A PEDRA QUE MOISES PERDEU

2a Versão

Moisés erguendo uma das pedras na escuridão, à beira do Sinai

 

Oliver Marti

 

Era o ano 1513 A . C. . .

O êxodo do Egito, através do Mar Vermelho, ocorrera três meses antes e os israelitas estavam acampados junto ao Monte Sinai. Moisés, entrando no seu octogésimo ano de vida, estava cansado. Cansado mas firme, em seu propósito de conduzir o povo de Israel até a Palestina, a Terra Prometida. Mas o velho patriarca andava preocupado : os descendentes de Abraão, teimosos e até irreverentes, andavam praticando toda sorte de desatinos, comportamento inaceitável para servos "eleitos" do Senhor. Diversas vezes, o Eterno, através da voz de seus anjos, havia advertido os israelitas, sobre suas atitudes. Mas eles teimavam em se comportar mal.

Sim, Moisés estava muito preocupado. Principalmente porque Jeová já começava a mostrar sinais de descontentamento com os judeus, castigando-os com pragas e enxurradas que destruíam as lavouras e outras vicissitudes de menor monta. E quanto mais discutia sobre esses infortúnios com outros anciãos de Israel, mais se convencia da necessidade de se ter, por escrito, alguma forma de Lei, que determinasse normas de comportamento e fixasse as punições a serem impostas aos desobedientes. É, era isso que estava faltando. Mas, quem, senão Deus, poderia estabelecer os princípios a serer definitivamente seguidos? Passou, então, Moisés, a pedir, em suas orações, que Ele cuidasse, logo, dessa inadiável tarefa. Orava, praticamente, todas as hora do dia. Mas, durante muitos dias, de Jeová, nada.

Moisés já começava a desanimar quando, durante um entardecer nublado, estando a colher alguns gravetos secos, próximo ao Monte Sinai, percebeu que, das nuvens carregadas, vinha descendo uma bola de fogo, a qual, curiosamente, não queimava nada nem produzia calor. De certo algo divino, pensou. E pensou certo. A estranha massa foi se transformando, até atingir uma forma quase humana, porém de gigantesca estatura e portando asas : um anjo. E o anjo falou : " Moisés, o Senhor ouviu os teus clamores. Se demorou a enviar uma resposta, foi porque a gravidade do assunto exigiu longas meditações. Mas já está tudo decidido. Vim dar-te as instruções para que tu possas ir ao encontro Dele. E, desta vez, Ele não te falará à distância ou através de um querubim. O Eterno descerá sobre o Monte Sinai, para conversar diretamente contigo ". E, em seguida, lhe deu determinadas instruções.

Moisés escutou tudo, entre satisfeito e apreensivo. Satisfeito pois Jeová, finalmente, atendera aos seus pedidos. Apreensivo porque, afinal de contas, em breve estaria frente a frente com o Todo-Poderoso e, ao que constava, qualquer mortal que visse o rosto do Senhor, imediatamente cairia fulminado. Mas, graças a sua fé inabalável, ele contava em se tornar a primeira exceção. Bem cedo, na manhã seguinte, Moisés reuniu-se com a esposa Zipora, o irmão Arão e alguns veneráveis anciões e deu-lhes conhecimento do ocorrido, anunciando que, logo após o desjejum, subiria o Sinai para ir ao encontro do Senhor.

Antes de partir, o patriarca tomou um prolongado banho com ervas perfumadas, a fim de se purificar. Depois, tratou de cortar três talhas de pedra. O anjo havia recomendado que levasse duas, mas, por precaução, optou por levar mais uma. E arrumou, também, uma lasca de ferro afiada. Agora estava pronto para escrever o que Deus lhe ditasse. Sim, porque a ordem para levar tais objetos só podia significar que, louvado seja o Senhor, era esta a intenção do Todo-Poderoso.

