É guerra!!!
Carnaval em Botucatu termina com "repressão familiar"
Por: Leônidas Galvão de Avellar Pires
Pois bem... Já que o Tota desandou a falar dos
bons tempos de Botucatu, sem querer ele me fez lembrar também de uma guerra de água
que fizemos numa época de carnaval nessa mesma cidade.
Carnaval é em fevereiro. Portanto, férias
escolares para a molecada. Época em que toda a primolândia vai passear nas
casas dos tios e dos avós.
No nosso caso era na casa do meus avós Clóvis e
Luiza (pais do meu pai Raphael). E também nas casas dos tios Avellar e Cidinha
(irmãos de Raphael). Tudo em Botucatu, alí pelas barrancas da Rua Prefeito
Tonico de Barros e praça da igreja São Benedito (onde
brincávamos de Zorro e Tonto - o índio que acompanhava o Zorro). Mas essa é
uma outra história que vai valer outra "crônica de guerra" (ou talvez uma
crônica de surra, pois terminou numa surra fora e dentro de casa. A maior
humilhação para Zorro e Tonto, ugh! - que foram dormir de bunda quente naquele
dia).
Botucatu - Vista da Rua
Prefeito Tonico de Barros, onde se deu a guerra das bisnaguinhas durante
o carnaval.
Mas nesse carnaval, não me lembro de que ano foi,
talvez 1962, juntou mesmo a primolândia Avellar Pires como nunca dantes havia
acontecido.
Ana Luiza, Thaís e Alfredo em
1956. Há 51 anos atrás. Foto: Raphael.
Desde os mais velhos aos mais novos: Alfredo, Tom, Baíza, Thaís,
Ana Luiza, Avellarzinho, Esaú, Léo, Ivan... (Sônia, Sílvia, Beatriz e Raphinha eram
pequenininhos e não participaram desse aguaceiro).
Vovô Clóvis e Vovó Luiza moravam na Rua Prefeito Tonico
de Barros. A tia Cidinha também e o tio Avellar também. Então, foi a conta. A
primaiada se agrupou tudo numa rua só e a molecagem começou com essa história
de alguém ir num barzinho para comprar chicletes Ping Pong (o único que tinha) e... espirrinhos
(que eram essas bisnagas coloridas de plástico que se vendia em dias de
carnaval nesses barzinhos que vendem doces,
balas e todo tipo de porcariada para as crianças do bairro).
Pois era assim naquele tempo em que não existia
supermercado, e shopping center muito menos.
Léo, Ana Luiza e Thaís. Em 1956.
Na torneira do jardim da casa do Vovô Clóvis a
gente enchia o espirrinho e saía um correndo atrás do outro para espirrar
água. Acertava na roupa, no braço, até que alguém acertou o outro na cara.
Em tempo 1: Avellar Pires não permite que se diga
"a mãe", "o pai", "o vô", etc. Tem que ser papai, mamãe, vovô ou vovó. Assim
que é correto, assim que deve ser.
Explico: é que Vovó Luiza era professora (tem
escola batizada com o nome dela em Botucatu) e era assim que vovó nos educava. Papai Raphael também. É
"papai ou mamãe" - diziam. E não "paiê", nem "manhê". Aprenderam?
Bom...
Vovó Luiza e Vovô Clóvis
(Pais de Raphael, Cidinha,
Duda e Avellar).
Pois esse primo que tomou água na cara (*), como
vingança, foi lá na cozinha, pegou uma faca escondido dos adultos e cortou um
pouco mais o buraco do espirrinho - para aumentar o fluxo de água. E saiu na
rua para molhar mais ainda os outros. Que também logo descobriram a tramóia e
correram para suas casas para aumentar o tamanho do buraco da bisnaga. Começou
aí o destempero...
(*) Em tempo 2: Avellar Pires não diz "cara" -
porque "cara é de animal". Tem que se dizer "rosto" quando se trata de
pessoas. Aprenderam? Bom...
Casas da Rua Prefeito Tonico
de Barros onde moraram os avós Clóvis e Luiza.
