Textos de ciências sociais
Aqui estão os três textos para a próxima prova além do "Saúde , doença e suas interpretações socias e culturais"que está no xerox.
TRATAMENTO E CURA: AS ALTERNATIVAS DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE (extraído de HELMAN, Cecil G. Cultura, Saúde e Doença, Porto Alegre: Artes Médicas, 1994, p.70-81.) Na maior parte das sociedades as pessoas que sofrem de algum desconforto físico ou abalo emocional têm várias maneiras de se auto-ajudar ou buscar ajuda de outros. Podem, por exemplo, decidir descansar ou tomar um remédio caseiro; ou se aconselhar com um amigo, parente ou vizinho; consultar um pastor local, curandeiro ou uma pessoa tida como “sábia”; ou consultar um médico, se houver. Podem, mesmo, passar por todas essas etapas, ou por uma ou duas delas, ou ainda segui-las em qualquer ordem. Quanto maior e mais complexa a sociedade na qual o indivíduo vive, maior a possibilidade da disponibilidade dessas alternativas terapêuticas, desde que o indivíduo possa pagar por elas. Nas sociedades modernas urbanizadas, ocidentais ou não, freqüentemente existe pluralismo médico. Nelas há muitos grupos e indivíduos que oferecem ao paciente sua maneira particular de explicar, diagnosticar e tratar doenças. Embora esses métodos terapêuticos coexistam, são geralmente baseados em premissas completamente distintas, podendo até ser originários de outras culturas, como no caso da medicina ocidental na China e da acupuntura chinesa no mundo ocidental contemporâneo. Para o indivíduo doente, no entanto, a origem desses tratamentos importa menos do que sua eficácia em aliviar o sofrimento. Aspectos sociais e culturais do pluralismo médico Os antropólogos ressaltam que um sistema médico de uma sociedade não pode ser estudado isoladamente, sem a consideração de outros aspectos daquela sociedade, especialmente sua organização social, religiosa, política e econômica. O sistema médico está interligado com tais aspectos e fundamentados nas mesmas suposições, valores e visão de mundo. (...) Na maioria das sociedades sempre há um método de atenção à saúde que predomina sobre os outros e seus aspectos culturais e sociais são sustentados pela lei. (...) As três alternativas de assistência à saúde Analisando qualquer sociedade complexa é possível identificar três alternativas de assistência à saúde, sobrepostos entre si: a informal, a popular e a profissional. Cada alternativa possui seus próprios meios de explicar e tratar as doenças, como também de definir quem cura e quem é o paciente, e especificar como ambos devem interagir em seu encontro terapêutico. A alternativa informal É o campo leigo, não-profissional e não-especializado da sociedade, onde as doenças são, em primeiro lugar, reconhecidas e definidas, pára depois serem iniciadas as atividades de tratamento. Inclui todas as alternativas terapêuticas a que as pessoas recorrem sem pagamento e sem consultar curandeiros tradicionais ou médicos. Dentre essas alternativas estão: auto-tratamento e auto-medicação; conselho ou tratamento recomendado por um parente, amigo, vizinho ou colega de trabalho; atividades de cura e assistência mútua em igrejas, cultos ou grupos de auto-ajuda, ou consulta a outra pessoa leiga que tenha experiência específica em uma desordem particular ou em um tratamento de determinado estado físico. As pessoas, quando “adoecem”. Obedecem normalmente a uma “hierarquia de recursos” que vai desde a auto-medicação até a consulta a outras pessoas. O auto-tratamento é baseado em crenças leigas sobre a estrutura e o funcionamento do corpo e a origem e natureza das doenças. Tais crenças incluem diversas substâncias e tratamentos, tais como medicamentos industrializados, remédios tradicionais e dicas das “vovós”, além de mudanças na dieta e no comportamento. (...) A alternativa informal geralmente inclui um conjunto de crenças sobre a conservação da saúde. São, normalmente. Uma série de normas, específicas para cada grupo cultural, sobre comportamento “correto” preventivo de doenças em si e nos outros. As normas incluem crenças sobre a maneira “saudável” de comer, beber, dormir, vestir-se, trabalhar, rezar e conduzir