A notícia do encontro entre Moisés e o Eterno, logo se espalhou entre os israelitas. Homens, mulheres e crianças, às centenas, começaram a se reunir na base do monte, junto ao local da trilha que iniciava o caminho de subida. A manhã estava clara e o céu, bastante azul, prenunciava um dia ensolarado. Descalço, vestindo apenas uma túnica muito branca, Moisés acenou para a multidão e, na companhia de Arão, começou a subir. Como determinado pelo anjo, o irmão iria somente até um certo ponto, a meio caminho do topo do monte. De lá, o patriarca prosseguiria só, para o seu histórico encontro.

O Monte Sinai situa-se mais ou menos no centro da região meridional da península do mesmo nome. É uma formação rochosa de granito avermelhado, cercada pelo deserto. No tempo de Moisés, o acesso ao topo se fazia por uma picada escavada na pedra, que progredia, da base até o cume, ao longo das encostas, como uma espécie de escada em espiral. Havia trechos bastante íngremes, alguns dos quais muito escorregadios, pela presença de limo, e que se tornavam ainda mais perigosos quando chovia. Um dos lados da encosta apresentava, junto a base do monte, inúmeras fendas entre as rochas. Qualquer objeto, não muito grande, que porventura viesse a cair nessa área, de certo não seria facilmente encontrado. Lenta mas mais firmemente, o octogenário Moisés foi avançando pela trilha, seguido pelo irmão que, conquanto três anos mais velho, mostrava-se tão lépido quanto ele. A meio caminho, Arão despediu-se do patriarca e voltou. Moisés continuou a subir. Ao cabo de, mais ou menos, quatro horas, chegou ao cume.

Uma forte neblina dificultava a visibilidade. Contudo, dava para perceber que o topo do monte era uma área de pequenas dimensões, formando uma espécie de plataforma, quase toda ela alisada por milhões de anos de ventos e intempéries, e alguns pedregulhos, de tamanhos variáveis, espalhados pela superfície rochosa. Moisés apertou os olhos, buscando enxergar melhor, e olhou ao derredor. Nada conseguiu ver além das pedras. Nem uma brisa soprava. Tudo envolvido no mais profundo silêncio. Aonde estava Deus ?

Lá em baixo, milhares de israelitas continuavam aguardando, sem saber exatamente o que. O dia passara da metade e. Moisés já partira há bastante tempo, porém, do monte, nenhum sinal. Mas eles não esperavam em silêncio. Quase todo o mundo tinha algum tipo de comentário a fazer. Uns, mais tementes a Deus, achavam que algo de sobrenatural iria mesmo acontecer. Outros, incrédulos, resmungavam que estavam alí a perder tempo e começavam a pensar em ir cuidar de seus afazeres. Alguns, mais irreverentes, insinuavam que toda aquela estória de anjo e convocação para subir o Sinai não passava de uma fantasia do velho Moisés, o qual, certamente, estava ficando de "miolo mole" . A maioria, contudo, permanecia "em cima do muro", nem crendo nem descrendo, apenas esperando para ver o que iria suceder.

Subitamente, à leste, apareceu uma gigantesca nuvem negra, ocupando toda a linha do horizonte. Alguém chamou a atenção para o fato e todos os olhos se voltaram para o alto. Aterrorizados, viram a nuvem avançar, velozmente, na direção deles. Alguns começaram a correr em sentido contrário, mas a maioria atirou-se ao solo, implorando clemência ao Todo-Poderoso. Em segundos, o céu escureceu. De repente, a nuvem, como que se contraiu e parou bem acima de suas cabeças para, logo em seguida, começar a descer em direção ao topo do monte. Um raio iluminou a semi-escuridão e um trovão ensurdecedor se fez ouvir. Tudo isso, em menos de um minuto. Então, o som de uma trombeta ecoou por todo o Sinai. Depois, seguiu-se um terrível silêncio. Estarrecidos, os filhos de Israel permaneciam prostrados, junto ao chão, orando, sem que, sequer, os lábios se movessem. Menos um. Arão pôs-se de pé, abriu os braços, ergueu os olhos para cima e exclamou : "O Senhor desceu no Sinai !"