Primeiro eles moraram na
amarelinha da esquerda. Anos depois, mudaram-se para a casa vermelha. Hoje
ambas viraram lojas e perderam o murinho que havia na frente. O sobrado velho
e alto da esquina, onde morava a turca Dona Naha, é hoje uma casa que vende
comida árabe.
Pois bem, a essas alturas, quem não tinha
espirrinho correu no barzinho da Avenida Don Lúcio, adquiriu o seu, aumentou o
buraco da tampinha e correu a encher de água no quintal da casa do Vovô
Clóvis. Aí a ordem era correr atrás dos primos e encher as orelhas deles de
água, se possível, encharcando-lhes a cabeça.
Foi quando alguém encheu a orelha do Tom e este,
puto da vida, nem quis saber de aumentar mais o buraco do espirrinho. Tirou
logo a tampa da bisnaga e esvaziou no primeiro (ou primeira) que ele alcançou
pelo caminho, encharcando a camisa da vítima.
A partir daí todo mundo tirou as tampas das
bisnagas e então começou um tremendo "pega prá capar". Virou enxurrada.
Quem podia mais chorava menos.
A casa da turca Naha virou
buffet de comida árabe e permanece do mesmo jeitinho.
Um molhava o outro com jatos grossos de água, os
menores se ferrando e os mais velhos malhando água sem dó nem piedade.
Todo mundo ria, todo mundo tava feliz, a farra era
total, tava divertido prá caraco, a rua animada, até que o Alfredo (filho mais
velho da tia Cidinha) teve uma idéia de jirico: sendo perseguido pela Baíza e
pela Thaís que vinham correndo em direção dele com as bisnagas cheias em
riste, entrou na casa dele pelo quintal e fechou um portãozão de madeira bem
na cara delas: Pláá!! - para escapar do ataque.
Nesse momento juntou um monte de primos junto ao
portãozão de madeira, todo mundo empurrando e querendo entrar para molhar o
Alfredo, que era o mais velho e maior, mas este o trancou com um ferrolho. Foi
aí que ele olhou para trás e me pegou lá dentro do quintal enchendo minha
bisnaga na torneira do tanque. Quando pensei que ele ia descarregar o espirro
dele em mim, fez uma cara de malandro e, com o dedo indicador, fez-me sinal de
"silêncio". Para eu não dizer nada, não avisar a ninguém do que ele ia
fazer.
Foi até o tanque e pegou ali um balde que estava
cheio de água suja de sabão. Completou com um pouco mais de água da
torneira, pegou uma escada de pedreiro, subiu até o telhado dum quartinho de
despejo que tinha lá nos fundos da casa da tia Cidinha e, pegando todo mundo
desprevenido lá embaixo, no pé do portão, despejou todinho o balde em
cima da turma: CHUÁÁÁÁ´!!!...
Casa da Tia Cidinha, mãe de
Alfredo e Ana Luiza. Foi reformada e hoje virou casa de comércio. A flecha
aponta o local onde Alfredo deu uma banho de água nos primos e nas primas,
deixando a mãe dele fula da vida. (*)
Taqueoparil, foi aí que molhou mesmo quase todo
mundo, sendo que quem levou a maior parte daquela água na cabeça foi a Ana
Luiza (irmã dele) que, imediatamente, entrou dentro de casa para ir trocar de
roupa e se enxugar. Tentou correr para o quarto escondida da mãe dela, a tia
Cidinha. Mas não conseguiu... Infelizmente não conseguiu. A mãe dela a pegou
todinha molhada, vestidinho de ir na missa encharcado, cara lavada, cabelo
escorrendo, fitinha do cabelo despencada pro lado... a Ana Luiza devia ter uns
9 anos de idade.
Como Botucatu fica no alto da serra, sempre venta
e faz frio, o maior medo das nossas mães, tias e avós, era a de que pegássemos
gripe, resfriado, bronquite, pneumonia, sei lá mais o quê. Então, quando a Iza entrou
molhada feito um pinto dentro de casa, tia Cidinha chegou ao furor: "ANA
LUÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍZAAAAAAAAAAA!!!!!!"- berrou um berro que para nós, sobrinhos
arteiros, já era MUITO BEM conhecido.
