DOS COMEÇOS E DAS DERIVAS

 

Nos começos, um experimento de co-produção denominado ‘Comunidade Piracema de Autoconvocad@s’

Desse período...

A PRIMEIRA IDÉIA: UMA REVISTA COMUM

 

e do imediato pós-Piracema, os textos abaixo:

* * * * *

Com afeto e gana no presente de nossa circunstância comum

   

Querid@s tod@s, multipl@s compas, visíveis ou invisíveis, querid@s

"La estadía en una comunidad...una experiência vital e intansferible.

El contacto y la convivencia con l@s comuner@s agitó emociones, sentimientos, alegrías y gozos.

(...), la construcción cotidiana de una vida colectiva, (...)

Así surgió este pequeño libro, que intenta entender y explicar...

(...), y me permitió revivir algunos momentos de intensa comunicación humana y espiritual."

Raúl Zibechi

1995

(Introducción Presentación)

Los arroyos cuando bajan: los desafíos del zapatismo

Penso que assim estamos, acolhendo esforços e cooperando, co-produzindo mundi multi mundi comum. Assim produzimos ferramentas e instrumentações, inteligência e linguagens, comunicação e afetos. Emociona que novamente estejamos em contato, como gente que está lutando, sorrindo, brincando, amando, perguntando junt@s. Sim, "perguntando caminhamos"...

NO PRESENTE DE NOSSA CIRCUNSTÂNCIA

autoconvocado Leonardo Retamoso Palma

endereço eletrônico: autoconvocad@yahoo.com.br

 

O título do presente texto é tomado diretamente das reflexões do biólogo chileno Humberto Maturana Romesín, mais exatamente, de sua abordagem sobre os temas da alienação e da responsabilidade.

Maturana argumenta que tanto “vivermos no passado de nossa circunstânciaquantovivermos no futuro de nossa circunstânciasão modos alternativos de vivermos a prática concreta da alienação, no espaço de emocionalidade da desresponsabilização, ou seja, alienad@s.

Há quem já tenha formulado a mesma questão em termos da relação entre trabalho vivo e trabalho morto. Vivermos no presente de nossa circunstância pressupõe não abdicarmos jamais daquilo que efetivamente podemos, de nossa potência; implica na afirmação do trabalho vivo, logo, plano da imanência, das singularidades e singularizações (intransferíveis e insubstituíveis), da sociabilidade comunicativa e cooperativa de modo constituinte: existência criativa.

Viver no passado de nossa circunstância pressupõe subordinação ao trabalho morto, sujeição ao pretérito e ao que nos foi expropriado e acumulado contra nossa potência; implica subordinação e resignação frente ao constituído, ao institucionalizado, à exterioridade/objetividade estrangeira, ao objetivismo e sua ditadura — que reduz o vivo à dignidade de coisa e propõe o fatalismo: o mundo tomado como um absoluto transcendente sob o qual nossas ações não incidem, sendo incontrolável e, porém, incidindo de modo absoluto sobre nós — à naturalização do controle e do disciplinamento da realidade e das dinâmicas humanas, solidariamente articulada à aceitabilidade e à tolerância com tal situação depressiva.

Viver no futuro de nossa circunstância pressupõe tomar o projetado, o imaginado, o idealizado, como algo já dado e concluído antecipadamente, determinado de antemão, independentemente de sua realização concreta, de sua produção e realidade, tomá-los tal qual uma “objetividade”; implica a subordinação ao trabalho morto imaterial, ou seja, trata-se do utopismo, do idealismo e do amesquinhamento do futuro (em si aberto e em construção), uma vez que sujeita-o ao pretérito, ao dado tomado como critério de enquadramento e captura.

Contrariamente, viver no presente de nossa circunstância implica desutopia, poder constituinte, anti-transcendentalismo, ontologia constitutiva. Trabalho vivo é correlativo ao plano da imanência, implica singularização, produção de subjetividade e de sujeit@ [anti-cartesian@], co-produção do comum, composição de multidão e na multidão; cada ser complexo  e singular é irredutível ao mero atributo físico massa e, também, irredutível ao “público” alienado: elemento do povo.

Escrevo, coerente com o acima exposto, de uma perspectiva antagônica às noções de massa e de povo (a multidão quando subtraída de seu poder), assim como da perspectiva antagônica à noção de soberania (poder expropriado da multidão quando esta é subordinada, controlada, disciplinada e reduzida à dignidade de povo).

Escrevo então, orientado por um propósito polêmico, da perspectiva da política das multidões (d@s muit@s enquanto muit@s, d@s múltipl@s enquanto multipl@s: mulheres e homens complex@s em dinâmicas de composição e recomposição de classe): autonomia contra-imperial, movimento de movimentos e rede de redes na afirmação do poder da insubordinação. As características mais explícitas dessa perspectiva são as formas de democracia não-representativas e não-delegativas, ou seja, democracia absoluta produzida por auto-apresentação das multidões.

Escrevo engajado no espaço de emocionalidade inaugurado pelas multidões argentinas (em evidência planetária desde os dias 19 e 20 de dezembro de 2001), na grande onda de protagonismo antagonista que @s autoconvocad@s, por auto-apresentação, colocaram em movimento: co-produção do comum na figura da singularidade e singularizações na figura do comum, nisso que passa a ser referido como Laboratório Argentina.

 

[Um parêntese: emocionalidade e sensibilidade não cumprem mera função retórica aqui. Acolher a potência da multidão está em correlação com uma ruptura com o enquadramento liberal-burguês-capitalista e seus dispositivos de pensamento e cognição típicos.

Onde lutas ecoam lutas, elas não serão reconhecidas nem valorizadas em sua potência por parte de quem não luta a não ser retoricamente. Trata-se de uma questão de sensibilidade.

Onde é necessário produzir novas categorias de luta, de pensamento e de análise, o apego aos paradigmas hegemônicos, por pura preferência, será característica marcante de formas de resistência de quem insiste em não acolher as rupturas com os paradigmas hegemônicos. Trata-se de uma questão de emocionalidade.]