Por causa da neblina, Moisés somente percebeu a nuvem quando ela já estava bem acima dele. O raio, que abrira um pequena cratera no solo, a poucos passos de onde ele se encontrava, cegou-o por alguns segundos. O patriarca atirou-se ao chão, com o coração a disparar dentro do peito, enquanto um forte trovão feria-lhe os ouvidos. Aturdido, só compreendeu que não se tratava de um fenômeno natural quando escutou o soar da trombeta. Então teve certeza que o ocorrido tinha sido um prenúncio da chegada do Todo-Poderoso. Assim que o silêncio baixou, a voz de Deus fez-se ouvir, ao mesmo tempo sonora e tonitruante :

"Nada receies, Moisés, é o teu Senhor quem te fala. Acalma-te e senta sobre uma dessas pedras, para que possamos conversar."

O patriarca lentamente obedeceu. Olhou ao derredor e depois disse, com a voz ainda trêmula :

"Não consigo ver-te, meu Senhor"

"A minha face não poderá ser vista jamais. Se algum mortal , por ventura, ou melhor dizendo, por desventura, viesse a vê-la, morreria instantaneamente. Mas permitirei que contemples as minhas costas, enquanto estivermos dialogando. Olha a tua esquerda."

Moisés olhou na direção indicada e percebeu, esmaecida pela neblina, uma forma esbranquiçada, de contornos pouco nítidos, que fazia lembrar as costas de um gigante : eram as costas de Deus ! Munido de uma certa dose de coragem, ousou indagar :

"E será assim que nos manteremos todo o tempo ? Eu, sentado sobre esta pedra e tu, Senhor, de pé, de costas para mim ?"

A resposta foi curta e grossa :

"É assim que tem de ser. Trouxeste as pedras para escrever o que irei ditar ?"

"Sim, aqui estão" - respondeu Moisés, pondo à mostra as três talhas, mas sem entender como o Eterno poderia vê-las, já que estava de costas. Mas logo lembrou que, para um Todo-Poderoso, de certo nada era impossível.

"Muito bem" - disse Deus, aparentemente satisfeito - "Agora, ouve com atenção. O que for escrito aqui representará um acordo que eu farei contigo, com o povo de Israel e com toda a humanidade. Com os que estão vivos hoje e com todas as gerações que se seguirão, até o final dos tempos. Eu ditarei e tu escreverás, nessas talhas de pedra, de forma simplificada, para que todos entendam, os mandamentos da Lei."

O Eterno parou de falar por um instante, mas logo prosseguiu :

" Antes porém, discutiremos cada um deles, em todos os detalhes. Será uma tarefa de muitos dias e muitas noites. Mas é preciso. Tudo deve ficar muito claro para que, depois, possas explicar ao povo, com conhecimento e sabedoria, o completo significado desses mandamentos. E durante todo esse tempo, tu jejuarás. Isto te purificará e tornar-te-á ainda mais digno de levar aos hebreus os escritos da minha palavra."

O Senhor fez uma segunda pausa, antes de concluir, em tom bondoso :

"Agora, Moisés, vá descansar um pouco. Fizeste uma subida difícil. Teus ossos e teus músculos precisam repousar. Amanhã, antes do romper da aurora, começaremos."

E foram quarenta dias e quarenta noites de conversas. Bem, melhor dizendo, de monólogos, já que Deus falou o tempo todo e Moisés se limitou a ouvir e concordar. Na manhã do quadragésimo - primeiro dia, o Senhor se pôs a ditar um resumo de cada mandamento, enquanto o patriarca passava-os para as talhas. Eram dez ao todo. Cinco gravados em cada pedra. Com sua missão aparentemente terminada, Moisés pôs-se de joelhos, louvou o Eterno e, em seguida, se ergueu e solicitou permissão para se retirar. Além de muito cansado, estava ansioso para levar a palavra de Deus ao povo de Israel. Sem se virar, sempre de costas para o velho, o Todo-Poderoso falou, com a altivez de quem não precisa ser modesto :

"Tu fizeste um belo trabalho. Superaste o jejum e a fadiga. Comprovaste que imensa foi a minha sabedoria em te haver escolhido para falar, em meu nome, com os hebreus e os gentios. Parte com minha benção e que longa seja a tua vida."

