A LASCA DA MADEIRA
Cinzento o
céu. O azul se foi. Um vento insistia na busca de um agasalho. Os homens da
aldeia: olhar pesado pelos caminhos de pedra. Eram tantas e tantos, para lugar
nenhum.
Mulheres bordavam colorido na beirada dos portões. No fundo, fariam qualquer
coisa para respirar outros ares, outros olhares...
Por toda
parte o vazio. Por toda parte algo sonhando esperança.
Maria
Cândida -Maria, como todas as Marias do mundo,
homenagem àquela que foi mãe da criança bendita, como é bendita toda inocência,
que cresceu na pele de presidiário, de perseguido, de confundido, de amado, de
aguardado, de o filho Dele, de libertador, que do alto da cruz podia ver a Deus,
e umedeceu o manto materno com soluços de dor, de gotas de sangue, desespero,
compreensão e amor. Naufragou no mar salgado dos olhos de Maria, Maria! Maria!
como de todas as outras Marias do mundo que enterraram seus filhos no mar Morto
das injustiças e brutalidades-, não conseguia bordar. Invejava aquelas
que sustinham no colo o tecido branco, como um tapete à espera de cada trama
para formar uma história. Ao contrário das outras moças, Maria Cândida não
permanecia nas escadas do portão, não tinha coragem de seguir outros olhos, não
se permitia sorrir, deixar-se ver. Não deitava, estendia-se como manta da própria
cama. Era impossibilitada de andar ou sentar-se. Em sua cama um crucifixo,
presente da tia, guardiã da igreja do lugar, com a orientação de rezar todas
as contas.
Seus
pais pesavam mais que os outros da aldeia antiga, de pedras, cercada em boa
parte pelo mar, mar lusitano.
O céu já
não tinha cor. O azul se foi. Sem indícios de melhoria.
A corrosão
só não atacava a herança do orgulho da raça.
A fé unia
aquele povo.
Maria Cândida,
a que não andava, ouvidos abertos, aguçava os sentidos.
Soube que
para a aldeia da vizinha ilha, uma grande multidão convergia. Conversão de fé.
Espalhou-se por todos os recantos que no alto do monte Piedade havia um
Cruzeiro. Não um qualquer; esse milagroso.
Como tudo
aquilo que sinaliza salvação, recebia exércitos de soldados deserdados pela
vida inglória. Carregavam sobre os ombros a falta de tudo: de dinheiro, de saúde,
de moradia, de emprego, de paz...
Ouviam-se
maravilhas. Um pouco de razão, um pouco de ilusão, um pouco de profanação;
de tudo um pouco. Mas o que importa, se há esperança?
Maria
Cândida, que era manta, brilhou em seus olhos algo que não conhecia. Queria ir
para diante da cruz milagrosa. Quem sabe o que poderia acontecer? Pediu,
implorou que a levassem. Logo a realidade falou mais alto. Não seria possível
transportá-la, difícil viagem. Embarcações rudimentares de pescadores era o
meio. Conformada como todas as mantas alisadas para causar boa impressão, pediu
à sua mãe, também Maria, para ir até ao Cruzeiro. Trouxesse dele, lasca que
fosse, um pouco daquele milagre, um pouco daquela esperança, para suprir o
vazio que sempre carregou sobre os seus ombros que de tão pesado ia ao fundo da
própria alma. De tão pesado, não conseguia andar, ou sentar-se. Só manta.
Sua mãe,
Maria, logo cedo, partiu entre pedras, via crucis, entre águas,
entre desesperos e sonhos; chegou ao destino. Gritos, insanidade, de homens e
mulheres. Não entendia o que se passava. Histeria coletiva. Logo, pegando um
homem pelos colarinhos, pôde entender. Alguém, durante a noite, ateara fogo no
madeiro da cruz. Desesperada, largou o homem e correu, chorando, até ao
Cruzeiro. Nem cinzas ficaram. O vento levou, borrando a rua. Maria ficou ali
parada. Sua filha não lhe saía da cabeça. Sentia o fracasso se agigantando.
Alucinada, culpava-se mais uma vez. Via imagens terríveis em sua mente: pregava
sua própria filha, estendida, na cama-cárcere.
