AVC Reportagem n° 205

Botucatu, 18 de setembro de 2007

N° de fotos: 12- Tamanho desta página: 890 kb - Música de fundo: "Entre Tapas e Beijos".


É guerra!!!

Carnaval em Botucatu termina com "repressão familiar"

Por: Leônidas Galvão de Avellar Pires

 

 

Pois bem... Já que o Tota desandou a falar dos bons tempos de Botucatu, sem querer ele me fez lembrar também de uma guerra de água que fizemos numa época de carnaval nessa mesma cidade.

Carnaval é em fevereiro. Portanto, férias escolares para a molecada. Época em que toda a primolândia vai passear nas casas dos tios e dos avós.

 

No nosso caso era na casa do meus avós Clóvis e Luiza (pais do meu pai Raphael). E também nas casas dos tios Avellar e Cidinha (irmãos de Raphael). Tudo em Botucatu, alí pelas barrancas da Rua Prefeito Tonico de Barros e praça da igreja São Benedito (onde brincávamos de Zorro e Tonto - o índio que acompanhava o Zorro). Mas essa é uma outra história que vai valer outra "crônica de guerra" (ou talvez uma crônica de surra, pois terminou numa surra fora e dentro de casa. A maior humilhação para Zorro e Tonto, ugh! - que foram dormir de bunda quente naquele dia).

 

 

Botucatu - Vista da Rua Prefeito Tonico de Barros, onde se deu a guerra das bisnaguinhas  durante o carnaval.

 

Mas nesse carnaval, não me lembro de que ano foi, talvez 1962, juntou mesmo a primolândia Avellar Pires como nunca dantes havia acontecido.

 

Ana Luiza, Thaís e Alfredo em 1956. Há 51 anos atrás. Foto: Raphael.

 

Desde os mais velhos aos mais novos: Alfredo, Tom, Baíza, Thaís, Ana Luiza, Avellarzinho, Esaú, Léo, Ivan... (Sônia, Sílvia, Beatriz e Raphinha eram pequenininhos e não participaram desse aguaceiro).

 

Vovô Clóvis e Vovó Luiza moravam na Rua Prefeito Tonico de Barros. A tia Cidinha também e o tio Avellar também. Então, foi a conta. A primaiada se agrupou tudo numa rua só e a molecagem começou com essa história de alguém ir num barzinho para comprar chicletes Ping Pong (o único que tinha) e... espirrinhos (que eram essas bisnagas coloridas de plástico que se vendia em dias de carnaval nesses barzinhos que vendem doces, balas e todo tipo de porcariada para as crianças do bairro).

 

Pois era assim naquele tempo em que não existia supermercado, e shopping center muito menos.

 

Léo, Ana Luiza e Thaís. Em 1956.

 

Na torneira do jardim da casa do Vovô Clóvis a gente enchia o espirrinho e saía um correndo atrás do outro para espirrar água. Acertava na roupa, no braço, até que alguém acertou o outro na cara.

Em tempo 1: Avellar Pires não permite que se diga "a mãe", "o pai", "o vô", etc. Tem que ser papai, mamãe, vovô ou vovó. Assim que é correto, assim que deve ser.

 

Explico: é que Vovó Luiza era professora (tem escola batizada com o nome dela em Botucatu) e era assim que vovó nos educava. Papai Raphael também.  É "papai ou mamãe" - diziam. E não "paiê", nem "manhê". Aprenderam? Bom...

 

Vovó Luiza e Vovô Clóvis

(Pais de Raphael, Cidinha, Duda e Avellar).

 

Pois esse primo que tomou água na cara (*), como vingança, foi lá na cozinha, pegou uma faca escondido dos adultos e cortou um pouco mais o buraco do espirrinho - para aumentar o fluxo de água. E saiu na rua para molhar mais ainda os outros. Que também logo descobriram a tramóia e correram para suas casas para aumentar o tamanho do buraco da bisnaga. Começou aí o destempero...

(*) Em tempo 2: Avellar Pires não diz "cara" - porque "cara é de animal". Tem que se dizer "rosto"  quando se trata de pessoas. Aprenderam? Bom...

 

 

Casas da Rua Prefeito Tonico de Barros onde moraram os avós Clóvis e Luiza.