Moisés quase desmaiou de júbilo e emoção. Lágrimas de contentamento desciam-lhe pelo rosto. Fez uma última reverência ao Eterno e já ia se encaminhando para o local da descida, quando a voz de Jeová interrompeu-lhe os passos :

"Espera, Moisés. Ocorreu-me uma súbita idéia, uma divina inspiração. Há ainda dois outros mandamentos que devemos acrescentar" - e lendo o pensamento do patriarca, prosseguiu, num tom que, fosse Seu rosto visível, certamente teria sido acompanhado de um sorriso - "Não receies, contudo. Não mais te cansarei com longas dissertações. Estes mandamentos não necessitam ser explicados. São explícitos por sua própria natureza. Ainda bem que trouxeste mais uma pedra. Escreve nela. Serão apenas duas linhas."

Moisés voltou a se sentar, tomou a talha em suas mãos e, com a lasca de ferro, inscreveu na pedra os dois últimos mandamentos ditados pelo Senhor. Na verdade, duas frases surprendentemente simples. Uma derradeira despedida e o patriarca, trazendo nas mãos as três talhas, começou descer o Sinai.

Havia chovido na véspera e o estreito caminho estava bastante escorregadio. Cautelosamente, Moisés foi avançando. Sofreu algumas escorregadelas mas conseguiu se aprumar. Lá do alto, Deus observava. O patriarca prosseguia descendo. De repente, um dos pés falseou sobre o limo, o velho judeu perdeu o equilíbrio e se estatelou no chão de pedra. Na queda, uma das talhas escapou-lhe das mãos e, sob seu olhar apavorado, despencou no espaço. Trêmulo, com o coração acelerado querendo sair do peito, Moisés se arrastou até a beira da encosta e olhou para baixo. Lá no fundo, na base do monte, só se viam as fendas escuras entre as pedras pontudas. A talha havia desaparecido...

Por longo tempo, o patriarca ficou como que paralisado. Depois, aos poucos, a lucidez foi voltando. A primeira providência foi verificar qual das talhas havia despencado no abismo. Passou os olhos nas duas remanescentes, caídas no chão, a seu lado, e logo constatou tratar-se da terceira, aquela que continha os dois últimos mandamentos ditados pelo Senhor. O que fazer ?- pensou, buscando concatenar as idéias. Tentar recuperar a talha, quando chegasse à base do monte ? Não, isto seria praticamente impossível. Todo o mundo sabia que qualquer objeto que caísse entre aquelas fendas, dificilmente seria encontrado. Voltar ao topo, implorar perdão a Deus e suplicar-Lhe que reeditasse os dois últimos mandamentos, posto que, estranhamente, sofrera uma espécie de "branco" e não conseguia se lembrar deles ? E se Deus já tivesse ido embora ?

Acalma-te, Moisés ! - disse consigo mesmo - Encontrarás alguma solução. Ocorreu-lhe então que, certamente, o Eterno deveria ter visto ou, pelo menos, de alguma forma, sabido, o que ocorrera. Afinal de contas, não está sempre o Todo-Poderoso a par de tudo ? E porque não demonstrara qualquer reação ? Deus poderia tê-lo chamado de volta, fulminado-o pelo seu desastroso descuido, ou tomado qualquer outra atitude. Porque não fizera nada ? Uma esperançosa hipótese logo lhe ocorreu: talvez o Senhor não desse tanta importância a esses doia mandamentos. Afinal, não tinham eles resultado de um impulso de última hora do Eterno ? Bem, refletiu o patriarca, pragmática e filosoficamente : o que está feito, feito está. Se o Senhor tiver de me punir, Ele o fará, como e quando desejar, e nada posso fazer para impedir, senão, talvez, implorando perdão em minhas orações. Agora, é seguir em frente. E

ntão Moisés apanhou as duas pedras restantes, pôs-se de pé e retomou a descida.