Retornando, ainda no porto, viu chegar a embarcação. O que dizer, o que fazer,
quando chegar diante da filha? Mão delicada pousou em seu ombro. Assustada,
olhou para trás e viu uma mulher, senhora. Roupas estranhas. Estrangeira,
talvez. Antes mesmo que perguntasse algo, a senhora olhou-a com firmeza, foi até
o barco ancorado, trouxe uma lasca, quase imperceptível, e entregou-lhe. Que
loucura é essa? pensou. Como lendo seus pensamentos, a inesperada senhora
respondeu-lhe: - Você não veio com uma missão para esta localidade? Não
pediu sua filha, lasca que fosse, de um pouco do milagre, um pouco da esperança,
então? Na primeira distração do olhar de Maria, a súbita senhora se foi.
Perguntou às pessoas ao redor, não souberam responder, não restando outra
alternativa que tomar a embarcação.
Maria
Cândida, em crise de ansiedade, logo gritou num fôlego só ao avistar sua mãe
- O que trouxe para mim?
Trouxe o que eu pedi? Como era o Cruzeiro?
Maria, a mãe, nada pôde
falar. Garganta apertada. Abriu a mão e entregou a lasca de madeira à filha.
A moça
pôs-se a orar, orar, orar... De repente, parou e disparou:
- Então
é isso, mamãe? Que idéia luminosa. É a lasca do Cruzeiro milagreiro? Muito,
mas muito obrigada, mamãe querida. Eu sabia que podia confiar na senhora. Foi o
melhor presente da minha vida –completou com contentamento.
Sua mãe,
sem coragem, nada respondeu.
Os
dias foram se passando, as preces persistindo. Nada de novo aos olhos da mãe.
Numa
manhã, o azul voltou. Maria Cândida pediu para colocar sua cama no portão de
sua casa, coisa que nunca fizera. Pediu, ainda, pano branco e linhas coloridas.
Começou a bordar. Quem diria, começou a bordar.
Quando
Maria, mãe, olhou para a rua, viu aquela senhora do porto chegar sorrindo. Sem
que Maria Cândida percebesse qualquer coisa, Maria aproximou-se, ríspida.
-
Como pude oferecer tamanha mentira? Fazer minha filha acreditar que essa era a
lasca da cruz milagrosa, quando era, sim, a de um barco?
Sem
mudar o semblante de alegria, a senhora respondeu:
- A fé, minha boa filha,
tem um tanto de sublime, um tanto da simplicidade. A fé é operada pela ignorância
na busca do extraordinário, mas extraordinário mesmo é a própria fé, a
confiança em algo que a percepção da razão e conhecimento conquistado não
conseguem alcançar ou empreender. Quem consegue explicar a fé? Quem pode
dizer como a fé opera? Podemos dizer, sim, o que salva é a fé e não o
"pau da barca" ou da cruz. Veja como está feliz sua filha. Ela,
agora, com sensibilidade, borda seus talentos e sonhos, fixando-os no pano em
que antes só tinha o branco do tudo a fazer. A propósito, eu não retirei
lasca do barco, como pensa, retirei da cruz que suspendeu meu filho na dor do
mundo. Meu filho... – falando baixo, com
ternura – que saudades do menininho em meus braços no ar quente das
ventas dos animais. Do menino que corria nas elevações perto de casa,
falando sozinho. Do menino que ajudava ao pai em seu ofício. Do meu menino
inocente, como são todas as outras inocências infantis, que cresceu na pele
de presidiário, de perseguido, de confundido, de amado, de aguardado, de o
filho Dele, de libertador, que do alto da cruz podia ver a Deus; umedeceu o
meu manto materno com soluços de dor, gotas de sangue, desespero, compreensão
e amor, o meu menino. Naufragou no mar salgado dos meus olhos, assim como de
outras mães que enterraram a seus filhos no mar Morto das injustiças e
brutalidade. Ainda, as religiões, ah, as religiões... fizeram-no, meu
menino, crucifixo, preso arrastando as contas, como arrastam os condenados os
seus grilhões.
Maria, pasma, nada a dizer,
ajoelhou-se e chorou.
- Mamãe, por que chora? –
perguntou a nova bordadeira.
Ao
levantar os olhos, Maria, espantada e emocionada, somente enxergou sua filha.
Aproximou-se e perguntou-lhe, sinceramente:
- Filha, você está feliz,
mesmo não podendo andar? Será que você devia mesmo se apoiar numa simples
lasca de madeira?
- Eu sei, mamãe, que é uma simples
lasca, mas cada um precisa de sua "lasca de madeira" para continuar
acreditando em algo que vale a pena para viver, para se apoiar, para despertar
a fé. Eu sei, eu sei, é verdade, não estou andando, mas consegui algo
melhor, consegui bordar
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