 

 

A título de exemplaridade polêmica, três são as idéias que gostaria de propor e, na medida do possível, ensaiar desenvolvimentos provisórios:

a)    o movimento estudantil brasileiro não existe (assim, poderíamos fazer referências similares ao abordar o movimento sindical e o movimento político);

b)    pelo modo como formação universitária está relacionada com carreira profissional e modo de vida, cada estudante universitári@ em situação, no mais das vezes, cumpre função de “ponta de lança” da privatização;

c)     todo e qualquer programa (objetivação) pautado por delegação de titularidades e representação, está em solidariedade com projetos e práticas conservadoras e reacionárias.

 

A suposta existência natural e não problemática de um Movimento Estudantil (M.E.), [um Movimento de Trabalhadores (quando a referência é o movimento sindical, na verdade), um Movimento Político (quando a referência é o movimento partidário, na verdade)] é subsidiária de uma crença: a mítica posse de um patrimônio. As lutas pretéritas (trabalho morto) protagonizadas pelo pretérito movimento estudantil, que já não há, consistiriam no núcleo desse patrimônio. Que movimento estudantil já tenha existido e tenha sido expressão de movimento emancipatório e de resistência, logo, expressão de multidão, em nada modifica a atual situação de não existência desse movimento. Aplica-se o mesmo raciocínio aos movimentos sindical e político-partidário, com agravantes consoante suas especificidades.

É justamente tal crença e tal mito que impedem a composição desse tipo de movimento, uma vez que induz a desresponsabilização dos indivíduos com os esforços de mobilização e organização do antagonismo latente e difuso. O impulso emancipatório, no mais das vezes, não vai além da emergência episódica de algumas movimentações.

Existem os indivíduos envolvidos com as entidades e “organizações”, sejam elas partidárias ou não. Existem ainda as entidades, as “organizações” e os partidos. Estes têm suas existências assentadas na necessária disjunção movimento/organização, bem como na hierarquização que subordina movimento (suposto) à “organização”: trabalho vivo subordinado ao trabalho morto, ou seja, institucionalização. É justamente tal disjunção que interdita a constituição desse tipo de movimento, como já afirmamos, ficando tudo reduzido a casuísticas  movimentações. Movimento só pode emergir quando constituinte, como dinâmica de auto-apresentação e auto-organização, como composição multitudinária, como trabalho vivo. O que há, em solo brasileiro, quando a referência é o suposto existente movimento estudantil, é expressão do trabalho morto, com raras e ralas exceções. Ao menos tal como tradicionalmente foi pensado, não existe efetivamente.

 

Os esforços individuais privados que redundam em saídas existenciais individuais privadas são, ao mesmo tempo, função da privatização do público, já alienado (forma liberal-burguêsa do público, assentada na disjunção público/privado, logo, público não-comum), e condição histórica da existência do capitalismo (não por último, mas também). Maturana cifra isso no antagonismo entre cooperação e concorrência (ou competição): a demarcação e o liquidacionismo  constitutivos da concorrência e da competição são correlativos à dominação e à produção de assimetrias. Não há generosidade na concorrência nem na competição; não há solidariedade; não há o comum.

Por outro lado, na cooperação (co-operar, coordenar condutas) há a co-produção do comum, das relações comunitárias de singularização e liberação das singularidades. Na cooperação e na comunicação emerge @ sujeit@ inteligente (a inteligência é do âmbito das condutas relacionais!), @ sujeit@ cooperativo e inteligente: na cooperação há produção de mundos e de liberdade efetiva, do público comum (pós-burguês, multitudinário), de comunidades emancipatórias, de auto-governo de ingovernáveis.

 

 

[Parentese final: não só a alegria é ingovernável. Uma leitura atenta de Maquiavel e, também de Clausewitz, permitiria-nos acolher suas práticas heterogêneas no seguinte enunciado:

A multidão em seu tumulto, em armas (conhecimento , arte, comunicação, afetos), encontra em sua autonomia (não-arbitrariedade)  as vantagens comparativas sobre qualquer exército, Estado, polícia, forças criminosas, empresas privadas, forças de repressão e toda e qualquer forma de violência, estatal ou mercenária, organizada e mobilizada contra ela pelo capital e suas forças suplementares.]

 

Paradoxalmente — ao menos em aparência é um paradoxo — há multidões! O antagonismo difuso constitutivo da composição de classe na contemporaneidade, d@s muit@s enquanto muit@s, d@s multipl@s enquanto multipl@s, inequivocamente existe e vem produzindo mundos e riqueza. As subjetividades latentes e sua transposição em subjetivação revolucionária vem ocorrendo. As singularizações de co-produção do comum (linguagens, inteligência pública, afeto, sociabilidade) irrompem criativas e experimentalistas. O poder da insubordinação auto-apresenta-se planetariamente cada vez com maior capacidade de provocar tumultos.  O Império adivinha temerário a aproximação surpreendente de vândal@s e bárbar@s em suas rotas imprevisíveis de nômades em êxodo produtivo, sem apegos aos espaços e às dinâmicas indesejáveis, insubordinad@s. 

 

http://usuarios.lycos.es/pete_baumann/autonomial.html

http://nuevproyhist.tripod.com.ar

http://www.oocities.org/autonomiabvr/index.html

http://www.hartza.com

http://www.madres.org

http://www.matriztica.org

http://www.inteco.cl/biology/index.html

http://www.brasil.indymedia.org

 

COCCO, Giuseppe e HOPSTEIN, Graciela (Organizadores). As multidões e o Império: entre globalização da guerra e universalização dos direitos. Rio de Janeiro: DP&A Editora; 2002.

MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Organização e tradução: Cristina Magro e Victor Paredes; Belo Horizonte: Ed. UFMG; 2001.

MATURANA, Humberto e REZEPKA, Sima Nizis de. Formação humana e capacitação. Trad.: Jaime A. Clasen; 2o ed.; Petrópolis: Vozes; 2001.

NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Trad.: Adriano Pilatti; Rio de Janeiro: DP&A Editora; 2002.

NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Império. Trad.: Berilo Vargas; 2o ed.; Rio de Janeiro/São paulo: Record; 2001. [Por tratar-se de uma tradução fraudulenta de Empire (Harvard University Press), indicamos uma tradução confiável, para o idioma espanhol, disponível em:

http://members.es.lycos.de/pete_baumann/toninegri.html

http://nuevproyhist.tripod.com.ar ]

 

* * * * *

 

 

Nômades

Insuportavelmente existentes, desaforad@s,

para o capitalismo e para tant@s quant@s pactuam

com o modo de vida liberal e a autonomia burguêsa

 

Leonardo Retamoso Palma

 

Antecipo a nota 7 do presente texto:

 

“O eixo atual de minhas preocupações, de uma parte, vem de uma percepção, qual seja, a de que estamos num momento de desaceleração da capacidade ofensiva, no que respeita à criatividade, inventividade e dinamicidade das mobilizações. Abre-se assim uma vaga para esforços de consolidação, o que em si cumpre um papel perverso, pois insere um elemento conservador na dinâmica em curso e deixa a porta aberta para hegemonismos, disputas de apropriação de parcelas e outras práticas de amesquinhamento. Estabilizam-se quantitativamente, ou até se reduzem numericamente os esforços de organização e mobilização. A pertinência mesma da idéia de convergência das autonomias fica sujeita a casuísmos,  ensaiando uma crise. Isso justamente num momento de radicalização do antagonismo onde tais ocorrências trabalham na decomposição da classe.” (chamo a atenção, ainda, para o nota 8, que dá um fechamento para o raciocínio! Não obstante, ganham força inseridas na continuidade original do texto onde surgiram.)

 

Escrevo na forma de balanços e reflexões entrelaçadas a um relato pessoal, apresentando esforços na tentativa de responder a uma inquietação básica: o que pode dar quem nada tem? Nada além do que vem das entranhas, do que nos é constitutivo a partir da existência e de nossa inquietude, do que é imanente à nossa atividade, do que podemos: nosso poder concreto! O infinito de nossa potência. (É o que sugiro como resposta). Nada seria mais honesto aqui do que o próprio testemunho. Só assim assumimos a total responsabilidade pelo que enunciamos, em seus acertos e seus equívocos, uma vez que estamos inalienavelmente implicados no que tomamos como referência, sem subterfúgios, no extremo de nossa singularidade, inclusive enquanto seres capazes de reflexão, de crítica e de autocrítica, de sustentar o pensamento e a subjetivação revolucionária, coisas estas de sujeit@s (sem medo da filosofia, inclusive) e não de sujeitad@s.

           

        

“Até hoje ninguém definiu aquilo de que o corpo é capaz... mas dizem que seria impossível deduzir apenas das leis da Natureza, uma vez considerada exclusivamente como corpórea, as causas das edificações arquitetônicas, da pintura e coisas afins que só a arte humana produz, e que o corpo humano não conseguiria construir nenhum templo se não estivesse determinado e dirigido pela alma, mas eu já mostrei que tais pessoas não sabem de que é capaz o corpo e o que concluir do simples exame de sua natureza..."

Espinosa

(Ética, III, Teorema 2, Escólio)

 

 

 

         Introduzo aqui algumas reflexões sobre temas que tomo como relevantes e urgentes. Em textos anteriores ou em conversações, fazia referências à co-produção do comum, à inteligência da cooperação e ao como  o comum, assim como a autonomia são imanentes, efetivam-se e vigoram no elemento e no âmbito da(s) singularidade(s). Por isso, tão importante se fez para tais discussões a noção de comunidade e as vivências de comunidade. Em muitos aspectos, justamente estes parecem ser os temas mais difíceis, mais afeitos a mal entendidos, apesar de sugerirem o oposto e de vivermos tal ilusão de que simples e fáceis sejam.

Tomando como base minhas vivências de ativista, considero que temos malogrado, sistematicamente, justamente nesses pontos, nas tarefas correspondentes de coordenação de esforços para a expansão da potência, em termos do que seria desejável, ao menos em um aspecto: nossa auto-compreensão compartilhada, logo, co-produzida[1]. Mais ainda se tivermos em conta que a expressão da potência é a apresentação mesma da multidão como sujeito (movimento de movimentos), em dinâmicas de composição e recomposição de classe (constituição de sujeito), na gestão mesma das lutas, sem separação entre movimento e organização, em práticas heterogêneas e, literalmente, em todos os lugares onde nos apresentamos, onde se apresente, autorizando-nos por nós mesm@s, autorizando-se por si mesma, como autonomia efetiva. O que significa dizer que a expansão da potência não é outra coisa senão a expansão desse movimento mesmo e dos tumultos que somos capazes, que é capaz de produzir. Movimento diversificado, múltiplo, diferenciado, que em nossas/suas práticas heterogêneas vamos/vai abolindo o estado de coisas ora existentes, e isso como multidão de singularidades cooperantes, isso, como co-produção do comum.

Entre as concretizações de esforços das singularidades cooperantes (tod@s aquelas e aqueles capazes de viver a inteligência da cooperação e na efetiva coordenação de esforços), ganha destaque a criação/invenção de instrumentos de ação[2]. Toda a referência meramente retórica a tais questões tem contribuído para o atual estado da arte, o que aqui significa dizer que os discursos grandiloqüentes, promocionais e auto-promocionais, passam as vezes por substitutivos da coerência e logo, interditam nossa passagem para a consistência das ações e seus desejáveis desdobramentos efetivos na dinâmica das lutas, sua potencialização e, assim, a expansão da potência. Ou seja, segue valendo o aprendizado: a teoria na prática é outra quando é uma péssima teoria, ou uma mentira descarada! O erro não se confundindo jamais com a mentira, uma vez que o erro vem do dar-se conta, quando, pelo resultado de uma iniciativa, fica evidente que havia uma distância entre a tarefa e a capacidade de fazê-la. O erro é um dar-se conta do equívoco, é sempre a posteriori. Se erramos, logo que percebemos que erramos podemos corrigir nosso fazer e trabalhar sobre as conseqüências do erro. Vamos aprendendo inclusive com os erros e apesar deles. A mentira, ao contrário, é vivida no presente de nossa circunstância, desde sempre como mentira e ilusão. Quem mente sabe desde sempre que está mentindo e enganando a tod@s @s demais, está a iludir e a produzir ilusões. É justamente por tudo isso que o debate, a polêmica, a problematização, precisa incidir sobre o fazer. A idéia mesma de balanço crítico tem a ver com tomar o fazer como o principal. Nem da perspectiva da visão jurídica de mundo (o cagar lei, para ser direto e claríssimo) de todos os pré-formismos e a priorismos, nem da perspectiva do empirismo (adequação passiva às condições, reatividade bruta às estimulações: condição de sujeitad@s, jamais de sujeit@s) de todos os realismos cínicos e pragmatismos, taticismos, fatalismos e cretinismos. Ou seja, tomar o fazer como tarefa também do pensamento[3], da conversação, da subjetivação[4] e da reflexão, logo, da deliberação explícita. 