Mas o Eterno tinha visto tudo e, ao contrário do que desejaria Moisés, não ficara nada indiferente ao sucedido. Sua reação, contudo, foi bem distinta de qualquer coisa que o velho patriarca pudesse imaginar. Ao ver que uma das pedras havia caído no abismo e, logo sabendo qual delas havia sido, o Senhor disse consigo mesmo :

"É, realmente não tem jeito. Há algo de profundamente errado com esta espécie que, a princípio, julguei ter sido minha obra mais perfeita. De alguma forma falhei. Como essa gente tem-me causado decepções ! A começar por Adão e Eva... E agora, aquele a quem escolhi para liderar o povo, que imaginava merecer a condição de "eleito", me apronta uma coisa dessas. Pois bem, eu desisto, pelo menos por enquanto. Até que tudo venha a ser revisto, os humanos continuarão sendo exploradores, egoístas e complicados, já que parece ser esta a sua vocação, E pagarão caro por isso Afastar-me-ei me de tudo, por alguns séculos, para, após sérias meditações, tentar realizar uma profunda revisão a respeito de toda a Criação. Mas, durante esse período de ausência, a fim de impedir que o Demo cubra a Terra de trevas e se instale o caos, nomearei um arcanjo, para se fazer passar por mim diante dos homens. Ele cuidará para que a Lei seja observada, gratificando ou punindo, conforme necessário. Porém os grandes eventos e transformações, já previstos para acontecerem nos próximos quinze séculos, acontecerão. Depois... há que se ver".

E com estas palavras de desabafo, Deus deu por encerrada uma etapa da história teológica da humanidade. Num piscar de olhos, deixou o Sinai, atravessou as barreiras do tempo e do espaço e chegou ao seu retiro, em algum lugar do infinito extra - cósmico, para meditar sobre as coisas do passado, do presente e do futuro.

O Eterno voltaria ao cosmos ao cabo de 1500 anos terrestres. Porém, com características bastante diferentes. Não mais aquele Jeová intransigente, severo e, em muitas ocasiões, até mesmo vingativo. Mas um Deus tranqüilo, paciente, bondoso e, porque não dizer ? parecendo, as vezes, um tanto indolente... Reataria suas ligações com a humanidade, através de um dos seus filhos, aquele a quem os homens chamariam de Jesus e que revelaria possuir as mesmas características do seu amado Pai...

Aquela era também uma manhã muito bonita, cheia de sol. Os hebreus estavam reunidos para escutar o que se iria dizer. Todos guardavam o mais respeitoso silêncio. Após a aterrorizadora manifestação da natureza ocorrida naquele histórico dia, quarenta e dois dias antes, ninguém mais ousava duvidar que o velho líder havia mesmo se encontrado com Jeová e que Dele recebera uma mensagem, a ser transmitida ao povo de Israel.

De frente para a multidão, acomodavam-se os anciões e os sábios da nação, tendo ao centro, sentado em sua cadeira de patriarca - mor, o agora consagrado Moisés. Próximo, em cima de uma pedra lisa, que lhe servia de palanque, Arão, o porta-voz oficial, preparava-se para ler as palavras do Senhor. Segurando uma talha em cada mão, elevou-as diante dos olhos e, com sua voz forte e cristalina, enunciou, bem alto, para que todos ouvissem, os dez mandamentos da Lei :

Primeiro - NÃO ADORARÁS outro DEUS além de mim.

Segundo - NÃO EVOCARÁS, em vão, o nome do teu SENHOR.

Terceiro - GUARDARÁS, sem trabalhar, o dia consagrado à adoração do teu DEUS.

Quarto - HONRARÁS teu pai e tua mãe.

Quinto - NÃO MATARÁS.

Sexto - NÃO COMETERÁS ADULTÉRIO.

Sétimo - NÃO ROUBARÁS.

Oitavo - NÃO LEVANTARÁS FALSO TESTEMUNHO contra ninguém.

Nono - NÃO COBIÇARÁS a mulher do próximo.

Décimo - NÃO COBIÇARÁS os bens de outra pessoa.

Terminada a leitura, os israelitas se puseram a comentar o seu teor, mas em voz baixa, naturalmente, já que o renovado temor ao Senhor ainda estava muito vivo para todos.

