Caboclo da Amazônia está no limiar da subnutrição
Conclusão está em
livro sobre essas populações amazônicas, a ser lançado hoje
Obra faz a primeira síntese do conhecimento
sobre as sociedades não-índias e apóia tese de que ambiente local limita as
populações
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
Algumas controvérsias científicas se resolvem não em semanas, meses ou anos, mas
décadas -ou não se resolvem, como a da capacidade de
suporte de populações humanas pela floresta amazônica. Seus lances não envolvem
artigos em periódicos especializados como "Nature"
ou "Science", e sim livros como "Sociedades Caboclas
Amazônicas, Modernidade e Invisibilidade", que será lançado hoje em São
Paulo.
O volume editado pelos antropólogos Cristina Adams, Rui
Murrieta e Walter Neves traz dados novos sobre a vida na imensidão verde,
porém é duvidoso que possa abolir a polêmica. Seus termos foram ditados por
outro livro, um clássico de 1971 do pensamento
arqueoantropológico sobre florestas tropicais: "Amazônia, a Ilusão de um
Paraíso" (editado no Brasil pela Itatiaia em 1987), da
arqueóloga americana Betty
Meggers, uma interpretação das escavações que
realizou na região, com seu marido, Clifford Evans, nos anos
1950.
A imagem de paraíso amazônico era ilusória, sustentava
Meggers, porque a floresta exuberante na realidade oculta uma crônica
escassez de nutrientes. Somente grupos humanos pequenos e dispersos poderiam
sobreviver naquela contrafação do Éden. Para ela e Evans, essa era a realidade
evidente no panorama oferecido por povos indígenas atuais e pelo registro
arqueológico.
Determinante
"Sociedades Caboclas Amazônicas" -entre os 13 estudos que reúne- traz novo apoio
para a tese ecologicamente determinante ("determinista", diriam outros), só que
com base noutro tipo de população: camponeses e ribeirinhos, descendentes de
colonizadores europeus e índios que se espalharam pela metade norte do Brasil
principalmente no último par de séculos. Pode ser considerado o primeiro esforço
de síntese do conhecimento antropológico sobre o caboclo e seu território. Gente
e lugares para os quais o resto do país virou as costas, em que predomina o
hábito de se alimentar à base de peixe e mandioca.
"O Pão da Terra", ensaio assinado pelos editores mais Andréa Siqueira e Rosely
Sanches, pode ser lido como um elogio à subestimada Manihot
esculenta. Cultivada há mais de 5.000 anos nas
Américas Central e do Sul, a planta terminou associada em meados do século 20
com subdesenvolvimento e desnutrição, por força de obras como "Geografia da
Fome", de Josué de Castro. No que respeita à Amazônia, um equívoco: nenhum outro
cultivo se adapta tão bem às condições da região Norte do país, com muitos solos
pobres e cheias fenomenais em seus rios.
Subnutrição
Apesar da mandioca e do pescado, o caboclo vive no limiar da subnutrição, revela
o estudo (veja gráfico), mas somente no que diz respeito a calorias (alimentos
que fornecem energia para o organismo consumir, como açúcares e gordura). No
quesito proteínas (nutrientes importantes para a estrutura do corpo),
está bem servido com os peixes, que também fornecem
caloria na forma de gordura. Foram pesquisadas cinco comunidades paraenses, três
na ilha de Marajó e duas na ilha de
Ituqui (região de Santarém).
Os autores não deixam de dar razão a Meggers, mas
criticam ao mesmo tempo o determinismo ecológico de linhas de pesquisa sobre a
ocupação da Amazônia que se originaram a partir dela. Analisando diferenças na
dieta em cada comunidade e até entre famílias de um mesmo local, assinalam a
importância de fatores sociais e culturais para explicá-las.
"Apesar de a antropologia clássica ter excluído o ambiente físico, esta exclusão
radical é para nós obsoleta", escrevem os autores. "O grande desafio (...) é
suplantar as barreiras impostas pelas ciências sociais de tradição clássica sem
correr o risco de cair novamente em determinismos ambientais e biológicos",
continuam.
Segundo Meggers, porém, "a controvérsia está longe
de terminar". Consultada a respeito do livro, a pesquisadora do Instituto
Smithsonian, em Washington, de 87 anos, respondeu
que "Walter Neves está entre os poucos que apóiam a existência de limitações
ambientais à agricultura intensiva sustentável" na Amazônia.
"O mais destacado oponente [dessa visão] é Eduardo Neves, da Universidade de São
Paulo, que tem escavado na região entre o Baixo Rio Negro e o Solimões e afirma
ter sido [aquela região] sede de populações densas e sedentárias", afirmou
Meggers, por e-mail. "Reivindicações similares vêm
sendo publicadas recentemente por Michael Heckenberger,
para o Alto Xingu, Clark Erickson, para
Llanos de Mojos, e Anna
Roosevelt, para Marajó e Santarém."
Muito mais livros e décadas virão. Aguarde.
LIVRO - "Sociedades Caboclas da Amazônia, Modernidade e Invisibilidade" Cristina Adams, Rui Murrieta e Walter Neves (eds.); Annablume Editora, 364 págs.