a vida em geral. Em algumas sociedades a manutenção da saúde inclui também o uso de feitiços, amuletos e medalhões religiosos para afastar a má sorte, inclusive uma doença inesperada, e para atrair a boa sorte e a boa saúde. A maioria dos tratamentos de saúde nesta alternativa ocorre entre pessoas ligadas uma a outra por laços de parentesco, amizade, residência comum ou de associações a organizações profissionais ou religiosas. Isto significa que o paciente e o curandeiro compartilham concepções semelhantes sobre saúde e doença e que são comparativamente raros os mal-entendidos entre ambos. A alternativa informal é constituída por uma série de relações de cura informais e não-pagas, de duração variável, que ocorrem na própria rede social do paciente, particularmente na família. Os encontros terapêuticos acontecem sem regras determinadas de comportamento ou ambiente. (...) (...) Uma mulher que já passou por várias gestações, por exemplo, pode aconselhar informalmente uma mulher mais jovem na primeira gravidez, falando a ela sobre os sintomas esperados e a forma de lidar com eles. Da mesma forma, uma pessoa com longa experiência com uma medicação específica poderá “emprestar” um pouco a um amigo com sintomas semelhantes. As experiências pessoais com doenças são, por vezes, compartilhados em grupos de auto-ajuda, que podem atuar como repositórios de conhecimento sobre uma enfermidade ou uma experiência em particular, a ser utilizado em benefício de outros membros ou do restante da sociedade. Esses grupos podem trazer muitos outros benefícios a seus membros, tais como compartilhar de aconselhamentos sobre estilos de vida ou condutas estratégicas, além de atuar como refúgio para indivíduos solitários, especialmente aqueles em condições estigmatizadas – como obesidade, alcoolismo ou homossexualismo. As experiências com doenças e sofrimento são também compartilhadas em cultos e igrejas. Em geral, as pessoas doentes transitam livremente entre a alternativa informal e as outras duas, podendo voltar à primeira especialmente quando o tratamento em uma alternativa não proporciona alívio para o desconforto físico ou abalo emocional. A alternativa popular Nesta alternativa, especialmente ampla nas sociedades não-ocidentais, determinados indivíduos tornam-se especialistas em métodos de cura, que podem ser sagrados, seculares ou uma combinação de ambos. Esses curandeiros não fazem parte do sistema médico “oficial” e ocupam uma posição intermediária entre a alternativa informal e a profissional. (...) Grande parte dos curandeiros populares compartilham os mesmos valores culturais básicos e visões de mundo das comunidades em que vivem, incluindo crenças sobre a origem, significado e tratamento das doenças. Nas sociedades em que as causas das doenças ou outras formas de infortúnio são creditadas a forças sociais (bruxarias, feitiçarias, mau-olhado) ou sobrenaturais (deuses, espíritos ou fantasmas de ancestrais), os curandeiros populares sagrados são particularmente comuns. Sua abordagem é, geralmente, holística, pois trata de todos os aspectos da vida do paciente, inclusive seus relacionamentos com outras pessoas, com o meio ambiente natural e com poderes sobrenaturais, além de seus sintomas emocionais e físicos. Em muitas sociedades não-ocidentais, todos estes aspectos da vida fazem parte da definição de “saúde”, considerada como fruto do equilíbrio entre o homem e seus meios social, natural e sobrenatural. (...) A adivinhação pelo transe é comum em sociedades não-industrializadas, mas também ocorre, no Ocidente, entre os médiuns. (...) A adivinhação acontece numa sessão espírita, na qual o curandeiro permite que os espíritos o penetrem e, através dele, diagnostiquem a doença e prescrevam o tratamento. (...) A cura na alternativa popular oferece vantagens a seus usuários em comparação à medicina científica moderna. Uma delas é o envolvimento freqüente da família no diagnóstico e no tratamento. (...) O foco de atenção não é somente o paciente (como acontece na medicina ocidental) mas também a reação dos familiares e de outras pessoas à doença. O curandeiro é, geralmente, acompanhado de “ajudantes”, que