Moisés, conquanto não desse a perceber, estava ansioso e assustado. Se o Senhor decidisse puni-lo pela perda da pedra, certamente aquele seria o momento ideal para descarregar a Sua ira. Já até imaginava um raio descendo do céu, naquele exato instante, para incinerá-lo. Mas nada aconteceu. Tudo continuava na maior tranquilidade. É, pensou o patriarca, aqueles dois últimos mandamentos, os que estavam na pedra perdida, tinham sido, apenas, o fruto de uma impulso de última hora do Criador e, por isso, Ele não lhes conferiu maior importância. Daí nunca ter ocorrido qualquer interpelação ou castigo. Estava salvo.

Com um suspiro de alívio, Moisés afundou o corpo em sua confortável cadeira de patriarca - mor e, cansado dos esforços físicos, das tensões dos últimos dias e das noites mal dormidas, fechou os olhos e cochilou...

Ano 200_ D. C. ------ Península do Sinai

O "jeep" avançava velozmente pela excelente estrada, recentemente construída, trazendo de volta, para Jerusalém ,o Prof. Davi Feldman, Diretor do Instituto de Arqueologia e Paleontologia do Estado de Israel. Regressava ele de uma visita ao histórico Monte Sinai, para onde havia sido chamado, às pressas, no dia anterior.

A súbita viagem fora motivada pelo fato de que, em uma das encostas daquele histórico monte, uma expedição de arqueólogos israelenses havia encontrado, entre outros achados, uma estranha talha de pedra. Nela estavam inscritas palavras que um dos cientistas identificara como hebraico antigo, conquanto não tivesse sido capaz de entender o seu significado. Davi, após ter confirmado o achado, estava levando a pedra, para que fosse examinada por cientistas e teólogos judeus.

Jerusalém ------- Três Semanas Depois

Eles estavam reunidos no gabinete do Primeiro-Ministro de Israel. Além deste, encontravam-se presentes o Grande Rabino, o Prof. Feldman, um químico especialista em identificar a idade de objetos e artefatos pelo carbono 14, um filólogo especializado em hebraico antigo, um famoso historiador e dois renomados teólogos. Depois de conferirem o relatório de cada um sobre o assunto, e após um longo debate, concluíram, por unanimidade, que as inscrições datavam de aproximadamente 3.500 anos e que foram escritas em hebraico daquela época. Tomando-se em conta tudo isso, e considerando-se, ainda, o significado do que estava escrito, bem como o local em que a talha fora encontrada, só uma conclusão lhes parecia possível : a pedra continha dois mandamentos da Lei, que, ao que tudo indicava, haviam sido também ditadas pelo Senhor ao patriarca Moisés.

Como elas foram parar entre as fendas da parte inferior de uma das encostas do monte, não se sabia. Mas sobre dois pontos estavam todos de acordo : tratava-se de um achado arqueológico do mais incalculável valor, porém uma autêntica "bomba" do ponto de vista teológico. Deveriam ou não divulgá-lo ? A divulgação implicaria na obrigação de se proceder a uma profunda revisão dos Livros Sagrados, não só do Judaísmo mas também do Cristianismo. Que conseqüências poderiam advir para essas duas religiões?

Nenhum dos presentes ousava definir-se a respeito, pelo menos por enquanto. O caso merecia sérias reflexões e teriam de pensar muito, antes de tomarem uma decisão definitiva. E a reunião se encontrava nesse impasse , quando o Primeiro-Ministro se manifestou :

"Senhores, esses mandamentos, em sua quase irônica simplicidade, enunciam dois princípios que, embora aparentemente jocosos, parecem ter sido feitos, sob medida, para os nossos dias."

Em seguida, fez uma pausa e passou a tecer outras considerações, nitidamente de caráter pragmático. Lembrou aos presentes que, mundialmente falando, o numero de cristãos superava, em muito, o de judeus. Assim, seria justo que eles compartilhassem do ônus da decisão. Além do mais, ressaltou, tendo o Vaticano espiões por toda parte, se já não sabiam, cedo saberiam da descoberta, ainda porque muitas das pessoas que trabalhavam nas escavações no Monte Sinai, viram a pedra ou, pelo menos, escutaram algum comentário sobre ela. Logo, existia sempre o risco de que tudo viesse a se tornar um autêntico segredo de Polichinelo.