Primeiro eles moraram na amarelinha da esquerda. Anos depois, mudaram-se para a casa vermelha. Hoje ambas viraram lojas e perderam o murinho que havia na frente. O sobrado velho e alto da esquina, onde morava a turca Dona Naha, é hoje uma casa que vende comida árabe.

 

Pois bem, a essas alturas, quem não tinha espirrinho correu no barzinho da Avenida Don Lúcio, adquiriu o seu, aumentou o buraco da tampinha e correu a encher de água no quintal da casa do Vovô Clóvis. Aí a ordem era correr atrás dos primos e encher as orelhas deles de água, se possível, encharcando-lhes a cabeça.

 

Foi quando alguém encheu a orelha do Tom e este, puto da vida, nem quis saber de aumentar mais o buraco do espirrinho. Tirou logo a tampa da bisnaga e esvaziou no primeiro (ou primeira) que ele alcançou pelo caminho, encharcando a camisa da vítima.

 

A partir daí todo mundo tirou as tampas das bisnagas e então começou um tremendo "pega prá capar". Virou enxurrada. Quem podia mais chorava menos.

 

A casa da turca Naha virou buffet de comida árabe e permanece do mesmo jeitinho.

 

Um molhava o outro com jatos grossos de água, os menores se ferrando e os mais velhos malhando água sem dó nem piedade.

 

Todo mundo ria, todo mundo tava feliz, a farra era total, tava divertido prá caraco, a rua animada, até que o Alfredo (filho mais velho da tia Cidinha) teve uma idéia de jirico: sendo perseguido pela Baíza e pela Thaís que vinham correndo em direção dele com as bisnagas cheias em riste, entrou na casa dele pelo quintal e fechou um portãozão de madeira bem na cara delas: Pláá!! - para escapar do ataque.

 

Nesse momento juntou um monte de primos junto ao portãozão de madeira, todo mundo empurrando e querendo entrar para molhar o Alfredo, que era o mais velho e maior, mas este o trancou com um ferrolho. Foi aí que ele olhou para trás e me pegou lá dentro do quintal enchendo minha bisnaga na torneira do tanque. Quando pensei que ele ia descarregar o espirro dele em mim, fez uma cara de malandro e, com o dedo indicador, fez-me sinal de "silêncio". Para eu não dizer nada, não avisar a  ninguém do que ele ia fazer.

 

Foi até o tanque e pegou ali um balde que estava cheio de água suja de sabão.  Completou com um pouco mais de água da torneira, pegou uma escada de pedreiro, subiu até o telhado dum quartinho de despejo que tinha lá nos fundos da casa da tia Cidinha e, pegando todo mundo desprevenido lá embaixo, no pé do portão, despejou  todinho o balde em cima da turma: CHUÁÁÁÁ´!!!...

 

 

Casa da Tia Cidinha, mãe de Alfredo e Ana Luiza. Foi reformada e hoje virou casa de comércio. A flecha aponta o local onde Alfredo deu uma banho de água nos primos e nas primas, deixando a mãe dele fula da vida. (*)

 

Taqueoparil, foi aí que molhou mesmo quase todo mundo, sendo que quem levou a maior parte daquela água na cabeça foi a Ana Luiza (irmã dele) que, imediatamente, entrou dentro de casa para ir trocar de roupa e se enxugar. Tentou correr para o quarto escondida da mãe dela, a tia Cidinha. Mas não conseguiu... Infelizmente não conseguiu. A mãe dela a pegou todinha molhada, vestidinho de ir na missa encharcado, cara lavada, cabelo escorrendo, fitinha do cabelo despencada pro lado... a Ana Luiza devia ter uns 9 anos de idade.

 

Como Botucatu fica no alto da serra, sempre venta e faz frio, o maior medo das nossas mães, tias e avós, era a de que pegássemos gripe, resfriado, bronquite, pneumonia, sei lá mais o quê. Então, quando a Iza entrou molhada feito um pinto dentro de casa, tia Cidinha chegou ao furor: "ANA LUÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍZAAAAAAAAAAA!!!!!!"- berrou um berro que para nós, sobrinhos arteiros, já era MUITO BEM conhecido.

 

Lá fora, na rua, todo mundo ouviu o berro e cada um se escafedeu como pôde. Chispou todo mundo da rua porque sabia que "lá vinha repressão". Tia Cidinha, como todo bom Avellar Pires é boníssima de coração, mas braba prá cacete! Sabia como por ordem na casa e controlar a molecada. Afinal eram muitos.