participam da cerimônia, dão explicações ao paciente e sua família e esclarecem qualquer dúvida. Sob uma perspectiva moderna, esse tipo de curandeiro, acompanhado de assistentes e dos familiares do paciente, forma uma equipe eficiente de atenção primária à saúde, especialmente por tratar também de problemas psico-sociais. (...) Em geral curandeiros populares possuem pouco treinamento formal, se comparados à escola médica ocidental. Eles adquirem determinadas habilidades através do aprendizado com um curandeiro mais velho, de experiências de determinadas técnicas ou estados de saúde, ou de um “poder de cura” adquirido ou nato. (...) As relações entre os curandeiros populares e os profissionais são, normalmente, marcadas pela desconfiança e descréditos mútuos. No mundo ocidental, a medicina contemporânea vê a maioria dos curandeiros populares como charlatães ou “médicos feiticeiros”, um perigo à saúde do paciente. Embora a cura popular tenha realmente falhas e ofereça riscos, oferece, também,vantagens ao paciente, especialmente por tratar de problemas psico-sociais. Algumas vantagens da medicina popular tradicional para a população terceiro mundista, que não tem acesso a médicos, foram reconhecidas pela Organização Mundial da Saúde. (...) O setor profissional Este setor compreende as profissões sindicalizadas e sancionadas legalmente, como a medicina científica ocidental ou alopatia. Esta inclui não só os médicos de vários tipos e especialidades, mas também as profissões paramédicas reconhecidas, como enfermeiros parteiras e fisioterapeutas. Na maioria dos países a medicina científica é a base do setor profissional (...) mas é importante admitir que a medicina científica ocidental representa uma proporção pequena da assistência à saúde na maioria dos países do mundo. O potencial médico é um recurso escasso, muitas vezes, sendo que grande parte da atenção à saúde ocorre nas alternativas informal e popular. (...) Em grande parte dos países, os praticantes da medicina científica constituem o único grupo de curandeiros cuja atividade é assegurada por lei. Eles gozam de status social mais alto, renda maior, além de direitos e obrigações mais claramente definidos do que os outros tipos de curandeiros. Têm o poder de interrogar e examinar seus pacientes, prescrever tratamentos e medicamentos poderosos e, algumas vezes, perigosos, e privar algumas pessoas de sua liberdade – confinando-as em hospitais – se estas forem diagnosticadas como psicóticos ou infecciosos. No hospital, eles podem controlar rigorosamente a dieta, comportamento, padrões de sono e medicação do paciente, além de introduzir uma variedade de exames – biópsias, radiografias ou secção de veia. Podem ainda rotular seus pacientes (em alguns casos permanentemente) como doentes, incuráveis, simuladores, hipocondríacos ou plenamente recuperados – um rótulo que pode entrar em conflito com a perspectiva do paciente. Estes rótulos podem produzir efeitos importantes, tanto sociais (por confirmar o paciente no papel de doente) quanto econômicos (por influenciar os pagamentos de seguros de saúde e pensões). O sistema médico Como foi observado anteriormente, o sistema dominante de tratamento de saúde em qualquer sociedade não pode ser estudado à parte de outros aspectos daquela sociedade, pois o sistema médico – o setor profissional de assistência à saúde – não existe num vácuo cultural e social. Ao contrário, é a expressão dos valores e da estrutura da sociedade em que surgiu – de certa forma uma miniatura da mesma – portanto, os diversos tipos de sociedade, conforme o tipo de ideologia dominante capitalista, social-democrata, socialista ou comunista – produzem tipos diferentes de sistemas médicos e comportamentos distintos com relação à saúde e à doença. Numa sociedade o tratamento de saúde é gratuito (ou pouco dispendioso), pode ser um direito básico do cidadão, ou de pessoas muito pobres ou idosos, enquanto que, em outra, o tratamento médico é visto como uma mercadoria a ser comprada apenas por aqueles que tem condições para tanto. Neste último caso, o gozo dos benefícios da assistência à saúde exclui grande parte dos membros mais pobres da sociedade