
“seu” Cruz, o eletricista com cara de cientista; a criação de
pombos-correio, do Frederico; a platéia particular para assistir admirada
a primeira televisão da rua; a COAP, uma venda bem sortida de alimentos de
primeiras necessidades (e que necessidade) onde os bacalhaus levavam
calados seus beliscões, os litros de vidro com leite no qual, sob o selo
metalizado, dois dedos de farta gordura “sufocavam” o gargalo, o óleo de
cozinha tirado do tambor pela bomba manual, os doces variados que nos
chamavam todos os dias, e os donos do estabelecimento, “seu” Daniel e Dona
Maria, sempre tão gentis e compreensivos com as cadernetas controladoras
das despesas dos fregueses que, em boa parte, eram “pontuais” no atraso
dos pagamentos; as fogueiras das festas juninas onde as mulheres traziam a
pipoca, o pinhão, o quentão, o vinho quente e os homens alimentando as
chamas dançantes que assavam as batatas-doces para a alegria das crianças
que jogavam no fogo a planta “peido de velha” que estourava como rajada de
metralhadora do filme “Combate”; a vacaria com suas cabeças de gado em
disparada pelas ruas no “salve-se quem puder” dando um clima de interior à
grande cidade; as “escuderias” dos jovens felizes em frenéticas gincanas
com vontade intensa de viver; “seu” Aranha, que sofria a doença
transmitida pelo bicho-barbeiro; o homem com olho de vidro; o rapaz que
achava que era um cavalo e portava-se como tal, com crina e rabo; o homem
com a pena verde traspassada no nariz; as colegiais com meias três-quartos
e saias com barras que subiam e desciam; as filas dos alunos cantando
hinos antes de adentrarem as salas de aula; as ruas sem asfalto que
forneciam matéria-prima para nossas obras de barro; as chuvas que
transbordavam as calçadas para levar nossos barquinhos (palitos de
sorvete); as ladeiras que serviam de pistas para nossas pranchas de
madeira “envenenadas” com sebo e parafina; o “seu” Vicente que furava as
bolas que caíam em seu quintal; os alagoanos que todos os sábados tocavam
a sanfona e o triângulo em cantigas incompreensíveis; o “Ismaé” com sua
charanga a manivela; o homem negro de mais de cem anos que vendia
“minduim” sempre rodeado pelas crianças, vindo de lá da Rua Dobrada; as
passistas da Escola de Samba Peruche com as armações metálicas à mostra
indo para a glória particular; a carroça antiga vendendo bucho e fígado; o
peixeiro ambulante, maluco, que dançava com os fregueses em plena rua; o
homem do quebra-queixo; a batida seca da matraca anunciando o biju; o alto
do “morrão” onde enxergávamos os ocupantes dos teco-tecos pousando no
Campo de Marte; as árvores frutíferas generosas diferentemente dos seus
donos; a chácara dos padres em cujas paredes havia inscrições em latim; as
tardes infindáveis em que ficávamos deitados no quintal olhando para o
céu, acompanhando os movimentos e formas das nuvens. Oh! meu Deus, onde
estará o Luizão, ex-campeão sul-americano de boxe que, no auge da
carreira, era um orgulho muito grande e que após uma luta desastrosa na
Argentina ficou com problemas mentais, porém pacífico e infantil andando
pelas ruas somente de calças mesmo em dias de frio de zero grau, sorrindo
e esquivando-se com coreografia de pugilista das provocações dos amigos?
Dona Elvira, alemã, de grande coração, que numa noite de natal correu
atrás de mim, criança rebelde, de maneira fantástica para que eu me
juntasse à sua família, e sua filha Elizabete que derrubava tudo pela
frente ao ouvir o ronco das motocicletas dos galãs semideuses da época?
Dona Aida tocando violino? Dona Augusta que lavava seus cabelos com
cerveja? O Roberto, neto da Dona Nota, que era maníaco por revistas sobre
Drácula a ponto de, apavorado, sentir-se sendo estrangulado? O Atilinho,
muito inteligente, que foi criado e preservado para ser um gênio bem
sucedido, tenho cá minhas dúvidas do que foi feito de sua infância? O
Juan, filho de pai nordestino e mãe boliviana, que levava surras de
cabides principalmente na cabeça? Dona Tosca que criava tartarugas e,
salvo engano, em cuja casa foi a primeira vez que assisti a um funeral
onde já havia livro de presença e urna para “contribuir” com a família?