Volto aqui aos mesmos temas. Porém, os últimos impasses vividos no seio do experimento coletivo que foi a Comunidade Piracema de Autoconvocad@s[5], cobra o balanço crítico, quanto ao experimento e suas implicações e conseqüências, mais ainda quando tal balanço incide notavelmente sobre o tema e suas extensões. Falando de nossa singularidade penso podermos contribuir para a reflexão comum e instigar, talvez, que outros agrupamentos singulares beneficiem-se do material produzido. Para isso, anteriormente, tento recuperar alguns passos e, ao final, anexarei um arquivo que, ao menos para mim, dá conta de um corte, de uma ruptura, de uma mutação na continuidade do fazer militante, ao menos no meu fazer. Trata-se do “Balanço do II Encontro Americano pela Humanidade contra o Neoliberalismo” que materializa o dar-se conta daquilo que passei ultimamente a denominar Incomensurabilidade do Gueto[6].

Muito do que tomo como parte de um balanço crítico, no que diz respeito ao fazer militante, às mutações desse fazer e à própria idéia de ruptura em tal âmbito, está mais diretamente relacionado a ativistas que há duas gerações ou mais vivem os tencionamentos de tal condição, o que é meu caso e de tant@s mais, porém, que pouco incide sobre uma nova geração que recentemente emergiu para a luta emancipatória e só virtualmente tem a ver com isso. Distinção fundamental para evitar uma caráter judicioso e imputativo, que em nome de uma virtualidade passe do alerta de precaução ao normativismo do “isso pode, isso não pode” (variações do cagar lei) e coisas do gênero.  Há ainda os casos louváveis de tant@s quant@s, por duas gerações ou mais, estiveram sustentando um fazer militante distinto, que justo agora encontra as melhores condições para sua expansão, pois eram de algum modo uma espécie de antecipação transgeracional, em outra escala, das lutas que emergiram só agora em escala planetária como convergência das autonomias[7] e com esta relevância constitutiva. Casos estes que julgo serem raros, ao menos em termos de Brasil, e de quem peço a devida paciência para temas com os quais nada têm a ver.

            O aparecer das singularidades na ação comum e o aparecer do comum na forma da singularidade comum tem feito trepidar as bases da dominação. O passo pós-burguês vem se dando na gestão mesma das lutas, por apresentação mesma das multidões e não por representação[8].

Não é pouco o que foi construído no último período, na dinâmica mesma das lutas. Literalmente em todos os lugares. Nada depõe mais contra nossa auto-valorização de classe e contra a necessária expansão da potência, do que todo e qualquer hegemonismo, explícito ou velado, que trabalha sempre na decomposição de classe; nada interdita mais o poder constituinte materializado nas ações de tod@s que lutam em todas as partes, do que os modos de vida liberais investidos do caráter concorrencial típico, distribuindo cizânia, a partir de posturas demarcatóri@s e liquidacionistas, sem mais.

            Poderíamos fazer tal discussão de modo abstrato, mas não é honesto fazê-lo. Estamos desde sempre no coração de nossas inquietações. O jogo de suposições, avanços e recuos talvez beneficie quem nunca quer assumir as responsabilidades pelo que escreve, fala ou pensa, e vive. Não é o caso aqui. Obviamente, no malogro da co-produção do comum, malogra a antecipação da comunidade e do nomadismo. Quem desde já assumiu o nomadismo vive uma tensão adicional, no coração da seguinte contradição: acolhid@s, por tant@s quant@s fizeram-se cúmplices; tolerad@s, (logo tomad@s como mendicantes, párias ou parasitas) por tant@s quant@s professam um modo de vida antagônico ao nomadismo propondo outras condições e situações. Posso dizer com todo o conhecimento de causa o que é viver no olho do furacão frente à presunção de superioridade e autoridade moral de tant@s quant@s deploram o nomadismo. O ódio liberal/burguês não tarda a manifestar-se em toda sua virulência a partir de onde jamais suspeitávamos. Mesmo quando sua condição e situação é de total dependência do tipo de integração funcional que constituiram. Como já afirmei, tenho vivido a partir do nomadismo.

            Minha referência primeira ao nada ter é para introduzir o tema do modo de vida. Falar concretamente da rebelião dos corpos, de multidão e de tumulto, é desde o início assumir o poder concreto e efetivo que é imanente ao apresentar-se das singularidades. Mais do que falar sobre, é viver de acordo com isso que produz coerência. É assumir o poder da existência e por isso não compactuar com nenhum tipo de opressão em qualquer nível, seja em nome do que for, como desculpa para interditar a inquietude da existência.

Voltemos então aos modos de vida: de minha parte, a partir de 1999, passei a viver como funcionalmente não integrado à valorização do capital. Não como excluído, mas como desertor. Importa dizer isso porque as maiores contrariedades tenho vivido frente a tant@s quant@s vivem enquanto funcionalmente integrad@s, sob garantias liberais e de modo liberal no seu viver: vidas organizadas de modo liberal.

            Nosso poder concreto, base para a expansão da potência, tem muito a ver com isso. No mais das vezes, aquilo que efetivamente podemos (titularidade singular e intransferível das capacidades e condições de deliberação e iniciativas), está assentado sob uma tensão:

a) situação e condições de funcionalmente integrad@s à valorização do capital;

b) situação e condições de funcionalmente não integrad@s à valorização do capital.