que não possuem recursos para pagá-lo. Seja qual for o tipo de sociedade, o sistema médico reflete não só os valores e ideologias básicos, mas ,também, contribui para formá-los e mantê-los. Como exemplo, a crítica dos sistemas médicos nos Estados Unidos e no Reino Unido ressaltou como a organização interna e do setor profissional reflete algumas desigualdades essenciais nas sociedades, especialmente com relação aos gêneros,classes sociais e background cultural. Dentro do sistema médico a maioria dos médicos são homens (geralmente brancos) e, como acontece no âmbito social maior, ocupa os empregos de maior prestígio ou de poder e mais bem remunerados do que as mulheres médicas e enfermeiras. Ademais, as equipes deste setor são organizadas em hierarquias similares à estratificação social da sociedade maior a que pertencem. Ao lidar com a população, o sistema médico reproduz muitos dos preconceitos sociais subjacentes, assim como os conceitos sociais do que seja “bem” e “mau” em termos de comportamento. (...) [Na visão de alguns autores] a medicina moderna de alta tecnologia tem se tornado cada vez mais perigosa para a saúde da população, por reduzir sua autonomia – fazendo com que fique dependente da profissão médica -, e por prejudicar sua saúde com os efeitos colaterais das drogas e intervenções cirúrgicas. Além disso, o sistema médico tem uma relação simbiótica com os fabricantes de equipamentos médico e farmacêutico, não defendendo necessariamente os interesses do paciente. Outros críticos do sistema médico sustentam que a medicina contemporânea, além de controlar as micro-organizações, também pretende controlar o comportamento da população, especialmente pela “medicalização” do comportamento desviante, como também de muitos estágios normais do ciclo vital humano. Este fenômeno é particularmente evidente no caso feminino, sobretudo durante a gravidez e o parto. Ademais, grande parte das doenças causadas por outros fatores – pobreza, desemprego, crise econômica, poluição e perseguição – é freqüentemente ignorada pelo sistema médico, pois seu foco principal é, cada vez mais, o paciente individual e os fatores de risco presentes em seu estilo de vida. Por isso, a fim de compreender qualquer sistema médico, deve-se sempre considerá-lo no contexto de valores básicos, ideologia, organização política e sistema econômico da sociedade em que foi criado. Neste sentido, a alternativa profissional de assistência à saúde – a exemplo das outras duas alternativas – sempre é, de certa forma, delimitado culturalmente. A CULTURA INTERFERE NO PLANO BIOLÓGICO Roque de Barros Laraia ( Vimos que a cultura interfere na satisfação das necessidades fisiológicas básicas. Veremos, agora, como ela pode condicionar outros aspectos biológicos e até mesmo decidir sobre a vida e a morte dos membros do sistema. Comecemos pela reação oposta ao etnocentrismo, que é a apatia. Em lugar da superestima dos valores de sua própria sociedade, numa dada situação de crise os membros de uma cultura abandonam a crença nas mesmas e, conseqüentemente, perdem a motivação que os mantêm unidos e vivos. Diversos exemplos dramáticos deste tipo de comportamento anômico são encontrados em nossa própria história. Os africanos removidos violentamente de seu continente (ou seja, de seu ecossistema e de seu contexto cultural) e transportados como escravos para uma terra estranha, habitada por pessoas de fenotipia, costumes e línguas diferentes, perdiam toda a motivação de continuar vivos. Muitos foram os suicídios praticados, e outros acabavam sendo mortos pelo mal que foi denominado de banzo. Traduzido como saudade, o banzo é de fato uma forma de morte decorrente da apatia. Foi, também, a apatia que dizimou parte da população Kaingang de São Paulo, quando teve o seu território invadido pelos construtores da Estrada de Ferro Noroeste. Ao perceberem que os seus recursos tecnológicos, e mesmo os seus seres sobrenaturais, eram impotentes diante do poder da sociedade branca, estes índios perderam a crença em sua sociedade. Muitos abandonaram a tribo, outros simplesmente esperaram pela morte que não tardou. Entre os índios Kaapor, grupo Tupi do