Lá fora, na rua, todo mundo ouviu o berro e cada
um se escafedeu como pôde. Chispou todo mundo da rua porque sabia que "lá vinha repressão". Tia Cidinha,
como todo bom Avellar Pires é boníssima de coração, mas braba prá cacete!
Sabia como por ordem na casa e controlar a molecada. Afinal eram muitos.
Super
mãe ao extremo, depois de enxugar a filhinha molhada saiu furibunda atrás de
cada sobrinho e sobrinha para lhes tomar o espirrinho. E foi o que ela fez com
determinação xiita!
Raphael, Avellar, Vovô
Clóvis, Vovó Iza, Cidinha e Duda.
Caçou e tomou a bisnaga de um por um. E ai de quem
não quisesse entregar! Passou sermão em todo mundo, foi para a cozinha e, com
um facão de cortar carne, cortou o fundo de todas as bisnaguinhas acabando com a
farra molhada da criançada.
Hoje em dia a molecada malcriada faz tudo o que
quer e manda nos pais, mas naqueles dias não era assim não.
Mas... peraí. Todas as bisnaguinhas ela cortou?
Não senhor. TODAS não senhor!
EU, decididamente declarei que na minha
bisnaguinha ela não poria a mão. "Darei minha vida pela bisnaguinha!" -
bradei aos sete ventos botucatuenses.
Corri me esconder na casa do Vovô Clóvis. Me
agachei atrás de uma cômoda atrás do quarto da Vó Iza e fiquei lá...
Mas tia Cidinha é tia Cidinha, uai! Quem conhece
sabe. A "baixinha" não larga o osso de jeito nenhum (até hoje!), ainda mais quando fica
furiosa. E nesse dia ela ESTAVA furiosa.
Telefonou para a casa da Vó Iza e perguntou:
"Leônidas está aí?"
(Avellar Pires não chama os outros por reles
apelido. Tem que ser o nome de batismo e fim de papo. Nome de família é para
ser respeitado. Daí que é Leônidas e não Léo, aprenderam? Bom...)
"Está sim" - respondeu a boníssima Vovó Iza.
E o resto não pude escutar. Só sei que depois
daquele telefonema, Vó Iza desligou e desandou a me procurar pela casa toda.
"Ela nunca vai imaginar que estou escondido dentro
do quarto dela" - pensei. "Vai procurar em todo lugar, menos aqui".
Foi acabar de pensar e vovó entrou no quarto.
Fiquei apavorado e joguei o espirrinho para debaixo da cama de casal, tentando
escondê-lo. Mas o danado rolou e bateu no penico (**) fazendo "pléimm...!"
Uma meiga foto de Ana Luiza
penteando a saudosa e mais que amada Vovó Iza.
Vó Luiza, que não era tonta nem nada, percebeu a
manobra do neto fedelho e já foi perguntando, olhando em direção da cama de
casal:
"Que dê a bisnaga?" - indagou brava, pondo a mão
na cintura.
"Não sei" - respondi.
"Olha aí, você está todo molhado! Você tem
bronquite! Vai pegar uma gripe! Que dê a bisnaga? Me dá ela aqui!" - falou impaciente.
"Não vou dar, não! Comprei com o meu dinheiro! Meu
pai (Raphael) me deixou comprar!"- retruquei impertinente. Preferia o
"suicídio com honra" a entregar a bisnaga. Fazia harakiri (*), mas não entregava o
brinquedo.
(*) HARAKIRI - Suicídio que japonês faz para
defender sua honra, cortando a barriga com uma espada. Um ajudante, logo a
seguir, corta-lhe a cabeça para que a morte venha logo.
(**) PENICO DEBAIXO DA CAMA era um costume
antigo, porque nas casas de outrora o banheiro era construído numa casinha do
lado de fora das residências. Então, para não pegar resfriado durante a noite,
as pessoas faziam pipi no penico e só de manhã iam jogar fora o conteúdo na
latrina. Nossos avós mantiveram esse costume mesmo quando as casas já tinham
banheiro do lado de dentro.
"Dê-me a bisnaga, Leônidas!"
(Avellar
Pires procura sempre pronunciar muito bem o português, principalmente quando
tá brabo. É questão de respeitar
a língua mater, aprenderam? Bom...)