 

Para cada um dos casos há no mínimo duas possibilidades alternativas.

 

a) Integração funcional: 

 

            a.1) Explorad@: subtração extrema de nossa humana condição por força das exigências que pesam sobre nosso tempo, nossas energias e nossa inteligência, logo, integração funcional de expropriad@ na máxima potência: perdemos a vida para poder ganhá-la, cada vez com menores garantias liberais;

            a.2) Relativamente explorad@: subtração relativa de nossa humana condição, sob determinadas garantias liberais e sob regime de autonomia burguesa (individual privada).

            a.3) (caberia aqui avançar considerações sobre exclusão funcional/obsolescência: cuja funcionalidade é ser improdutiva)

 

            b) Não integração funcional:

 

            b.1) mendicantes ou párias: deserção passiva;

            b.2) nômades: deserção ativa.

           

            Em b), tratando-se de acolhimento ou tolerância, põe-se toda a diferença. A deserção passiva é solidária à tolerância, tanto para com quem deserta quanto por parte de quem deserta (sendo o mais grave justamente a passividade frente à opressão moral e a caridade d@s que toleram e sentem-se moralmente superiores a quem deserta, oprimindo-@ e desrespeitando-@ ativamente), logo, há reciprocidade negativa aqui. Na deserção ativa, o acolhimento  se dá como cumplicidade. Dessa distância entre deserção passiva e deserção ativa mensura-se a distância entre tolerar ser oprimid@ e desrespeitad@ e, por outra parte, insubordinar-se frente a opressão, trabalhando diuturnamente dessa perspectiva insubmissa. O acolhimento nasce somente dessa segunda situação, não por caridade, não por tolerância, mas por relevância e significância do nomadismo.

            Importa avançar ainda outra questão. O nomadismo só é possível como co-produção do comum, onde não há lugar para auto-suficiência burguesa, pois só há autonomia no nomadismo quando há autonomia comunitária, nas relações comunitárias de singularização e de liberação das singularidades. Trata-se, nesse caso, de autonomia proletária: só há verdadeira autonomia no elemento da singularidade e, mais ainda, na singularidade comum (co-produzida).

            Por outro lado, a auto-suficiência é típica do modo de vida liberal e da autonomia burguesa, porque resolve-se no elemento do individualismo, indo do individualismo de desespero (cujo caso limite é o suicídio) à afirmação dos projetos individuais tais como carreiras profissionais (expressão máxima de que se é um sucesso nos marcos do capitalismo, logo, em solidariedade com a valorização do capital!) e todas as formas de privatização do comum, logo, inviabilização de qualquer comunidade. O mais grave, penso eu, na autonomia liberal e burguesa, é a presunção e a pressuposição de superioridade moral nutrida por uma “ética” do trabalho e, assim, uma presunção de autoridade moral, um moralismo militante. Da perspectiva dessa suposta autoridade moral de quem é um sucesso nos marcos do capitalismo, o nomadismo é inaceitável, logo, oprima-se quem não quiser se submeter.

            Nosso experimento coletivo, Comunidade Piracema de Autoconvocad@s, inscreve-se no contexto dessa tensão. De uma parte, foi a mutação de uma dinâmica anterior, constituindo-se a partir do já existente Comitê Santa Maria pela Humanidade contra o Neoliberalismo, tentava-se afirmar o caráter comunitário das vivências então vigentes. De outra parte, foi um artificialismo, no sentido de não só expandir, de modo imanente, a potência singular de um experimento já em curso, mas, instituir uma nova potência criando as condições de nomadismo, antecipando uma idéia de comunidade. Argumentarei que o balanço crítico permanente não priorizado, contribuiu para nosso malogro. 

            Se fosse o caso de estar em plena criação de um texto para teatro, um monólogo por exemplo, começaria assim: “A profusão de coisas simultâneas que tendo a repensar agora acaba me traindo e me denunciando. Falha a minha memória ao tentar recorrer e recuperar coisas por demais e redunda uma sensação de que sempre voltamos para um mesmo ponto e que tudo que sugeria uma trajetória compartilhada jamais existiu, a não ser para um(a) ou outr@ de “nós” (aqui o delírio aproxima-se da imbecilidade de trânsfuga!). Passamos junt@s aquele tempo que “matamos”, sem jamais esquecermos de “assassinar” a memória: somos perfeccionistas e nosso crime (a única coisa “comum”) é radical.”

            Enquanto existíamos em comunidade, três idéias poderiam ser usadas para definir nosso agrupamento: as idéias de “assembléia permanente de auto-convocad@s”; de “experimento comunitário”; e, a idéia de uma “comunidade de afinidades”, o que completávamos com a afirmação de que a prática social autonomista e libertária era o elemento de costura das três idéias. Recuperávamos e, promovendo, valorizávamos a noção mesma de comunidade porque enquanto agrupamento vivíamos experiências muito singulares e a partir delas que tentávamos criar pontes com outros agrupamentos, para a troca de experiências, ou seja, como uma comunidade de ativistas preocupados em formar alianças e trocar experiências com outras comunidades.

            Tínhamos um processo que estávamos vivendo junt@s, por nossa conta e risco, por adesão voluntária de cada uma e cada um. Tudo que ia sendo recuperado como memória, que ia virando experiência comum, ia afirmando esse caráter de comunidade. O co-produzir e o interagir, bem como o co-operar são irredutíveis ao participar, seja este ativo ou passivo (o de torcedor(a)/espectador(a), por exemplo!)[9] Enquanto a co-produção, a interatividade e o co-operar afirmam-se no elemento das singularidades e das singularizações irredutíveis, o participar desenvolve-se no elemento da homogeneização (adesão ao já produzido). A multilateralidade caracteriza a co-produção, a interatividade e a co-operação: titularidades plenas das condições e capacidades de iniciativas e deliberações. De modo insubstituível, cada ser humano tem o melhor conhecimento de causa sobre sua situação e condições efetivas: vida, moradia, lazer, trabalho, educação, cultura, informação, capacidades espirituais e materiais, necessidades, desejos, esperanças, dúvidas..., etc. O resgate do protagonismo, do poder efetivo de cada e de tod@s é o resgate das capacidades e condições de deliberação e iniciativas. O comum diz respeito às singularidades e ao conjunto das singularidades, tendo a ver com as relações comunitárias que fazem de cada comunidade uma comunidade singular. Trata-se então, por isso, insistimos, de relações comunitárias de singularização e liberação das singularidades. A comunidade surge no elemento do comum e do singular, logo, na afirmação da autonomia e das autonomias, uma vez que autonomia é do âmbito das singularidades, da apresentação das singularidades co-operantes e da co-produção da singularidade comum. Apresentação das singularidades, e não representação. A representação é do plano da generalidade, do não-singular, da substituição e da transferência.