Porém, do ponto de vista político, o mais importante era conhecer a posição do Papa. Se a Igreja Romana decidisse levar o assunto ao conhecimento público, Israel teria que se antecipar a isso. No entanto, seria preferível que o Vaticano se mantivesse calado. Isto daria, aos israelenses, suficiente tempo para avaliar qual a decisão que mais conviria ao Judaísmo. Todos concordaram com as ponderações do Primeiro-Ministro e decidiram pelo envio de um emissário à Sua Santidade, a fim de informá-lo do achado dos mandamentos e da posição adotada pelo governo israelense, em relação ao assunto.

EPÍLOGO Cidade do Vaticano ---- Quatro Dias Mais Tarde

Previamente notificado de que o assunto era altamente confidencial, o Pontífice recebeu o emissário de Israel, a sós, na ante-sala de seus aposentos particulares. Após os cumprimentos de praxe, o israelense entregou ao Papa uma carta do "Premier" de seu país, relatando a natureza do objeto encontrado na escavações do Monte Sinai e o resultado das pesquisas que se seguiram. O Pontífice leu tudo, atentamente e, após alguns momentos de reflexão, disse :

"O relato do seu Primeiro- Ministro é, de fato, impressionante. Por certo, uma fantástica descoberta. Mas... não poderia ter ocorrido algum erro de interpretação ?"

"Não, Santidade. Tudo foi examinado minuciosa e exaustivamente. Estamos convencidos que, na pedra encontrada, estão inscritos dois mandamentos, até então desconhecidos, que o Senhor ditou para Moisés, naquele histórico encontro no Sinai. Como eles se perderam, não sabemos ao certo. Porém supomos que, quando Moisés descia o monte, a pedra se lhe escapou, rolando encosta abaixo e indo se aninhar entre as fendas das rochas, para somente ser descoberta agora, trinta e cinco séculos depois,"

"É possível" - disse o Papa, fazendo um gesto de concordância com a cabeça - "Tudo é possível neste mundo, já que são inescrutáveis os desígnios de Deus. Mas, afinal, quais são esses mandamentos ? Eles não constam do relatório do Primeiro-Ministro"

O emissário israelense tirou do bolso do sobretudo um outro envelope selado e passou-o as mãos do Pontífice.

" Estão aí, Santidade, em umas poucas linhas. Traduzido do hebraico para o italiano."

O Santo Padre abriu o envelope e leu. Por uma fração de segundo, um discreto sorriso formou-se nos seus lábios. Mas ele não fez qualquer comentário. Aguardou, sentindo que o outro ainda tinha algo a dizer. O israelense pigarreou e disse, em tom categórico mas respeitoso :

"Nossas religiões têm uma mesma raiz, Santo Padre. Por isso, meu governo considera que seria muito constrangedor se houvesse alguma divergência, entre nós, quanto à decisão de se divulgar o significado do que encontramos no Sinai."

O Papa assentiu com um gesto da cabeça, ergueu-se, para sinalizar que o encontro estava terminado e disse, com certa solenidade na voz :

"Por favor, informe ao seu governo que iremos meditar sobre o assunto e, tão logo cheguemos a uma conclusão, comunicaremos nossa decisão. Até lá, guardaremos o mais absoluto sigilo."

"Ficaremos gratos, Santidade."

"Que as bênçãos do Senhor lhe acompanhem, Embaixador"

Tão logo o emissário se retirou, o Papa premiu o botão do interfone que se achava sobre uma mesinha e convocou o Secretário de Estado do Vaticano. Quando ele chegou, o Santo Padre mostrou-lhe a carta do "Premier" de Israel e fez um breve resumo de sua conversa com o representante israelense, porém conservando nas mãos a folha em que estavam escritos os dois novos mandamentos.

Após ler a carta e ouvir o relato do Pontífice, o cardeal comentou :

"É simplesmente inacreditável. O que pensa fazer a respeito, Santidade ?"