"Não vou dar não, a bisnaga é minha e eu..."
PLAFT! PLAFT! PUMBA!!!
A Vó Iza me deu dois tapas nas costas e um firme
bofetão na
orelha (sem respeitar português ou nome de família). Com o tapão na orelha o
ouvido fez "fiuummmm!"
Eu tava agachadinho atrás da cômoda e fiquei surpresíssimo
com a reação da vovó!
Qual o quê??!! A Vó Luiza batendo em neto?! Eu
jamais havia visto uma coisa dessas na minha vida! Até hoje acho que fui o único
neto que
apanhei dela. Vó Iza sempre foi um anjo de candura e de ternura, tinha uma
paciência de Jó, um carinho enorme pelos netos!... Mas perdeu a
paciência e me deu umas bordoadas por causa da minha falta de respeito. Pobre vovó. Um
bando de netos passando férias na casa dela devia ser mesmo um pé no saco.
Imediatamente me enfiei por baixo da cama dela (o
chão estava limpíssimo
(*), não havia nenhuma poeirinha), peguei envergonhado (e
derrotado) a bisnaguinha e entreguei para a vovó.
Botucatu - A praça Coronel de
Moura Campos, em frente ao Teatro Paratodos, tem o busto do nosso tataravô
Raphael Augusto de Moura Campos (avô da Vó Luiza).
Vem dele o nome do Vô Rapha:
Raphael Augusto de Campos Avellar Pires.
(*) Casa de Avellar Pires (família descendente de
portugueses austeros) é sempre muito bem
arrumada e cada cama tinha um penico em baixo. Cada neto tinha um guardanapo com argola com seu nome gravado. Não se sentava à mesa sem camisa.
Vovô Clóvis sempre se apresentava de paletó e gravata. O guardanapo tinha de ficar no
colo. Era a vovó Luiza quem servia primeiro o vovô Clóvis. Depois servia aos demais e, por
último, se servia. Nada desse negócio de avançar todo mundo na comida. Nada
desse negócio de dizer que é para "se servir à americana". Aprenderam? Aprenderam? Aprenderam?
Bom...
Incontinenti, vovó foi até à cozinha e FLAT! - de
um golpe só cortou minha bisnaga ao meio, imitando a Tia Cidinha (filha dela). A última bisnaguinha tombara vencida
pela incompreensão e violência dos adultos que sempre atrapalharam desde o
começo do mundo a vida feliz das pobres, indefesas e desamparadas criancinhas encapetadas.
Adultos não entendem nada! Não nos deixam brincar de
barquinho na
água da privada. Não nos deixam ficar três dias sem tomar banho. Não nos deixam pisar descalços no chão. Não se pode fazer
guerra de barro no quintal. Não deixam a gente escorregar em corrimão de
escada, brincar em elevador ou chapinhar descalço na enxurrada. Não se pode levantar a saia das primas para ver as
calcinhas delas e... não deixam nem a gente jogar um balde de água suja na
cabeça dos outros!
Êita vida de adulto mais sem graça!!
Como vingança da destruição das bisnaguinhas, o Ivan foi lá e atirou três ovos
inteiros na parede da casa da vizinha (amiga da Tia Cidinha, que não tinha
nada a ver com o peixe).
Bons tempos aqueles!...
Primos Avellar Pires, agora tudo
"coroa".
À esquerda vocês podem ver o
Alfredo (autor do balde d´água), no centro a Tia Cidinha (agora com 85 anos).
A Ana Luiza, filha dela que ficou encharcada (de vestido preto). Mais acima a
Baíza, a Thaís, o Esaú, o Avellarzinho... Todos eles têm deliciosas histórias
para contar sobre as peripécias de férias na Rua Prefeito Tonico de Barros.
Infância feliz não é todo mundo que
tem.
Esquina da Prefeito Tonico de
Barros com a General Telles. Palco botucatuense das nossas recordações de
infância graças a Deus, e graças aos nossos pais, avós, tios, bisavós e tataravós,
que nos amaram e nos ampararam nesses momentos alegres e despreocupados de
nossas vidas.
À eles todos nosso Deus lhe
pague pela educação e sacrifício.