Super mãe ao extremo, depois de enxugar a filhinha molhada saiu furibunda atrás de cada sobrinho e sobrinha para lhes tomar o espirrinho. E foi o que ela fez com determinação xiita!

 

 

Raphael, Avellar, Vovô Clóvis, Vovó Iza, Cidinha e Duda.

 

Caçou e tomou a bisnaga de um por um. E ai de quem não quisesse entregar! Passou sermão em todo mundo, foi para a cozinha e, com um facão de cortar carne, cortou o fundo de todas as bisnaguinhas acabando com a farra molhada da criançada.

Hoje em dia a molecada malcriada faz tudo o que quer e manda nos pais, mas naqueles dias não era assim não.

 

Mas... peraí. Todas as bisnaguinhas ela cortou? Não senhor. TODAS não senhor!

 

EU, decididamente declarei que na minha bisnaguinha ela não poria a mão. "Darei  minha vida pela bisnaguinha!" - bradei aos sete ventos botucatuenses.

 

Corri me esconder na casa do Vovô Clóvis. Me agachei atrás de uma cômoda atrás do quarto da Vó Iza e fiquei lá...

Mas tia Cidinha é tia Cidinha, uai! Quem conhece sabe. A  "baixinha" não larga o osso de jeito nenhum (até hoje!), ainda mais quando fica furiosa. E nesse dia ela ESTAVA furiosa.

 

Telefonou para a casa da Vó Iza e perguntou:

"Leônidas está aí?"

(Avellar Pires não chama os outros por reles apelido. Tem que ser o nome de batismo e fim de papo. Nome de família é para ser respeitado. Daí que é Leônidas e não Léo, aprenderam? Bom...)

 

"Está sim" - respondeu a boníssima Vovó Iza.

 

E o resto não pude escutar. Só sei que depois daquele telefonema, Vó Iza desligou e desandou a me procurar pela casa toda.

"Ela nunca vai imaginar que estou escondido dentro do quarto dela" - pensei. "Vai procurar em todo lugar, menos aqui".

Foi acabar de pensar e vovó entrou no quarto. Fiquei apavorado e joguei o espirrinho para debaixo da cama de casal, tentando escondê-lo. Mas o danado rolou e bateu no penico (**) fazendo  "pléimm...!"

 

 

Uma meiga foto de Ana Luiza penteando a saudosa e mais que amada Vovó  Iza.

 

Vó Luiza, que não era tonta nem nada, percebeu a manobra do neto fedelho e já foi perguntando, olhando em direção da cama de casal:

 

"Que dê a bisnaga?" - indagou brava, pondo a mão na cintura.

"Não sei" - respondi.

"Olha aí, você está todo molhado! Você tem bronquite! Vai pegar uma gripe! Que dê a bisnaga? Me dá ela aqui!" - falou impaciente.

 

"Não vou dar, não! Comprei com o meu dinheiro! Meu pai (Raphael) me deixou comprar!"- retruquei impertinente. Preferia o "suicídio com honra" a entregar a bisnaga. Fazia harakiri (*), mas não entregava o brinquedo.

 

(*) HARAKIRI - Suicídio que japonês faz para defender sua honra, cortando a barriga com uma espada. Um ajudante, logo a seguir, corta-lhe a cabeça para que a morte venha logo.

 

(**) PENICO DEBAIXO DA CAMA era um costume antigo, porque nas casas de outrora o banheiro era construído numa casinha do lado de fora das residências. Então, para não pegar resfriado durante a noite, as pessoas faziam pipi no penico e só de manhã iam jogar fora o conteúdo na latrina. Nossos avós mantiveram esse costume mesmo quando as casas já tinham banheiro do lado de dentro.

 

"Dê-me a bisnaga, Leônidas!"

(Avellar Pires procura sempre pronunciar muito bem o português, principalmente quando tá brabo. É questão de respeitar a língua mater, aprenderam? Bom...)

"Não vou dar não, a bisnaga é minha e eu..."

 

PLAFT! PLAFT! PUMBA!!!

A Vó Iza me deu dois tapas nas costas e um firme bofetão na orelha (sem respeitar português ou nome de família). Com o tapão na orelha o ouvido fez "fiuummmm!"