Dona Filomena com cigarro no canto dos lábios consertando caminhões, que
um dia, raivosa, jogou o pistom em cima do telhado, pois nem seu amor de
mãe agüentou o seu filho Zé “aprender” a tocar o instrumento musical com
tanto entusiasmo bem ao seu lado, e noutra ocasião com um pedaço de
madeira na mão correu atrás de um time inteiro de futebol que ameaçava o
juiz (seu marido Oreste), e como era bonita sua filha Teresa com os olhos
pintados como Cleópatra provocando suspiros solitários dos adultos ao
passar? Zé Gandaia feliz e sua inseparável carroça? O “Bolão” e seu
saxofone, integrante da orquestra da TV Tupi? Os bailes da vassoura na
casa da Dona Wanda, onde sempre se destacavam o Salomão e a Divani para
delírio geral? Nossos campeões de motociclismo Tucano e Casarini? A
escuderia Esmeril com a Madrinha Dona Marta? O Eder Jofre, o maior
pugilista brasileiro de todos os tempos? O Ademar Ferreira da Silva, nosso
"canguru", medalha de ouro em duas Olimpíadas na prova do salto triplo? A
fanfarra maravilhosa do Colégio Bernardino de Campos? Os campos de futebol
varzeano, para assistir, com as mãos cheias de tremoços, o amor à camisa
dos futebolistas heróis de fim de semana? Os pardais em bandos que
passavam apressados pelas manhãs sobre nós e, pela geografia do lugar,
notava-se que iam bem longe, em direção das praças da República, Ramos de
Azevedo e Sé, parte central da cidade de São Paulo, como se possuíssem a
missão de acompanhar os homens que seguiam para trabalhar, buscando o "pão
nosso de cada dia", para logo mais, ao final da tarde, retornarem
barulhentos, contando uns aos outros os acontecimentos do dia, em direção
da Serra da Cantareira, porém com parada obrigatória nas árvores de nossa
querida Praça Centenário?
E a minha tia Odete, que à força me deu um banho
com bombril para tirar os "excessos infantis?”.
Oh! Casa Verde que te quero toda verde, toda
amiga, toda cenário de minha infância.
Esta busca talvez seja uma necessidade de o homem
encontrar a própria identidade, a própria raiz. Uma exigência inerente ao
ser humano em demarcar seu espaço, onde está impressa toda uma história,
sua própria história; onde seu cordão umbilical necessariamente tem que
estar ligado, ainda que de longe, caso contrário ele é como um navio sem
pátria e sem porto; um ser sem “registro” precário nas emoções.
Após muitas fisionomias anônimas achando que minha
busca estaria frustrada, por estas boas coisas que a vida proporciona,
surgiu um olhar. Sim, um olhar finalmente conhecido: uma mulher exuberante
que, rebuscando rapidamente na minha memória do “ontem”, lembrei que era
apenas uma menina-moça que passava pelas mesmas ruas.
Em seu olhar uma nítida impressão de quem não
desperdiça um lance, próprio daqueles que lutam pela vida para conquistar
a alegria de viver e até, quem sabe, o calor de alguém; fixou-me
imponente. Olhou-me de tal maneira que era óbvio que buscasse lembrar-se
de algo. Percebi em seu jeito uma energia daqueles que não desistem de
sonhar em ser feliz. (Seriam os seus olhares somente espelhos que
refletiam a mim mesmo?) Era evidente nessa mulher chamar a atenção das
pessoas mesmo sem a intenção. Porém, muito desses olhares masculinos
pareceu-me ser de caçadores que não entendem que uma “fera-mulher” não é
para se enjaular, mas sim ajudá-la manter-se em liberdade; livre para
buscar seus devaneios...
O homem que quer ter o amor de uma mulher assim
não deve escravizá-la aos seus caprichos mesquinhos e às suas necessidades
mais banais, mas sim libertá-la, fazendo amadurecer a vontade de
descobrir, conjuntamente, todas as expressões do amor ou da paixão, que
começa antes de tudo com o respeito e a confiança e tratá-la com todos os
mimos que uma mulher que sabe ser mulher na essência sempre merece.
Aquele ser que desfilava fazia os homens ao redor
desdobrarem-se em admirá-la.
Pude finalmente sentir o gostinho de encontrar,
através dela, a prova material de um passado real, o elo que me ligaria às
lembranças do colégio, dos amigos, das matinês aos domingos, dos vizinhos,
dos acontecimentos de um passado bem próximo, registrados em minha
lembrança, eternas lembranças...