            A(s) singularidade(s) surge(m), assim, como o comum, conjuntamente com a autonomia, onde a co-produção e a co-operação são articuladas por afinidades e articulam afinidades. Cada singular, insubstituível em sua condição e situação, co-produz e co-opera porque deliberadamente assim o quer e porque pode, não por dever, mas por desejo, por vontade e decisão autônoma, interesse.

             Ao fazermos o balanço de um malogro, temos de localizar aquilo que operou como um erro, ou erros, que efetivamos, e que deu no que deu. Sugiro que em muitos aspectos houve mais de participação do que co-produção. Houve mais de adesão de espectador(a)/torcedor(a) do que adesão deliberada de protagonistas autônomos. Como projeto, segue aberto e válido, desde que com nova constituição, a partir de posturas e apostas irrevogáveis.

            Em muitos pontos houve mais de tolerância que de acolhimento. Já ouvi comentários de que se reivindicava ser integrante da Comunidade Piracema como se reivindica status, reconhecimento público. A raiva que atraia para si quem era identificado como “piracema”, logo virou um orgulho arrogante de uma artificial marginalidade, mal disfarçada. Não por acaso, daí emergiu a debandada como desresponsabilização, única vez em que se enchia a boca para usar a expressão “autoconvocad@”, para afirmar que se era “auto-desconvocad@”. Somos, em todas as medidas, co-responsáveis pelo resultado.

            Depois de minha última viagem (junho), quando estive em São Paulo, Campinas e Belo Horizonte, ao voltar para Santa Maria me deparei com tal situação de debandada. Por algum tempo seguíamos no esforço de responder a cada demanda, a despeito da dispersão. Não é mais possível que assim seja. No momento em que retomamos esforços de composição de novos agrupamentos militantes, lanço estas linhas como Féretro para os órfãos do talvez.  Se não por outra razão, foço isso porque senti a gana de fazê-lo.

            Seguirão válidos o endereço eletrônico e a página da Cominidade Piracema de Autoconvocad@s (http://comunidadepiracema.vila.bol.com.br e comunidadepiracema@hotmail.com), o mesmo valendo para a aposta em suas possibilidades. Não descartamos inclusive o retorno de antig@s integrantes, o que não obstante parece improvável. @s que ficaram, seguem.

            [Fim da primeira parte! Mas segue...]


 

NOTAS:

[1] Já foi dito que uma revolução que mereça esse nome produz seus próprios poetas. Penso que mais que isso, é o caso de que produz sua própria historiografia, sua própria memória e sua terminologia autêntica, seus enunciados pertinentes, como consciência histórica d@s protagonistas enquanto co-produção de saber-mundo comum, com base nas trocas de experiências e, mais que isso, na valorização inequívoca das experiências (como acolhimento das singularidades, não de modo retórico, mas efetivo: acolhimento das singularidades em sua diversidade irredutível enquanto interlocutores e não como homogeneização redutora de tod@s @s outr@s à condição de auditório).

[2] Há referências a isso no texto anexo: “Balanço...”.

[3] Lembrarei que uma das condições para o pensamento é a situação não-dogmática: só pode haver pensamento onde não há suposto saber, onde não há a pressuposição de já conhecimento.  A inquietude é uma das condições de pensamento, não por acaso o filósofo Alain Badiou cifra tal condição em termos de inominável e  indiscernível.

[4] Por subjetivação toma-se aqui o que é próprio da conversação, da formação de sujeit@s, da titularidade efetiva e singular das capacidades e condições de deliberação e iniciativas, do poder concreto (aquilo que efetivamente podemos desde sempre): @ sujeit@ forma-se nos enunciados que apresenta e na auto-apresentação, uma vez que não enuncia nada que em princípio fosse incapaz de compreender e não compreende nada que em princípio também não seja capaz de enunciar originalmente, sendo que enunciar é enunciar-se. Mais ainda, o âmbito d@ sujeit@ é o âmbito das argumentações (deliberações e iniciativas como co-produção na conversação), das práticas constitutivas, logo, da constituição pela prática: co-produção de mundos e de saber-mundo comum, ou seja, co-produção de reciprocidades (sejam positivas ou negativas)

[5] Antecipo que as iniciativas que tomamos como tarefa, seguem como prioritárias. Nosso empenho (d@s que ficaram!) de mobilização, investigação e formação/qualificação permanente, tanto nossa quanto a de tant@s quant@s vamos entrando em contato e com quem vamos passando a construir laços afetivos e bases de reciprocidade, novas alianças, também segue. Seguimos declarando guerra com os corpos, com o que há de mais expressivo em nós: nossa existência insubordinada e insubmissa. Dessa perspectiva, seguimos como atuadores/agitadores nas ruas. Invisiveis e não-contados, as vezes, mas sempre litigantes: insuportavelmente existentes! Seguimos tendo como arma, entre outras, o teatro, ou o que o valha.

[6] Com tal expressão tento afirmar desde o início a independência efetiva da composição de classe, a autonomia proletária. Inspirado em Toni Negri e suas reflexões em Dominio y Sabotaje (http://usuarios.lycos.es/pete_baumann/autonomial.html), trata-se de considerar a não tradutibilidade do poder proletário em termos de poder burguês, e vice-versa, e assumir o caráter imanente da expansão da potência como poder constituinte: movimento efetivo de gestão das lutas e composição de classe na dinâmica mesma das lutas, tornando inalienável movimento e organização: autogestão da vida como auto-valorização proletária.