Maranhão, acredita-se que se uma pessoa vê um fantasma ela logo morrerá. O principal protagonista de um filme, realizado em 1953 por Darcy Ribeiro e Hains Forthmann, ao regressar de uma caçada contou ter visto a alma de seu falecido pai perambulando pela floresta. O jovem índio deitou em uma rede e dois dias depois estava morto. Em 1967, durante a nossa permanência entre estes índios (quando a história acima nos foi contada), fomos procurados por uma mulher, em estado de pânico, que teria visto um fantasma (um “anan"). Confiante nos poderes do branco, nos solicitou um "anan-puhan" (remédio para fantasma). Diante de uma situação critica, acabamos por fornecer-lhe um comprimido vermelho de vitaminas, que foi considerado muito eficaz, neste e em outros casos, para neutralizar o malefício provocado pela visão de um morto. É muito rica a etnografia africana no que se refere às mortes causadas por feitiçaria. A vitima, acreditando efetivamente no poder do mágico e de sua magia, acaba realmente morrendo. Pertti Pelto descreve esse tipo de morte como sendo conseqüência de um profundo choque psicofisiológico: "A vítima perde o apetite e a sede, a pressão sanguínea cai, o plasma sanguíneo escapa para os tecidos e o coração deteriora. Ela morre de choque, o que é fisiologicamente a mesma coisa que choque de ferimento na guerra e nas mortes de acidente de estrada. "É de se supor que em todos os casos relatados o procedimento orgânico que leva ao desenlace tenha sido o mesmo. Deixando de lado estes exemplos mais drásticos sobre a atuação da cultura sobre o biológico, podemos agora nos referir a um campo que vem sendo amplamente estudado: os das doenças psicossomáticas. Estas são fortemente influenciadas pelos padrões culturais. Muitos brasileiros, por exemplo, dizem padecer de doenças do fígado, embora grande parte dos mesmos ignore ate a localização do órgão. Entre nós é também comum os sintomas de mal-estar provocados pela ingestão combinada de alimentos. Quem acredita que o leite e a manga constituem uma combinação perigosa, certamente sentirá um forte incomodo estomacal se ingerir simultaneamente esses alimentos. A sensação de fome depende dos horários de alimentação que são estabelecidos diferentemente em cada cultura. "Meio dia, quem não almoçou assobia", diz um ditado popular. E de fato, estamos condicionados a sentir fome no meio do dia, por maior que tenha sido o nosso desjejum. A mesma sensação se repetirá no horário determinado para o jantar. Em muitas sociedades humanas, entretanto, estes horários foram estabelecidos diferentemente e, em alguns casos, o individuo pode passar um grande número de horas sem se alimentar e sem sentir a sensação de fome. A cultura também é capaz de provocar curas de doenças, reais ou imaginárias. Estas curas ocorrem quando existe a fé do doente na eficácia do remédio ou no poder dos agentes culturais. Um destes agentes é o xamã de nossas sociedades tribais (entre os Tupi, conhecidos pela denominação de pai'é ou pajé). Basicamente, a técnica de cura do xamã consiste em uma sessão de cantos e danças, além da defumação do paciente com a fumaça de seus grandes charutos (petin), e a posterior retirada de um objeto estranho do interior do corpo do doente por meio de sucção. O fato de que esse pequeno objeto (pedaço de osso, insetos mortos etc.) tenha sido ocultado dentro de sua boca, desde o inicio do ritual, não é importante. O que importa é que o doente é tomado de uma sensação de alívio, e em muitos casos a cura se efetiva. (LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, pp.77-81.) EFEITO PLACEBO A cura pode estar aqui (ou dentro da sua cabeça) Maria Fernanda Vomero ((Revista Superinteressante, agosto/2001) Se você perguntar para um grupo de médicos se um deles já teve algum paciente que melhorou de forma surpreendente sem recorrer a remédios ou cirurgias, certamente vai ouvir muitas histórias. Se fizer a mesma pergunta aos amigos, é provável que descubra casos interessantes de gente que sarou sem passar pelo ambulatório. Foi a vizinha que se curou do câncer, o tio que espantou a insônia, o colega que se livrou da artrite. Não se trata de conversa fiada nem