BOB MARLEY · A VIDA, A MÚSICA, OS DREADS
BIOGRAFIA
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Todo ano, aparece alguém para apontar um novo Bob Marley, um substituto à altura - o escolhido, aquele em cuja cabeça será recolocada a coroa do rei do reggae. Mas nunca dá certo. E já faz mais de 20 anos que ele morreu. O câncer primeiro se manifestou na perna, como uma simples contusão. Dava pra ir levando e durante seus últimos anos ele conviveu com aquilo, jogando bola, fazendo shows, protegendo-se como dava. Pouca gente sabia, mas a coisa era pior do que pensavam. Marley morreu em 1981, depois de uma frustada tentativa de recuperação numa clínica alemã. Foi ali, já sem os dreads (tranças), magro e marcado como um parafuso, tremendo de frio naquele lugar que nem de longe lembrava a Jamaica, que ele gritou seu último refrão: "Me levem pra casa...me levem pra casa...".

Teve, e tem, muitos caras bons do reggae por aí e também um monte de oportunidades para sagrar um herdeiro desse trono místico, mas nunca dá certo. De 81 para cá, a música da Jamaica tomou rumos fabulosos. Passou por inconstáveis revoluções criativas, misturou-se a outros gêneros musicais, ensinou e aprendeu com melodias e batucadas de outros países. Grandes nomes do reggae, como Winston Rodney (o Burning Spear), Dennis Brown e Jimmy Cliff, lançaram discos históricos, rodaram o mundo, sofisticaram seus estilos. Mas não ganharam a coroa. Outros superstars dispararam nesses quase 21 anos. Sly & Robbie e o pessoal do Black Uhuru, por exemplo, simplesmente mudaram o reggae na forma e na aparência no meio dos anos 80 - mais ou menos como fizeram Bob Marley & The Wailers na virada dos anos 70.

Sly & Robbie são venerados até hoje, mas viraram reis de outras coisas - não do reggae. Ouviu-se muito Barrington Levy, Alpha Blondy, Everton Blender, Pato Banton, Max Priest, Shaggy, Shabba Ranks...e nada de um novo rei. Porque mãe é mãe, Pelé é Pelé e Bob é Bob.

· O FILHO DO CAPITÃO ·

Todo mundo adora histórias de grandes viradas. No mundo da música, então, isso é fundamental. John Lennon parece ter mais valor quando se revela que morou com a tia num sobradinho de nada, lá em Londres. Joe Cocker, que se drogou até o fundo do poço, depois deu a volta por cima e acabou recebido com mais carinho do que nunca. Rod Stewart foi coveiro.

A biografia do bob é um festival de acontecimentos assim. Sua epopéia começo com 2,9 Kg em St.Ann, uma vilinha no meio do mato. Cedella Booker - que na época só cantava em casa e hoje também faz até algum sucesso gravando discos - engravidou de um capitão inglês, um certo Norval Sinclair Marley. Na Jamaica, especialmente no interior, é muito comum o homem ter filhos com várias mulheres diferentes. Muitas famílias ainda se constituem por lá dessa maneira, com a mãe e a avó em torno das crianças. E o capitão era um forasteiro e, provavelmente, não estava atrás de compromisso, nem à moda inglesa, nem à moda Jamaicana. Robert Nesta Marley - o nome do rei nas escrituras - era um magricela esperto e, de acordo com os relatos de sua mãe, quando criança tinha uma atitude muito estranha. Passava por momentos de dispersão, mantinha olhares distantes e chegava a dizer que ouvia vozes vindas do nada. Contam que, ainda moleque, intrigava as senhoras da vila lendo mãos, como um cigano. Quem esteve junto dele nos dez primeiros anos de vida foi o pai de Cedella, Omeriah Malcolm. O velho era um dos mais respeitados cidadãos do lugar, tinha um bom conhecimento sobre as forças da natureza (era meio bruxo) e dominava as palavras de sabedoria. Coisas que Bob levou ao pé da letra durante toda a vida.

· A PRIMEIRA VEZ ·

Quando Bob chegou em Kingston, sua mãe estava casada com um tal de Toddy Livingston e morava em Trench Town. Todo mundo hoje sabe, ou tem vaga idéia, de que lugar é esse - um imenso bairro de lata, o favelão de onde emanam as mais tensas energias da cidade. A vida ali nunca foi fácil. Por qualquer coisa passava-se a faca e muitos amigos de Bob, de um dia para o outro, acabavam envolvidos com a delinqüência. O clima por lá continua assim até hoje - talvez um pouco pior.