[7] O eixo atual de minhas preocupações, de uma parte, vem de uma percepção, qual seja, a de que estamos num momento de desaceleração da capacidade ofensiva, no que respeita à criatividade, inventividade e dinamicidade das mobilizações. Abre-se assim uma vaga para esforços de consolidação, o que em si cumpre um papel perverso, pois insere um elemento conservador na dinâmica em curso e deixa a porta aberta para hegemonismos, disputas de apropriação de parcelas e outras práticas de amesquinhamento. Estabilizam-se quantitativamente, ou até se reduzem numericamente os esforços de organização e mobilização. A pertinência mesma da idéia de convergência das autonomias fica sujeita a casuísmos,  ensaiando uma crise. Isso justamente num momento de radicalização do antagonismo onde tais ocorrências trabalham na decomposição da classe.

[8] O que explica muito do desespero das forças suplementares ao capital, tant@s quant@s ao invés de sustentarem a luta sustentam-se da luta, tant@s quant@s pretendem hegemonizar os movimentos, as ações e iniciativas das multidões, façam isso de modo explícito (promovendo partidos e sindicatos) ou de modo velado, comportando-se concorrencialmente, como expressão mesma da arrogância típica de todos os elitismos e vanguardismos sectários, no seio dos movimentos, normatizando e cagando leis, demarcando, estigmatizando e promovendo o liquidacionismo, fraudando a expansão da potência e a composição de classe em sua complexidade de sujeito coletivo cooperativo e inteligente.

[9] Nosso maior impasse está relacionado com a construção de algo comum. O comum que carecemos está, por sua vez, diretamente relacionado com nossas experiências singulares nas singularidades dos nossos espaços e no tempo singular de cada construção local e, com a co-produção que, a partir de nossas iniciativas e empenhos autônomos sejamos capazes de ir efetivando como mundo emancipado. Se faço referência a co-produção é porque autonomia e responsabilidade são constitutivos. Co-produzir, co-operar e inter-agir fundam o comum porque constituem o comum: as relações comunitárias de singularização, a comunicação, a comunhão, a comunidade.

 

 

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Anexo:

Balanço do II Encontro pela Humanidade contra o Neoliberalismo

 

"OS  POVOS QUE NÃO SE CONHECEM HÃO DE TER PRESSA EM CONHECER-SE, COMO GENTE QUE VAI LUTAR JUNTO."

                                                     José Martí, Nuestra América 1891

 

Palavras lançadas ao vento ecoando por toda Nuestra América, inquietando gente de toda parte, transbordando além continente, para todas as latitudes. A convocatória clara e radical, uma vez enunciada, mobilizou  inequívoc@s revolucionári@s, irrevogáveis ativistas da causa da emancipação humana, inquestionáveis insubordinad@s forjadores de autonomia. Os caminhos foram palmilhados, as rotas fizeram-se caudal de um fluxo das gentes. Povos que lutam, insurgentes, insones e incansáveis perseguidores de manhãs e amanhãs derramaram-se de todos os cantos rumo a Belém do Pará, na América do Sul, no Brasil do sul do mundo.

O II ENCONTRO AMERICANO PELA HUMANIDADE CONTRA O NEOLIBERALISMO fez-se a circunstância para o movimento e a formação espontânea de inúmeros grupos de gente de todas as partes. Cada movimento, cada processo localizado ganhou uma dimensão estruturante, com base na periodicidade dos círculos de conversação e diálogo civil - como no caso do Comitê Santa Maria Pela Humanidade Contra o Neoliberalismo: aberto, público, autogestionário; nas ações prioritárias deliberadas em cada assembléia; na troca de informações com os demais comitês e, também, nas pastas de documentação  (documentos próprios e recebidos) disponibilizadas a todas e todos @s interessad@s; etc., etc., ...

O II Encontro  contou com a participação de muitas dessas gentes de todas as partes, lutadoras e lutadores ávid@s. Eram mais de 2500 pessoas prontas para discutir saídas contra o Neoliberalismo. Aproximadamente 32 delegações (entre tribos e organizações) dos povos originários, 40 representantes de comunidades de quilombolas, mais ou menos 21 delegações estrangeiras, ativistas, militantes, punks, anarquistas, marxistas, ou seja, efetivamente gente de todas as partes, de tantos e tantos lugares, de tantas e tantas lutas.

A diversidade de movimentos, organizações,  gentes, partidos e ideologias fez do II encontro talvez o mais importante já ocorrido na América Latina.

O I Encontro ocorrera em Chiapas, na primavera de 1996, no México profundo, convocado pelos zapatistas - dos povos originários - do sudeste mexicano dizendo Ya Basta! e apresentando ao mundo a luta de uma comunidade de mulheres e homens completos: proliferaram comitês de apoio e frentes de solidariedade ativa por todo o mundo.

O II Encontro, para além de dar a conhecer uma luta singular e forjar laços de solidariedade com lutadores singulares de uma tão singular comunidade, tinha o propósito de fazer-se oportunidade de troca de experiências de luta, valorização de práticas diversas, intercâmbio de vivências e reflexões sobre COMO CONSTRUIR A INTERNACIONAL DA ESPERANÇA? COMO DAR UM PASSO A MAIS?

Não se é zapatista, persa, libertári@, anarquista, marxista, ou o que os valha, só pelo fato de sustentarmos verbalmente que assim o somos. Não haver discrepância entre pensamento e ação, entre o que dizemos e o que efetivamente fazemos, entre nossas belas teorias e nossas concretas práticas faz parte, são alguns dos critérios. Como já foi dito, a teoria na prática é outra só e somente se for uma péssima teoria e pouco tenha a ver com a prática que anuncia.

A luta de uma comunidade, ou é luta de todas e todos do pleno desta comunidade, sem privilégios - de qualquer uma, de qualquer lugar e de qualquer tamanho - ou não passa de luta pelo reconhecimento de uma parcela, de um indivíduo, de alguns indivíduos... Usar expressões zapatistas não faz de ninguém, só por isso um zapatista, e o mesmo vale para todas as comunidades em sua singular e original completude múltipla e infinita.