O Papa respirou fundo, antes de responder :

" Em princípio, não nos parece prudente dar conhecimento a esse achado. O assunto certamente motivaria infindáveis polêmicas que poderiam abalar, ainda mais, a fé de um número incontável de cristãos. E imagine como não iriam rir de nós, por exemplo, os milhões de materialistas e islâmicos, espalhados por esse mundo afora. O fato de que os mandamentos, um dos pilares do Cristianismo e do Judaísmo, foram transmitidos aos fiéis de forma incompleta, durante dezenas de séculos, pode levar a um irremediável descrédito das Sagradas Escrituras. E o que lucraria a religião com o acréscimo de mais dois mandamentos, por mais objetivos que sejam ? A nosso ver, lamentavelmente, nada. Se os cristãos não seguem dez, quanto mais doze ! Ainda porque, estes últimos dificilmente seriam obedecidos. Eles contrariam certas características que parecem ser, infelizmente, atributos inerentes a nossa espécie. Portanto, sejamos pragmáticos"

O Pontífice fez uma pausa, sorriu um tanto maliciosamente e prosseguiu :

"Os judeus vieram simplesmente nos sondar, temerosos que o achado do Sinai chegasse ao nosso conhecimento e que resolvêssemos divulgar o fato, à revelia deles. Estamos seguros que não desejam que o façamos, como também de que eles jamais tomarão a iniciativa de faze-lo. Contudo, se cometerem o engano de revelar o fato, lembraremos, ao mundo, que a revelação do Decálogo é parte do Velho Testamento. A omissão, se é que se possa considerar que houve alguma, foi deles. É o que pensamos e o que diremos ao governo israelense"

O Papa se calou por um momento e perguntou :

"Alguma ponderação a respeito, Excelência ?"

O Secretário de Estado, tido como o mais cotado cardeal a se tornar o próximo Pontífice, respondeu :

"Não. A vossa linha de raciocínio é, a meu modesto ver, simplesmente perfeita." - atentou para a expressão de satisfação do Santo Padre e, então, perguntou : "Mas afinal, Santidade, o que dizem esses dois novos mandamentos ?"

O Papa entregou-lhe a folha de papel e disse : "Leia o senhor mesmo, Eminência." - e apontando para a lareira no canto da sala, concluiu : "Depois atire-a no fogo. Este é um assunto que deve ficar somente entre nós dois."

O Secretário de Estado fez um gesto de aquiescência com a cabeça, baixou o olhar e leu :

NÀO COMPLICARÁS a tua vida nem a de outrem.

NÃO CHATEARÁS teu semelhante.

Por um longo tempo, o cardeal permaneceu calado, pensativo. Depois emitiu uma sonora gargalhada.

"Quanta verdade encerrada em duas frases tão simples! Se há trinta e cinco séculos, esses mandamentos houvessem sido inseridos na Lei e respeitados pelos homens, quem sabe não teríamos, hoje, um planeta melhor ? De certo a vida seria bem mais fácil se não existisse tanta gente chata e complicada por este mundo afora... Que desfavor o destino prestou à humanidade"

O Papa ergueu as sobrancelhas e perguntou :

"O destino, Eminência, ou teria Deus mudado de idéia e, em decorrência, causado, Ele próprio, o desaparecimento da terceira pedra ?"

O cardeal balançou a cabeça e, por um segundo, uma centelha de ironia faiscou no seu olhar.

"Deus mudando de idéia ... em si, uma idéia fascinante, porém deveras questionável do ponto de vista teológico."

O Secretário de Estado fez uma pausa e esperou. Como o Pontífice nada comentasse, prosseguiu :

"Mas, deixando-se de lado os aspectos filosóficos e voltando ao pragmatismo, concordo que devemos decidir pelo que melhor convém à Igreja. E essa decisão já foi tomada por Vossa Santidade."

Desta vez, o Papa sorriu. O cardeal pareceu ainda hesitar por um segundo; mas logo deu dois passos para o lado e atirou a folha de papel na lareira. E, durante alguns segundos, as duas maiores personalidades da hierarquia católica assistiram, em silêncio, as labaredas consumirem os mandamentos que Moisés havia perdido...