de fenômeno sobrenatural. Melhoras ou curas como essas começam a ser vistas pela ciência como provas da participação ativa da mente – ou seja, das emoções, crenças e expectativas – no tratamento de uma doença física. É o efeito placebo. Placebo é um termo emprestado do latim. Significa “agradar”. Serve para designar a substância inócua usada em experimentos clínicos que testam a eficácia terapêutica de uma nova droga. Nesses experimentos, os pacientes são divididos em dois grupos: o primeiro recebe o novo medicamento e o segundo, que servirá de controle, o placebo. São testes chamados de duplo-cegos, porque nem o paciente nem o médico sabem que indivíduo receberá qual substância – a informação é mantida em sigilo pela equipe coordenadora até o fim da experiência. Ao contrário da droga estudada, o placebo não tem princípio ativo. Pode ser uma pílula de farinha, uma cápsula com açúcar ou uma ampola com soro fisiológico – desde que a semelhança com o remédio de verdade seja perfeita. Teoricamente, não deveria provocar efeito algum. No entanto... “O índice de melhora do grupo que recebe placebo chega a 40% dos casos, em média”, afirma o psiquiatra Elisaldo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo. Isso mostra que até quatro em cada dez pacientes sente alívio de algum sintoma físico somente por tomar um remédio de mentira acreditando que é verdadeiro. Eis o efeito placebo. A vontade de se curar, a crença no médico ou no poder terapêutico da substância trazem benefícios para o doente, desde potencializar a ação de um medicamento até reverter um quadro de dor, por exemplo. “O efeito placebo é real. Trata-se de ciência e não de esoterismo ou magia, como muita gente pensa”, diz o farmacêutico José Carlos Nassute, professor da Universidade Estadual Paulista, em Araraquara. Casos para comprovar o fenômeno não faltam. “Se a medicina não contar com a crença do paciente em sua própria melhora, nada funciona”, afirma Carlini. Ele se recorda de uma experiência realizada no Hospital São Paulo, na capital paulista, com uma substância que teria propriedades antiepiléticas. Foram selecionados pacientes com epilepsia severa, que, no ano anterior, haviam tido pelo menos uma crise por semana e que não reagiam mais a nenhum medicamento. O estudo seguia o modelo duplo-cego e obteve a aprovação do comitê de ética do hospital. Entre os que receberam o placebo estava um paciente chamado João. Era um homem humilde e apresentava duas ou três convulsões por semana. Durante os seis meses de acompanhamento, em que recebia uma cápsula com açúcar cristal por semana, João não teve nenhuma crise. “Seria difícil explicar para ele o fim da experiência”, diz Carlini. “Então, durante mais de um ano, continuamos a lhe dar o placebo. Lembro-me de que ele nem sempre tinha dinheiro para pagar a condução. Mas fazia questão de nos trazer uma caixa de bombons sempre que possível, quando vinha buscar as cápsulas.” Carlini analisa a história de João dentro do contexto do sistema de saúde brasileiro. Em geral, diz ele, os pacientes costumam ser atendidos em ambulatório, enfrentar filas de espera e consultas rápidas, cada vez com um profissional diferente. Quando são selecionados para participar de um estudo, recebem toda a atenção da equipe médica, em horários agendados, e têm o tratamento supervisionado do começo ao fim. “Esse paciente, ao ser tratado dessa maneira, deseja melhorar. Ficar bom é uma forma de agradecer ao médico que o atende com tanta atenção”, diz Carlini. Ele e outros cientistas reconhecem que a gratidão do paciente pode desencadear o efeito placebo, assim como outros fatores presentes na relação com o médico. Um cumprimento mais afetuoso ou mesmo um procedimento complexo, como a cirurgia, também podem induzir uma melhora. “A intensidade do fenômeno depende tanto da doença que está sendo tratada quanto da natureza do placebo”, diz o psicólogo americano Irving Kirsch, da Universidade de Connecticut, que há 25 anos estuda o assunto. “Placebos apresentados como se fossem remédios de uma marca conhecida provocam mais efeito do que aqueles tidos como genéricos. E injeções de substâncias inócuas são mais efetivas do