Aqueles que convocaram, do Brasil, gerando tanta expectativa e mobilizando tant@s, pouco sabiam do sabor que cada palavra sustenta e ignoravam a densidade do que diziam aos demais. Uma convocatória em tom zapatista  fora enunciada por quem não sabia como ser zapatista, como ser persa, nem como se é aquilo que se proclama que se é.

As roupagens enferrujadas, oxidadas, daqueles que sustentam olhares e gestos depressivos, dos partidos de parte alguma, pois só representam tendo muito pouco a apresentar, impediam e seguem impedindo esse singelo aprendizado: a luta dos povos, das gentes de todas as partes, lutas tão diversas, lutas tão singulares, são irredutíveis à particularidade da luta de um único partido, de um único país, por mais significativa e grandiosa que seja essa luta e suas razões, para seus ativistas, simpatizantes e todas e todos que com ela se solidarizam.

Encontro marcado por momentos de graves desencontros. Reunidos para construir a Internacional da Esperança não sabíamos muito bem como romper com a desesperança e como deixar de reproduzi-la.

A sensibilidade perambula desencontrada da vontade radical, a imaginação criadora em descaminho com a politização da lucidez, assim também o desejo, a consciência e o inconsciente seguem em condição de desterro, clandestinos nestas americanas "pátrias bêbadas".

Povos que lutam, chegados de todos os caminhos, sob o incômodo peso de imensas arcas atulhadas de instrumentos de resistir e defender-se, titubeávamos quanto ao como reunir esforços, temperar armas, organizar vontades, deliberar ações prioritárias, assumir as iniciativas concretas de insubordinação e ruptura. Explicaremos: foram décadas, séculos, pelo menos século e meio,  construindo estruturas de defesa, formas e espaços de resistência, verdadeiras estratégias de sobreviver. Nossos sindicatos de representantes, nossas organizações tradicionais, nossos partidos legalizados não são outra coisa. Resistir e defender-se ainda não é ter iniciativas autônomas e ofensividade efetivas.

Se falar das expectativas ajuda a dimensionar a responsabilidade que pesava sobre tod@s, o grau de exigências colocado a cada momento, a decepção provocada pela incoerência e insensibilidade de alguns com apego pelas roupas enferrujadas e depressivas, ajuda mais ainda fazer da própria crítica  e da autocrítica armas de luta, dos erros matéria-prima e das mentiras sinalizações capturadas de tudo o que deve ser recusado.

Para @s que se mobilizaram até o II Encontro: um programa de ações prioritárias, uma orientação geral para a unidade e não para a uniformidade, um documento com um posicionamento inequívoco sobre temas urgentes, que sinalizasse para os que não puderam se fazer presentes como potencializar as iniciativas singularizando-as, uma rede de comunicações pela emancipação humana, programas de trabalho e promoção da autonomia (valorização de processos comunitários de singularização e de libertação das singularidades) e o claro propósito de tecermos uma efetiva rede de troca e de produção de instrumentos de ação, eis o que nos propomos, eis o que entendêramos como o conteúdo da convocatória, eis o que , não tod@s, fizemos, eis o que muit@s não puderam fazer e por isso saíram sem perspectivas.

Somente o balanço crítico radical impedirá a consolidação dos equívocos e a vitória da contra-revolução, promovidas pel@s depressiv@s  portadores de roupagens enferrujadas, tão apegad@s aos seus aparatos institucionais, tão impotentes e insensíveis, tão subordinad@s à ordem normal do mundo, tão integrados...

            Valeram os contatos, valeram as descobertas, valeram os aprendizados, enfim, todas e todos que verdadeira e incansavelmente lutam e, pesquisando novos espaços e formas para fazer avançar a insubordinação contestam praticamente a ordem estabelecida, descobriram-se, souberam ouvir, sustentaram a palavra naquilo que não podia ser silenciado, forjamos as rodas de conversação, valorizamos nossas práticas, existenciamos nossas singularidades, promovemos a valorização de classe, comunitariamente vivenciamos processos de singularização, deliberamos, politizamos o desejo, a lucidez e a imaginação, a consciência e o inconsciente, colocamos em marcha processos radicais de subjetivação: demos um passo a mais no processo das revoluções desse tempo que é o nosso e é tecido pelo nosso protagonismo insurgente.

            Nessa perspectiva, com encontros e desencontros, Belém não era um ponto final, um mero resultado. O II Encontro fora oportunidade de estabelecermos pontes, abrir portas, reorganizar as lutas, fazer descobertas, identificamos @s verdadeir@s camaradas, companheir@s e aqueles que ainda não sabem como sê-lo, tão atrapalhad@s com o amesquinhamento de práticas não refletidas e com apegos pela reprodução do mundo tal como está.

            Para muit@s de nós, efetivamente começamos a conhecer aqueles que vão lutar juntos, por autonomia, paz,  liberdade, justiça e democracia: CONSTRUINDO A INTERNACIONAL DA ESPERANÇA!

 

Saudações revolucionárias!

 

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Recentemente, uma discussão para a criação de uma revista...

 

UMA REVISTA

Uma revista é já a auto-apresentação, momento a momento, de um experimento singular da inteligência da cooperação.

... e algumas práticas comuns que vínhamos tentando, composições de forças para efetivar conversações nômades e abrir território desejáveis, inspirad@s nessa idéia sugestiva de uma Universidade Nômade [Universidad Nómada, Uninomade, Universidade Nômade], começamos, entre outras atividades, leituras em praça pública, tomando por tema o texto de Paolo Virno Gramática da multidão. Uma lista de distribuição de textos e outros materiais, informação e divulgação de endereços interessantes, complementou os esforços de por em circulação essa noção de UNômade.

 

No mais, estamos apenas nos começos...

 

 

Endereços: 

Gramática da multidão, de Paolo Virno

Multidão e princípio de individuação, de Paolo Virno

Sobre Paolo Virno

Desobediente

Reinhart KOSELLECK - Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês