E por falar em serenata…
(parte 1)

Marcus Cremonese de Sydney, Austrália

"Poetas, seresteiros, namorados, correi,
É chegada a hora de escrever e cantar
Talvez as derradeiras noites de luar"
(Gilberto Gil)

Menino ainda eu era levado para Guidoval por meus pais para as férias escolares de julho. E algumas vezes para as de fim de ano. Mas julho, o frio mês de julho, era a época em que eu invariavelmente estava por lá.

Dentre todas as coisas boas que acontecem em férias me lembro bem de encontros musicais em casas de pessoas. Não se chamavam mais “saraus”, como nos livros da escola. Eram o que chamamos hoje nos meios jazzísticos de “jams sessions”: um grupo de pessoas se reúne com seus instrumentos, sem prévios ensaios, e tocam o que lhes dá na cabeça, na hora. Essas jams aconteciam ali, nos dias pré-televisão. Algumas vezes na casa da minha avó Jovita, cujo marido — o Chico do Padre, a quem não conheci — tocara com seus amigos no cinema… mudo, evidentemente, pois isso já faz tempo.

Rolavam jams na casa do doutor Mário Meirelles, muitas na casa do Dario, meu tio, cuja mulher, tia Dadá, tocava todos os instrumentos encontráveis na cidade (evidentemente em Sapé não haviam oboés, requintas, ou harpa, mas se esses existissem ela certamente os tocaria). A família do Chico do Padre carrega genes musicais muito fortes. Por isso em todas as casas de meus tios e tias havia pelo menos um violão ou bandolim (para não falar no contrabaixo do Mundico, que atiçava a minha curiosidade, escondido que vivia debaixo de uma capa de pano. Mundico abandonara o instrumento. Nunca lhe perguntei por quê mas isso já aconteceu comigo mais de uma vez. Largo o violão de lado por uns tempos, desinteressado, desmotivado, depois pego de novo. Mas, claro, nunca paro de ouvir música).

Esses encontros, como dizia, aconteciam nas salas das casas. Mas uma vez ou outra, lá pelas tantas, alguém sugeria e o grupo saia para para a rua, para tocar na janela da casa de um ou outro músico que não pôde comparecer. A jam então virava uma serenata propriamente dita, ao ar livre, como deve ser. Vim conhecer o termo seresta mais tarde e fora do âmbito do Sapé.

O frio de julho contribuía para manter as pessoas dentro de casa. Dessas serenatas, uma me ficou guardada para sempre. Eu devia ter já uns 14 anos e dela fizeram parte o Sô Odilon, Sô Nilo, Zé Mendonça, meus pais, o Bijica, as filhas da tia Maria do Carmo, o Adão do Juca Alfaiate… A essa se ajuntou um bando de gente, lá perto da igreja, altas horas da noite. Como se um concerto tivesse sido anunciado. Um frio danado mas todo mundo ali, magnetizado por aquela serenata — inclusive o Zé Mendonça, que volta e meia fazia uma molecagem. Mas se comportou.

Bossa e serenata

Caso à parte era a barbearia do Sô Nilo, onde as reuniões eram regulares e constantes. Essas, o Dé já descreveu magistralmente em vários outros de seus escritos. Recentemente o Fabiano Avelino, filho de outro tio meu, o Manuelzinho do Chico do Padre, discorreu longamente sobre a barbearia do Sô Nilo em brilhante monografia apresentada à UFF. A música feita na barbearia era excelente aperitivo para uma serenata mais tarde, quando a última luz das casas do Fundão se apagava.

Mesmo vindo de uma família portadora dos tais genes musicais, só resolvi aprender violão lá pelos 17, 18 anos. Por obra e graça da Terezinha do Sô Odilon Reis, grande amiga e inspiradora. Ao mesmo tempo o Fabiano também se iniciava nesse instrumento, aprendendo com o Sô Nilo. Adolescentes, talvez não nos sentíssemos confortáveis nas rodas dos músicos “mais velhos”, a quem respeitávamos, naturalmente. Ou talvez não nos sentíssemos seguros o bastante entre eles, como principiantes. Mas, no fundo, o gênero de música que surgia, a Bossa Nova, não era largamente aceito — não só isso: A Bossa Nova era controversa, polêmica, olhada por muitos até com desdém. Mas eu caí de cabeça nela. Botava pra rodar meus LPs do João Gilberto e os “perseguia” no violão até aprender a acompanhar.

Naqueles anos havia a noite fria, calada, as luzes mortiças que o Benjamin da Força e Luz acendia ao anoitecer. Dez horas da noite no Fundão, em dia se semana, o máximo que se encontrava era um ou outro bêbado retardatário voltando pra casa. Nem cachorro vadiava naquela e nas outras poucas ruas, todas de terra, todas desertas àquela hora.

Em recente conversa ao telefone com minha mãe, concluí que a origem das serenatas no Sapé deve remontar aos anos da sua fundação, talvez. A minha mãe, Ruth da dona Jovita, se lembra de ter saído em serenatas com seu pai ainda menina. Quando ele morreu ela estava com 11 anos de idade (hoje tem 86). Saiu de Guidoval em 1936 é só voltou lá regularmente por volta de 1940, quando se casou. E trouxe a tiracolo o meu pai, Seu Nilso, músico dos bons que tocara na PRB-3 de Juiz de Fora, para mais serenatas, naturalmente.

Fabiano e eu começamos a fazer as nossas ali pelo início dos anos sessenta. Era todo um ritual excitante. Primeiro, esperar a cidade dormir. Principalmente esperar a Vó Jovita dormir (levava uma eternidade…). Como ficávamos na casa dela, de vez em quando e por puro zelo, altas horas da noite ela vinha dar uma olhada no quarto, cuidando do nosso repouso. O jeito então era fazer nossos “corpos” com roupas e travesseiros, colocá-los em cima da cama e cobri-los com o cobertor “até a cabeça”… ela olhava e ia embora feliz. Já a única maneira silenciosa de entrar e sair de casa à noite, com aquelas fechaduras velhas e barulhentas, era pulando a janela…


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