Eu tava agachadinho atrás da cômoda e fiquei surpresíssimo com a reação da vovó!

 

Qual o quê??!! A Vó Luiza batendo em neto?! Eu jamais havia visto uma coisa dessas na minha vida! Até hoje acho que fui o único neto que apanhei dela. Vó Iza sempre foi um anjo de candura e de ternura, tinha uma paciência de Jó, um carinho enorme pelos netos!...  Mas perdeu a paciência e me deu umas bordoadas por causa da minha falta de respeito. Pobre vovó. Um bando de netos passando férias na casa dela devia ser mesmo um pé no saco.

Imediatamente me enfiei por baixo da cama dela (o chão estava limpíssimo (*), não havia nenhuma poeirinha), peguei envergonhado (e derrotado) a bisnaguinha e entreguei para a vovó.

 

 

Botucatu - A praça Coronel de Moura Campos, em frente ao Teatro Paratodos, tem o busto do nosso tataravô Raphael Augusto de Moura Campos (avô da Vó Luiza).

Vem dele o nome do Vô Rapha: Raphael Augusto de Campos Avellar Pires.

 

(*) Casa de Avellar Pires (família descendente de portugueses austeros) é sempre muito bem arrumada e cada cama tinha um penico em baixo. Cada neto tinha um guardanapo com argola com seu nome gravado. Não se sentava à mesa sem camisa. Vovô Clóvis sempre se apresentava de paletó e gravata. O guardanapo tinha de ficar no colo. Era a vovó Luiza quem servia primeiro o vovô Clóvis. Depois servia aos demais e, por último, se servia. Nada desse negócio de avançar todo mundo na comida. Nada desse negócio de dizer que é para "se servir à americana". Aprenderam? Aprenderam? Aprenderam? Bom...

 

Incontinenti, vovó foi até à cozinha e FLAT! - de um golpe só cortou minha bisnaga ao meio, imitando a Tia Cidinha (filha dela). A última bisnaguinha tombara vencida pela incompreensão e violência dos adultos que sempre atrapalharam desde o começo do mundo a vida feliz das pobres, indefesas e desamparadas criancinhas encapetadas.

 

Adultos não entendem nada! Não nos deixam brincar de barquinho na água da privada. Não nos deixam ficar três dias sem tomar banho. Não nos deixam pisar descalços no chão. Não se pode fazer guerra de barro no quintal. Não deixam a gente escorregar em corrimão de escada, brincar em elevador ou chapinhar descalço na enxurrada. Não se pode levantar a saia das primas para ver as calcinhas delas e... não deixam nem a gente jogar um balde de água suja na cabeça dos outros!

Êita vida de adulto mais sem graça!!

 

Como vingança da destruição das bisnaguinhas, o Ivan foi lá e atirou três ovos inteiros na parede da casa da vizinha (amiga da Tia Cidinha, que não tinha nada a ver com o peixe).

 

Bons tempos aqueles!...

 

 

Primos Avellar Pires, agora tudo "coroa".

 À esquerda vocês podem ver o Alfredo (autor do balde d´água), no centro a Tia Cidinha (agora com 85 anos). A Ana Luiza, filha dela que ficou encharcada (de vestido preto). Mais acima a Baíza, a Thaís, o Esaú, o Avellarzinho... Todos eles têm deliciosas histórias para contar sobre as peripécias de férias na Rua Prefeito Tonico de Barros.

 

 

Infância feliz não é todo mundo que tem.

Esquina da Prefeito Tonico de Barros com a General Telles. Palco botucatuense das nossas recordações de infância graças a Deus, e graças aos nossos pais, avós, tios, bisavós e tataravós, que nos amaram e nos ampararam nesses momentos alegres e despreocupados de nossas vidas.

À eles todos nosso Deus lhe pague pela educação e sacrifício.

leonidaspiresbr@yahoo.com.br

 

(*) Foto da casa da Tia Cidinha: Para os maiores de 50 anos, relembro que a casa branca da direita era onde moravam as gêmeas Eugênia e Eulália (Geninha e Lalinha), irmãs do Paulininho. Crianças boas que brincavam com a gente. Alguém aí sabe onde foi parar esse pessoal?

 

 

Botucatu - Fonte luminosa no jardim do Bosque

 


 

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