que as pílulas da mesma substância.” Quanto maior e mais dramático parece ser o procedimento terapêutico, maior o efeito placebo para o paciente. Um exemplo da influência das expectativas aconteceu no Texas, Estados Unidos. Dez pacientes, com fortes dores no joelho devido a artrite, aguardavam a vez de serem operados pelo cirurgião americano J. Bruce Moseley. Cético sobre os reais benefícios da cirurgia, Moseley resolveu fazer um teste. Conseguiu a aprovação do comitê de ética do hospital e o consentimento dos pacientes. Os dez homens seriam anestesiados e levados para a sala de operações. No entanto, apenas dois deles seriam submetidos à cirurgia completa, que consiste em retirar parte da junta inflamada e lavar a região afetada. Três teriam apenas a área atingida lavada e, nos cinco restantes, seriam feitos apenas três pequenos cortes superficiais no joelho, imitando os normalmente adotados nesse tipo de cirurgia. Seis meses depois, os dez pacientes ainda não sabiam a que tipo de procedimento haviam sido submetidos, mas todos eles sentiram o mesmo grau de diminuição das dores. O efeito placebo não se restringe aos testes. “Está presente em todo ato terapêutico”, diz o médico Eduardo Baleeiro, da Universidade Federal da Bahia. “Na minha experiência clínica, o fenômeno placebo não aparece como exceção, mas sim como a regra.” Ele conta a história de um homem de 74 anos que estava com câncer de laringe e, por isso, apresentava uma rouquidão constante. Foi submetido a duas sessões de radioterapia, sem sucesso. Baleeiro e sua equipe, ao ver o tamanho do tumor, optaram por uma cirurgia para a remoção da laringe. Se não fosse operado, acreditavam, o paciente provavelmente morreria em poucos meses. Mas o homem negou-se a passar pela cirurgia pois, sem laringe, não poderia fazer o que mais gostava: nadar diariamente e tocar sua gaita de sopro. (Depois da cirurgia de retirada da laringe, os pacientes passam a respirar por um orifício no pescoço.) Ele procurou, então, seu médico de confiança, que lhe propôs um tratamento sem cirurgia. “O paciente está vivo há mais de cinco anos, graças à sua determinação e à incondicional confiança naquele médico”, afirma. Mas, tanto nos experimentos quanto no consultório, os médicos encontram também casos de efeito nocebo – o fenômeno inverso ao placebo. “O paciente pode, ao tomar uma substância inócua, sentir os mesmos efeitos colaterais que um remédio causaria”, diz Robert Hahn, especialista em antropologia médica do Centro de Controle de Doenças do governo dos Estados Unidos. “Às vezes, também, as expectativas do paciente quanto ao tratamento são tão negativas que acabam bloqueando ou invertendo a ação do medicamento verdadeiro.” Auto-sugestão? Os pesquisadores admitem que a mente desempenha um papel fundamental no efeito placebo (e no nocebo também). “Está mais do que provado que as emoções podem desencadear alterações físicas”, diz o farmacêutico José Nassute. Por que o mesmo antibiótico passa a “agir” quando você muda de médico? “Em certas doenças, a fé do paciente na cura pode funcionar por si só”, afirma o cardiologista americano Herbert Benson, fundador do Instituto Médico Mente e Corpo, ligado à Universidade de Harvard. “Em outras, a fé potencializa os efeitos da medicação. Isso quer dizer que a mente participa do tratamento. Mas não substitui os remédios e cirurgias que existem.” Para a psicóloga Denise Gimenez Ramos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o efeito placebo soa como um fenômeno inexplicável porque o ser humano se acostumou a enxergar a capacidade de cura como algo externo a si mesmo. “Projetamos o efeito curador no médico, no remédio, na cirurgia, num objeto mágico, numa imagem sagrada – ou no placebo.” Denise cita a história do paciente Wright, um americano com câncer em estado avançado, que ficou famoso na medicina pela evidência do poder dos efeitos placebo e nocebo. Doente terminal, Wright apresentava tumores grandes e respirava com a ajuda de tubos de oxigênio. Ele descobriu que o hospital em que estava internado iria realizar testes com uma nova droga, o krebiozen, e pediu para ser incluído no grupo a ser estudado. Apesar de desenganado, estava tão entusiasmado que os médicos não tiveram alternativa senão aceitá-lo nos testes. Dias depois das primeiras aplicações de krebiozen, Wright deixou o hospital recuperado. Mas isso só durou até os jornais divulgarem pesquisas que questionavam o efeito terapêutico da droga. Wright ficou deprimido. Seus tumores voltaram, ele teve uma recaída fulminante e foi internado novamente, em estado grave. O médico, percebendo o efeito placebo, disse que tinha disponível krebiozen refinado, muito mais eficaz que a versão anterior. Wright recuperou a confiança na cura e, depois das injeções de placebo, recebeu nova alta. Quando o relatório final da Associação Médica Americana foi divulgado, dizendo que a droga de fato não funcionava, Wright retornou ao hospital e, dias depois, morreu. Pode parecer que o fenômeno não passa de um jogo de emoções. Mas os cientistas apontam algumas explicações fisiológicas para os efeitos placebo e nocebo. Muitos deles apostam no reflexo condicionado. A repetição de um estímulo acaba acostumando o sistema nervoso a responder sempre da mesma maneira. Quem elaborou essa teoria foi o fisiologista russo Ivan Pavlov (1849-1936). Durante meses, ele tocava um sino e, em seguida, alimentava seus cães. Com o tempo, bastava tocar o sino para que os animais começassem a salivar, mesmo que não houvesse ração. “Mas o condicionamento pavloviano nada tem a ver com expectativas pessoais”, diz o psicólogo Shepard Siegel, da Universidade McMaster, no Canadá, especialista no assunto. Ele cita um caso clássico de pessoas com alergia ao pólen – mesmo quando expostas a flores de plástico desenvolviam uma grave reação alérgica. “A associação entre a imagem da flor e a lembrança do malefício do pólen trazia a mesma reação à visão daquelas flores artificiais.” Outro interessado em entender a fisiologia do placebo, o italiano Fabrizio Benedetti, da Universidade de Torino, constatou que as nossas expectativas podem evitar ou disparar a sensação de dor. Ou seja, nossa mente teria um poder analgésico, sim. E seria capaz de anestesiar uma parte do corpo e não outra, dependendo da resposta específica ao placebo. Voluntários que passaram um placebo na mão, acreditando ser um gel contra a dor, afirmaram que a sensibilidade das mãos diminuiu, ao contrário da dos pés. “Concluímos que na diminuição da dor provocada pelo placebo há participação das substâncias narcotizantes do nosso próprio cérebro quando fatores cognitivos, como expectativas e crenças, estão envolvidos.” Mesmo com tantas evidências, há quem coloque em dúvida a existência do fenômeno na maioria dos casos já descritos. Em maio deste ano, dois pesquisadores dinamarqueses publicaram um estudo comparando o efeito placebo com a ausência de tratamento. A conclusão surpreendeu o meio científico. Após analisar 114 pesquisas com quase 7 500 pacientes em 40 diferentes condições, eles concluíram que não há dados suficientemente seguros para afirmar que os doentes melhoram só por acreditar que um falso tratamento é real. “Constatamos que a porcentagem de melhora atribuída ao efeito placebo não era estatisticamente significativa”, diz o médico Asbjorn Hrobjartsson, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, um dos autores do estudo. “Nos testes com resultados em escala (como melhora da hipertensão, por exemplo), a presença do efeito placebo era modesta e não podia ser diferenciada de um esforço do paciente para agradar o pesquisador.” Além disso, afirma ele, a maioria dos artigos publicados sobre o fenômeno não distingue os efeitos do placebo do curso natural de uma moléstia. Em geral, existe um período na doença em que o indivíduo parece melhorar. “Será que não se atribui erroneamente esse período de melhora ao efeito placebo?”, pergunta Hrobjartsson. Os pesquisadores não têm a resposta. Falta muito para a ciência entender os mecanismos emocionais e fisiológicos que envolvem o desaparecimento de moléstias no organismo. “Há tratamentos em que não se produz efeito placebo. Em outros, quase 100% dos pacientes melhoram”, diz Irving Kirsch. Ao que tudo indica, há mais coisas entre a doença e a cura do que sonha a nossa biologia.