Bob preferiu o caminho da música. Além das canções folclóricas que a mãe e o avô cantarolavam em Nine Miles, suas influências agora incluíam os sucessos do rhythm'n'blues americano, que chegavam até o Caribe em disquinhos e a bordo das ondas do rádio. Fats Domino, The Moonglows e Curtis Mayfield eram alguns dos grandes nomes da época. A primeira vez de Bob nos estúdios aconteceu em 1962, quando Jimmy Cliff (outro ilustre desconhecido na ocasião) o apresentou ao cara que tinha grana para pagar a fita, o aluguel do estúdio e os músicos. Era um chinês chamado Leslie Kong, que por 20 libras, uma miséria, entrou para a história. Bob gravou duas composições inéditas: Judge Not e Do You Still Love Me?. Hoje são pérolas dos colecionadores, aparecem em coletâneas e supercaixas, mas naquela época foram só mais um fracasso entre dezenas, centenas de outros cometidos por jovens iguais a ele. O companheiro número 1 do jovem Marley era um sangue bom chamado Neville O'Riley Livingston - um dos filhos do padastro. Com ele, Bob compunha e cantava todo dia nos fundos do quintal - os "tenement yards", áreas comunitárias dos cortiços de Trench Town. Logo, um galalau da vizinhança juntou-se à brincadeira - era Winston Hubert McIntosh. Estava formada a célula dos Wailers: Bob Marley, Bunny "Wailer" Livingston e Peter Tosh.

· UM ATRÁS DO OUTRO ·

O primeiro sucesso do trio The Wailing Wailers, Simmer Down, aconteceu em 1964. Vale dizer que o reggae ainda não existia e que a Jamaica então balançava ao ritmo do ska, que é bem mais rápido, com metais tocando forte. O refrão dizia "cool down your temper", uma mensagem do tipo relaxe e fique frio endereçada aos "rudeboys", conhecidos como os delinqüentes da Jamaica que na maioria eram desempregados e revoltados que perambulavam nos guetos e botecos do subúrbio jamaicano. Ameaçados de um lado pela polícia, de outro pela malandragem, o engajamento dos três nos temas do dia-a-dia era uma escolha natural, comum a toda aquela geração. Na Jamaica, até hoje a música tem força de jornal. Subiu a gasolina? Em uma semana tem dezenas de músicas sobre o assunto tocando no rádio e nos sound systems (o que os maranhenses chamam de radiola). Mas o que o reggae adicionaria a essa receita, em meados de 68, logo depois da consistente onda do rock steady (o elo de ligação com o ska), era a fé Rastafari, uma das religiões mais loucas da paróquia. Sob o efeito da ganja, perseguidos pela polícia e com uma aparência que nem nada combinava com a imagem pretendida pela burguesia jamaicana, os rastas espalharam sua crença nos guetos de Kingston e misturaram seus tambores às guitarras, baixos e baterias da galera dos estúdios. Deu no que deu. A música popular jamaicana ganhou um aspecto denso, pesado, com baixo e bateria na frente, em linhas melódicas intrigantes.

· JUSTIÇA, PAZ E LIBERDADE ·

Em 66, antes da eclosão do reggae, Bob casou com Rita Anderson (que hoje é Rita Marley, a mulher oficial). E no dia seguinte, se mandou para Delaware, na Filadélfia (EUA) para encontrar a mãe (nem Freud explica isso) e tentar a sorte nas linhas de montagem das fábricas de automóveis. Mas a temporada na América serviu também para Bob afinar seus sentimentos, colocar seus ideais num tribunal particular e, enfim, decidir-se a abraçar a música definitivamente. Dizem que foi aí, em Delaware, que ele conheceu o disco Revolver, dos Beatles. E ficou chapado. No ano seguinte, Bob estava de volta à Jamaica. Reencontrou os amigos, Bunny e Peter, e juntos passaram a freqüentar os melhores estúdios, atrás de oportunidades. O lance decisivo, porém, só viria em 69, quando, com a ajuda do músico e produtor Lee "Scratch" Perry, ganharam uma dupla infernal de intrumentistas - os irmãos Carlton (bateria) e Aston "Familyman" Barret (baixo). Com essa formação, os agora The Wailers definiram as bases do reggae tal qual o conhecemos. Numa seqüência bem sucedida de lançamentos, os Wailers conquistaram algum respeito no mercado jamaicano e prepararam a cama para o que estava por vir. Absorvidos pela ideologia rasta, eles agora tinham a carapinha espetada e falavam em justiça, paz e liberdade, cantavam as perseguições policiais, o paraíso e o inferno dos guetos, o destino certo e glorioso dos que tinham esperança de alcançar o colo acolhedor da mãe África. Quando a gravadora Island ofereceu a oportunidade de lançá-los internacionalmente, a música dos Wailers derramava essas idéias, estava madura, quase incandescente.
 
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